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A transparência e suas interfaces

por Mauro Bellesa - publicado 09/09/2021 11:20 - última modificação 13/09/2021 08:55

Por Bruno Grandchamp Rodilha, Designer e pesquisador. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atua com o projeto e avaliação de interfaces digitais. Faz parte dos grupos de pesquisa Comunidata (PUC-SP) e Grupo Arte, Memória e Mídia (PUC-SP), e é associado ao IxDA (Interaction Design Association).

Por Bruno Grandchamp Rodilha, Designer e pesquisador. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Atua com o projeto e avaliação de interfaces digitais. Faz parte dos grupos de pesquisa Comunidata (PUC-SP) e Grupo Arte, Memória e Mídia (PUC-SP), e é associado ao IxDA (Interaction Design Association).

25 de agosto de 2021.

Uma sociedade transparente: onde a humanidade encontra-se protegida e todos podem ver e serem vistos; a circulação de ideias é livre e a troca de mercadorias traz crescentemente mais abundância. Essa imagem, de raízes iluministas, há muito revolve os discursos ocidentais de progresso, desde as iniciativas internacionais de governança até as menores prestações de contas em prefeituras esquecidas. Entretanto, a própria palavra transparência mostra-se cada vez mais opaca, deixando somente uma de suas faces à mostra, como um espelho.

Sociedade da transparência de sujeitos-mercadorias

A busca pela transparência como modelo social, político e cultural, como coloca Han (2017) visa à aceleração e à estabilização do sistema produtivo. Isso porque aprofunda as possibilidades de circulação e troca entre pessoas, mercadorias e informações. Como examinado por Marx e Engels (2011), tal movimento corresponde historicamente ao processo econômico de transformação de dinheiro em capital. Portanto, o mote de uma sociedade circundada por límpidas paredes transparentes, remonta ao curso de expansão e progresso do capitalismo, encontrando no avanço tecnológico suas formas e operações.

O Palácio de Cristal, erguido ao sul de Londres em 1851 é a primeira materialização de um mundo técnico centrado na transparência. Por entre as placas de vidro, sustentadas por armações metálicas, deu-se o palco da Exposição Universal, onde, segundo o correspondente brasileiro, Pedro Alcântara Lisboa, a grande mostra rapidamente se converteu de celebração, em competição entre nações pela venda de produtos fúteis à “europeus opulentos”.

Em análise sobre o Palácio de Cristal, Sloterdijk (2013) aponta que as paredes transparentes não só permitiam a visão no interior do palácio, mas também delimitavam o espaço do humano e sua cultura dentro das quatro linhas do pavilhão, cristalizando as circunstâncias propícias à manutenção da ordem estabelecida. Nesse sentido, vê-se a transparência como dispositivo para a criação e guarda de uma sociedade, que se desenvolve livremente no conforto de seu limite vítreo. Porém, o curso de tal projeto sociocultural se viu em suspenso no século seguinte em decorrência de embates políticos e ideológicos.

Se, ao longo do século XX, o Ocidente organizou-se ao redor da repressão, por meio da restrição de liberdades (hospitais, escolas e presídios) e regulamentação das atividades humanas (grade horária, relógio de ponto e carteira de trabalho), o que se vê no alvorecer deste novo século é a derrubada de tais barreiras por um novo tipo de panóptico digital e a retomada dos valores materializados no Palácio de Cristal. Assim, Han (2018) defende que a queda da sociedade disciplinar repressiva não representa o fim do controle sobre o indivíduo, tampouco indica a formulação de sistemas sociais libertos. Na sociedade de controle transparente, as dinâmicas sociais se autorregulam a partir dos próprios indivíduos, que se expõem uns aos outros, modulando suas ações mutuamente.

Os indivíduos, quando circunscritos a uma análise econômica, representam potenciais mercadorias, visto que a dinâmica capitalista pressupõe a exploração de trabalho para a produção de valor. Dessa forma, as pessoas ao se inserirem no mercado de trabalho, são dispostas como sujeitos-mercadorias, o que para Silva (2010) aponta para o apagamento do sujeito em detrimento de sua identificação como mercadoria. Entretanto, a diferenciação mercadológica é uma das chaves para a valorização, fazendo com que os sujeitos-mercadorias busquem, cada vez mais, maneiras de se destacar e elevar seu valor expositivo.

Vidas mediadas por interfaces inebriantes

A vida mediada configura-se a partir da presença crescente das tecnologias móveis nas práticas cotidianas. Mas, se, sob um olhar superficial, tais inovações digitais lançam comunidades em ambiente virtuais potencialmente livres e democráticos, Bambozzi (2011) alerta que as dinâmicas inseridas nesse contexto se encontram circunscritas às operações de um “capitalismo semiótico e cognitivo”. Assim, os dispositivos móveis, para Bambozzi (2007), configuram-se como aparelhos de vigilância pervasiva, que por meio da concepção de zonas íntimas temporárias, permeiam a vida de seus usuários e extraem delas substâncias para atividades comerciais. Entretanto, a faceta vigilante dos smartphones é menos opressora, como as tele-telas orwellianas, e mais sedutora como a droga soma de Huxley. Isso porque, as interfaces são desenhadas com o objetivo de manter os usuários inebriados por cores, formas e sons. Ao passo que buscam se realizarem como mercadorias, propagandas e indivíduos, durante todo o tempo.

Os recursos gráficos, sonoros e táteis são elementos comuns de uma interface, que, para Bonsiepe (2015), configura o espaço onde se estruturam as interações entre usuário, ferramenta e objetivo de ação. Portanto, interação é a chave para compreendermos o processo de uso de qualquer artefato, seja ele digital ou material. Interagir é um processo ativo de ambos os lados, pois, para que o usuário possa atuar é preciso que objeto atue junto a ele. Nesse sentido, a interface se evidencia como o domínio do acoplamento estrutural entre pessoa e artefato.

O processo de utilização, tendo em vista uma relação dialógica, pode ser descrito da seguinte maneira: ao conceber um objetivo, a pessoa busca uma ferramenta que possa lhe auxiliar a alcançar tal fim. Então, entra em contato com o artefato por sua interface, que lhe apresenta as possibilidades de ação daquele objeto (ou sistema). Nesse contato a pessoa é tocada pela interface enquanto a toca, desencadeando mudanças de estado, tanto no domínio do objeto, quanto no humano. Por fim, quando (ou enquanto) a ação é executada, o resultado proveniente da interação pessoa-artefato, atinge o mundo, implicando novas mudanças de estado na pessoa, no objeto e no ambiente. Dessa forma, o desenho de interfaces corresponde diretamente aos caminhos interativos possíveis ao usuário e encaminha as dinâmicas sociais e culturais que emergem da tecnologia.

A maneira como as informações são dispostas na tela bem como o peso dado aos elementos podem induzir os usuários a tomar caminhos interativos específicos, como a publicação impulsiva de um desabafo, ou o adentrar em um fluxo de imagens efêmeras (stories). Tais possibilidades são apresentadas e estimuladas por meio da aplicação de cores e contrastes formais. Assim, a coleta de dados e o consumo de informações se dão dialogicamente no interagir, estimuladas pela dinâmica econômica do valor expositivo, que encontra sua materialização na interface.

O que é visto nas telas, não é o simples encadeamento de códigos, mas sim projetos multissensoriais, carregados de informações e cujo fim é abrir e fechar possibilidades para quem os usa. Logo, a prática de design não pode ser vista pelos profissionais da área, tampouco por seus consumidores, como uma atividade despretensiosa ou inofensiva. Visto que é por meio da articulação de elementos gráficos e o desenho de interações que os objetivos mercadológicos, ou de controle, podem se efetivar.

Referências

BAMBOZZI, L. A vida mediada. Festival arte.mov: Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://www.lucasbambozzi.net/textos-articles/2104-2>. Acessado em 20 de agosto de 2021.

_________. O lugar da negociação na mobilidade. In: Nomadismos tecnológicos. Org. Giselle Beiguelman e Jorge La Ferla. Madrid: Fundación Telefónica, 2011. Disponível em: <http://www.lucasbambozzi.net/textos-articles/o-lugar-da-negociacao-na-mobilidade>. Acessado em 20 de agosto de 2021.

BONSIEPE, G. Do material ao digital. São Paulo: Blucher, 2015.

HAN, B-C. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.

_______. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017a.

MARX, K.; ENGELS, F. O capital: livro I. 2ªed. São Paulo: Boitempo, 2011.

SILVA, V. A. Lacan com Marx: o sujeito está para a mercadoria assim como o significante está para o capital. In: A peste: revista de psicanálise e sociedade e filosofia, São Paulo, v. 2, n. 1, jan./jun. 2010. p. 225-238.

SLOTERDIJK, P. In the world interior of capital: for a philosophical theory of globalization. Cambridge: Polity Press, 2013.