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A simbiose humano-tecnológica, nosso novo sensorium e a ausência de linguagem para elucidar os fenômenos da era digital

por Fernanda Rezende - publicado 21/10/2021 16:45 - última modificação 21/10/2021 16:45

Por Sílvia Piva, advogada, mestra e doutora em Direito pela PUC-SP. Fundadora da Nau d’Dês Experiências Digitais para Profissionais Jurídicos. Colunista especialista em mercado jurídico no AAA Inovação. Pesquisadora da Complexidade e suas aplicações, com Humberto Mariotti e Cristina Zauhy.

Por Sílvia Piva, advogada, mestra e doutora em Direito pela PUC-SP. Fundadora da Nau d’Dês Experiências Digitais para Profissionais Jurídicos. Colunista especialista em mercado jurídico no AAA Inovação. Pesquisadora da Complexidade e suas aplicações, com Humberto Mariotti e Cristina Zauhy.

3 de outubro/2021

O ser humano buscou, ao longo de sua existência, superar os problemas ecossistêmico mediante a inovação incremental ou radical a partir de tecnologias. Tecnologias estão tão interligadas a nossa sobrevivência que são por meio delas que estamos no mundo de forma natural. Nossa natureza é tecnológica e precisamos disso para sobreviver.

Mudamos a partir de novas possibilidades tecnológicas disponíveis e das configurações de comunicação. Com a evolução das mídias de comunicação, diferentes linguagens vão sendo produzidas. E diferentes linguagens têm diferentes vieses, metafísicas e visões de mundo inerentes. Assim, conectar os fenômenos linguísticos com outros ramos do conhecimento poderá nos ajudar a observar e compreender a obsolescência de alguns conceitos e métodos, de problemas filosóficos, problemas teóricos e problemas metodológicos.

É notório o quanto precisamos de mais linguagem para conseguir descrever os fenômenos que nos circundam frente ao avanço das tecnologias emergentes, seja para reposicionar os novos conceitos, para construir novas metodologias e para ampliar o nosso conhecimento, afinal, como diria Wittgenstein, os limites do meu mundo, são os limites da minha linguagem.

A língua é a nossa realidade (Flusser).  É por meio dela e de nossos sentidos que recebemos e percebemos as palavras. Em nosso intelecto é que ocorre o entendimento, a construção da realidade e a percepção. Aparatos tecnológicos, por sua vez, expandem os nossos sentidos (McLuhan). Estamos, portanto, transformando, a cada dia, nossa experiência sensorial e linguística a partir da nossa simbiose humano-tecnológica.

Novo sensorium da realidade

No mundo em que vivemos, existe algo que, a todo instante, nos orienta e que nos traz informações que nos capacitam a exercer nossos papeis em diferentes esferas. Como dissemos, a nossa linguagem predominante opera de forma interligada com os aparatos tecnológicos e com as mídias digitais.

Mídias digitais são construídas a partir dos softwares, que, por sua vez, são construídos por códigos. Esses códigos, são escritos a partir de conhecimento técnico de humanos, por meio de linguagem de programação, para que esse conjunto de códigos obedeça aos seus critérios para a execução dos comandos. Códigos que compõem os comandos de um software são linguagens que realizam exatamente o que se espera que façam.

É inegável que estamos diante de uma invisibilidade e abstração trazida por esses códigos, uma vez que não conseguimos enxergá-los e aqui nos referimos não ao seu funcionamento do ponto de vista técnico e sim daquilo que representam e constroem ao nosso redor. Somos absorvidos por sua opacidade ao mesmo tempo em que temos uma relação de proveito mútuo com eles: precisamos dos códigos para que nossa vida funcione e eles precisam de nós, para que aquilo que se propuserem a resolver, funcione, numa relação que se retroalimenta. Não temos, porém, linguagem suficiente para compreender o fenômeno que deles decorrem em sua completa dimensão.

No entanto, precisamos superar que este código – que se mistura com nossa existência – seja tido como algo imaterial e abstrato. Devemos conhecê-lo como algo contínuo com o nosso mundo. Ao mesmo tempo, temos que buscar linguagem para compreender que tipo de mundo está emergindo partir dessa nossa relação com os códigos. Esses códigos trouxeram a nós, nas palavras de Cosimo Accoto, um novo sensorium que é a nova capacidade de sentir o mundo a partir dos dados. Percebemos que o mundo é interconectado, que existe algo além de nós no mundo que nos cerca. Mas como podemos lidar com esse novo sensorium para compreender melhor a linguagem digital para então conectá-la aos fenômenos sociais contemporâneos se nos falta repertório linguístico?

Há uma proposta, porém: sair da situação de impotência e compreender as novas tecnologias, especialmente sobre como os códigos exercem sua linguagem a partir da arquitetura do software – não para entendê-los de maneira funcional, mas sim para abarcar contextos e consequências deles decorrentes. Nas palavras de James Bridle: “não é necessário ser encanador para aprender a usar o banheiro, e tampouco viver com medo de que seu encanamento queira matá-lo.”

Estamos diante de uma sociedade em que as decisões não são tomadas apenas por humanos. Com isso já podemos adentrar numa outra questão. A obsolescência de conceitos como o de sociedade.

No Ocidente, lidamos com o conceito de sociedade como aquela composta apenas por humanos. Bruno Latour, no entanto, propôs a substituição da ideia sociológica do social pela ideia de redes não mais formadas apenas por atores humanos, mas por diversas entidades que, por meio de redes agregativas, contribuem para a realização e o desfecho de uma ação, intervindo de várias maneiras. Um social mais complexo, composto por humanos e não humanos.

Esse novo tipo de arquitetura que agrega humanos e não humanos é o resultado de conexões de redes digitais e de dados e com nosso novo sensorium, pudemos perceber que não somos únicos, superiores e separados da natureza, reforçando a falha dos 3 grandes mitos que circundam nossa existência: “O mito da separação: o homem é diferente (no sentido de superior) dos demais animais e, por isso, está separado deles e da natureza. O mito da centralidade humana: o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e por isso está no centro do universo. O mito do progresso: não há problema humano que não seja solucionável por meio da ciência e da tecnologia (Mariotti e Zauhy).

Porém, nossa “superioridade" e “inseparabilidade” foi ainda mais abalada pela pandemia. Já estava evidente a crise do antropoceno, com a demonstração da dimensão interdependente do nosso habitat. Mas um pequeno vírus nos trouxe frente a frente com a nossa interconexão e com o reforço sobre a falibilidade destes mitos.

Inevitável que diante da complexidade cada vez mais visível a nós, se façam necessários novos modos de pensar os problemas contemporâneos e que nos ajudem a superar a linearidade sujeito/objeto; razão/emoção para articular sua conectividade.

A era digital demanda necessariamente uma abordagem Transdisciplinar e de religação dos saberes (Morin), afinal, qual seria hoje a disciplina capaz de narrar e significar as qualidades das inovações tecnológicas digitais?

Massimo de Felice nos coloca que "Necessitamos de um novo tipo de episteme, na qual as fronteiras entre observador, instrumentos técnicos utilizados e fenômenos observados não são mais exatamente delimitáveis, mas são abertas, tornando impossível pensar em uma delimitação de um campo formado por uma única disciplina”.

Códigos têm forças filosóficas. Fazem as coisas acontecerem e estão construindo e moldando a nossa realidade. Portanto, precisamos de novas palavras, de novas metáforas, enfim, de repertório linguístico renovado para conseguir descrever e compreender melhor os fenômenos da era digital. Precisamos de metalinguagem para conseguir descrever o nosso novo sensorium gerado pelos códigos, reconectando as Tecnociências com as Humanidades e ousadia para navegar por esses territórios inexplorados – Hic Sunt Dracones (os dragões estão aqui).

 

Referências

Accoto, Cosimo. O Mundo Dado. 2021. Editora Paulus.

Bridle, James. A Nova Idade das Trevas a Tecnologia e o Fim do Futuro. 2021. Editora Todavia.

De Felice, Massimo. A Cidadania Digital. 2021. Editora Paulus.