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Violência doméstica durante a pandemia ganhou contornos específicos e preocupantes, diz pesquisadora

por Nelson Niero Neto - publicado 02/06/2020 16:00 - última modificação 12/06/2020 15:26

Professora do Instituto de Psicologia, Belinda Mandelbaum pesquisa as dinâmicas da família e das relações de gênero

Belinda Mandelbaum
Em 2019, Belinda Mandelbaum participou do Programa Ano Sabático do IEA analisando a família brasileira por meio da literatura
Antigo problema social no Brasil, a violência doméstica “ganhou contornos específicos e preocupantes” durante o confinamento imposto pela pandemia do coronavírus, alerta Belinda Mandelbaum, professora do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório de Estudos da Família (LEFAM), e autora do livro "Psicanálise da Família". Em 2019, ela integrou o Programa Ano Sabático do IEA.

No dia 27 de maio, a pesquisadora participou do seminário Família, Violência e Trauma em Tempos de Pandemia, primeiro encontro do ciclo As Várias Faces da Crise: Política, Economia e Violências. A atividade é organizada pelo Grupo de Estudos Neoliberalismo, Subjetivação e Resistências, do qual a pesquisadora faz parte.


Segundo o Fundo de População das Nações Unidas, durante a pandemia houve um aumento das notificações de episódios de violência doméstica no Brasil e no mundo. O órgão estima que, mundialmente, esse aumento seja de 20% — o que pode resultar em cerca de 15 milhões de casos a mais a cada três meses de isolamento.

No Brasil, um estudo feito pela organização Fórum Brasileiro de Segurança Pública entre fevereiro e abril revelou um aumento de 44.9% no acionamento da polícia militar paulista por episódios de violência doméstica; foram 177 prisões em fevereiro e 268 em março por este tipo de ocorrência. No mesmo período, foi observado que as menções a brigas familiares aumentaram quatro vezes no Twitter.

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Assista ao seminário

Para Belinda, o fenômeno é explicado pela nova realidade dada pela pandemia. “É claro que não coloco em questão a quarentena como uma medida necessária e eficaz no combate ao Covid-19”, disse, “mas ela implica no isolamento social e em uma situação de confinamento que causa impactos na saúde física e mental”.

Com a alteração drástica da rotina e a intensificação do convívio familiar, se intensificam também os conflitos interpessoais — que naturalmente existem nas famílias, lembra Belinda, mas são agravados pela impossibilidade de distanciamento pessoal.

“A família é uma caixa de ressonância da vida social e, por isso, é profundamente impactada pelas tensões de ordem econômica: as ansiedades resultantes das reduções de renda, do desemprego, de incertezas diante do futuro”, disse. “Isso provoca um aumento da tensão emocional dos membros da família e das relações familiares como um todo”.

A necessidade de permanecer em casa cria uma situação em que as vítimas estão mais expostas. “A maior parte são mulheres, crianças e idosos, que estão sob um maior controle do agressor neste período de confinamento”.

Esse aspecto dificulta as tentativas de denúncia, que se tornam mais arriscadas. A Organização das Nações Unidas (ONU), que orientou os países a tratarem a prevenção da violência doméstica contra mulheres como parte essencial dos planos de resposta à pandemia, tem feito recomendações neste sentido. Entre elas, investir em serviços de atendimento online a mulheres e famílias, visando a orientação psicológica e o encaminhamento de denúncias, e criar abrigos temporários para vítimas.

Outra recomendação é a instalação de serviços de alerta em estabelecimentos como farmácias e mercados, para que a vítima possa acessar instituições de denúncia longe do agressor.

Violência contra a mulher

O termo “violência” tem múltiplos sentidos, que variam de acordo com as sociedades e os períodos da história. “Em outras palavras, o que é violência para um pode não ser para outro”, disse Belinda. “Mas as pesquisas neste campo e algumas delimitações internacionais, a partir da Organização Mundial da Saúde, permitem alguns consensos”.

Segundo ela, a violência pode ser entendida como uma ação física ou verbal que invade o espaço do outro, se impondo por meio da força. Ela causa uma ruptura do limite e da separação desses espaços.

No contexto doméstico, a pesquisadora destaca a singularidade da violência entre parceiros, conhecida como violência de gênero. “Não se trata só da relação entre o homem e a mulher, mas de toda relação baseada em identidades de gênero, como por exemplo, as homoafetivas”. Apesar do sentido abrangente, as principais vítimas da violência de gênero são as mulheres, que sofrem com danos que podem ser físicos, sexuais e psicológicos, e com a privação da liberdade.

“A violência contra a mulher está presente em toda a história social brasileira”, disse Belinda. “Há uma cultura patriarcal que atravessa e organiza nossa sociedade. Nela, se perpetua o discurso de que se a mulher apanhou, ela mereceu. Ou se foi estuprada, foi pela roupa que vestia”.

Uma das principais pesquisas brasileiras neste sentido foi feita em 1998 — e seus dados seguem relevantes, explicou Belinda, por causa da extensão do estudo, que incluiu vários estados brasileiros. Na pesquisa, 55% das mulheres disseram ter sofrido violência física ou sexual pelo menos uma vez; nestes casos, 90% foi praticada por homens, e 76% eram parceiros íntimos.

Em 24% desses casos, a vítima não havia contado para ninguém, até a pesquisa, o que sofreu. Segundo elas, não havia razão: acreditavam que nada mudaria se compartilhassem. Além disso, são citadas experiências negativas em que a vítima foi desacreditada e até culpada pelo ato — em alguns casos, por instituições de denúncia que deveriam acolhê-la.

As vítimas também costumam temer pela própria segurança e pelos filhos e, por isso, silenciam sobre a situação vivida. “Há ainda os casos em que a mulher tende a considerar violência apenas o que ela sofre fora de casa, na vida pública”, disse Belinda. “O que acontece em casa não é visto como uma violência. É um dos múltiplos sentidos que o ato violento adquire para os sujeitos implicados”.

O estudo ainda revelava um dado significativo: enquanto a violência sofrida pelas mulheres era, em 90% das vezes, praticada por homens, o inverso não era verdadeiro. “Ao trabalhar com esse tema, ouvimos algumas pessoas, particularmente homens, dizendo que o homem também apanha de mulher, que há casais que os dois se agridem, ou que a violência é uma linguagem comum no casal”, disse a pesquisadora. “Mas o estudo mostrou que em 86% dos casos os homens são agredidos por homens, e fora de casa. Há uma diferença entre as violências sofridas pelo homem e pela mulher”.

Belinda pondera que o homem é vítima de violência em diversos campos e dependendo de sua idade e cor, está ainda mais exposto. “Mas é uma violência sofrida no espaço público, fora de casa”.

Foto: Leonor de Calasans/IEA-USP