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Você disse complexo?*

por admin - publicado 02/07/2024 13:10 - última modificação 20/08/2024 10:18

Artigo de José Eli da Veiga originalmente publicado em sua coluna no jornal Valor Econômico em 21 de junho de 2024.

José Eli da Veiga**

Sob prisma da matemática, a teoria da complexidade
ofereceria excelente alicerce para novas teorias científicas

 

ComplexidadeSe sim, é bem provável que quisesse se referir a algo complicadíssimo, como programar software ou realizar cirurgia cardíaca. Mas são tarefas que viram quase brincadeira para alguém bem treinado para dominá-las.

Ao inverso, não há aprendizado por repetições que permita dar conta dos enigmáticos “fenômenos complexos”. Por serem adaptativos – via evolução ou aprendizado – tendem a adquirir feições excessivamente contraintuitivas.

Você é muito mais do que o aglomerado das células de seu corpo e elas muito mais que o amontoado de suas moléculas. Mesmo quando comporta subjacentes simplicidades, o complexo é inesperado, pois são imprevisíveis os desenlaces de suas entranhas.

O que mais distancia o complexo do complicado é uma dupla de ações demasiadamente arredia à compreensão. Ela é formada pelo que foi batizado, há muito, de ‘auto-organização’ e de ‘emergência’.

Em bandos de pássaros ou cardumes de peixes, nota-se facilmente a geração de pujante ordem, a partir da desordem. Uma espontânea organização autônoma, que também parece ocorrer em certas dinâmicas inanimadas, como as dos cristais líquidos.

Estas ‘auto-organizações’ costumam ser geradas por ‘emergências’, mas em sentido pouco comum: o de novidades qualitativas, surgidas da interação entre os componentes de um conjunto, mas ausentes em cada um deles.

Inúmeras na formação de um formigueiro ou no funcionamento de um cérebro, as emergências também são comuns em atividades humanas. Desde sofisticadas, como as sinfonias, até banais, como a montagem de uma mesa ou de um martelo. Suas resultantes proezas surgem da união das desprovidas peças.

Este par conceitual – auto-organização e emergência – costuma estar no cerne das definições de complexidade. Até parece uma condição sine qua non, embora haja quem afirme que o complexo nem sempre exiba a primeira.

Pesquisas pertinentes começaram na década de 1940, mas só ganharam forte impulso a partir de 1984, com a criação do Instituto Santa Fé, filhote do célebre Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México (EUA). Stephen Hawking chegou a dizer – em entrevista de janeiro de 2000 – que a complexidade seria ‘a ciência’ do novo século.

Porém, não demorou para que tanta empolgação arrefecesse, minimizando, a partir de 2010, o incentivo de agências públicas de apoio à pesquisa. Ao mesmo tempo, abandonou-se a ambição de se chegar a uma ciência, no singular. Em muitas direções, foram pululando ‘ciências’ e ‘teorias’ da complexidade.

Árduos esforços de mapeá-las resultaram em fracas tipologias. A melhorzinha propõe uma série de sete arquipélagos de teorias. Desde as duradouras e rivais cibernéticas e sistêmicas, até as mais badaladas na engenharia e na medicina, passando por um trio do barulho, formado pela computacional, pela de Kolmogorov e pela integrativa.

Tanta dispersão mostrou-se até bem mais farta em recente série de doze conversas on-line, no âmbito do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP [veja a relação dos vídeos da série abaixo]. Em vez de potenciais convergências ou eventuais clusters, só reforçou a sarcástica imagem de uma inexpugnável Torre de Babel.

Mas há quem considere possível superar tal dificuldade de modo bastante heterodoxo: admitir que – em vez de teorias ‘científicas’ -, as teorias da complexidade se fundam em uma única teoria ‘matemática’, como o cálculo diferencial integral.

Sob este prisma, a teoria da complexidade ofereceria excelente alicerce para novas teorias científicas, desde que engenhosamente usada para explicar eventos que, além de envolverem muitos caminhos e destinos, apontam para múltiplos finais.

Inevitáveis aversões a esta brutal distinção entre dois gêneros de teorias – científica e matemática – talvez possam ser dirimidos pela lembrança de que a segunda nasce de axiomas e postulados, fornecendo o instrumental e a melhor linguagem para que a primeira chegue a boas hipóteses.

Como teoria matemática, a complexidade contribuiria decisivamente para o avanço das ciências, sem com elas se confundir. Conjectura que também decorre do fator que, decerto, mais favoreceu o avanço das pesquisas pertinentes: a computação.

Outra vantagem da referida distinção seria evitar modismos, como uma suposta ‘economia da complexidade’. O que é possível, de fato, é estudar a complexidade presente ‘na’ economia. Isto é, privilegiar pesquisas sobre a complexidade inerente a cada área do conhecimento, mas sem a criação de extravagantes subdisciplinas.

Também se poderia apostar que a distinção entre teoria científica e teoria matemática ajudaria em interlocuções com o desconfiado fã-clube do alternativo ‘pensamento complexo’. Afinal, não é o pensamento o organizador dos conhecimentos em teorias?

De resto, vale destacar o fascínio, sobre gestores, artistas e curiosos, pela geometria fractal, por exemplo, ou mesmo pela fora de moda ‘teoria do caos’. Claro indicador do imenso poder da matemática para avanços do conhecimento em geral, não apenas o científico.

* Artigo originalmente publicado na coluna do autor no jornal Valor Econômico em 21 de junho de 2024, pág. A17. As fontes em que se apoia o texto estão www.zeeli.pro.br/340ref.
** Economista, professor sênior do IEA desde 2019 e professor titular aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP.


Vídeos da série "Conversas sobre Complexidade"

Todas as conversas tiveram como facilitadores a jornalista Marcia Blasques, da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, e o economista José Eli da Veiga, organizador da série.

Imagem: Goodfon.com