Você está aqui: Página Inicial / PESQUISA / Cátedras e Convênios / Cátedra Oscar Sala / Ensaios / Academia e mercado: dinâmicas de transferência de conhecimento e formação de profissionais no setor de tecnologia

Academia e mercado: dinâmicas de transferência de conhecimento e formação de profissionais no setor de tecnologia

por Mauro Bellesa - publicado 27/09/2021 10:26 - última modificação 27/09/2021 10:26

Por Priscila Bianchini (especialista em gestão de centros de tecnologia de software e inovação para América Latina e desenvolvedora de soluções de BI com ênfase em análise e visualização de dados gerenciais em empresas de tecnologia) e Guilherme Cestari (doutor em tecnologias da inteligência e design digital, professor da graduação em Design da PUC-SP, membro do Centro Internacional de Estudos Peirceanos e editor executivo da TECCOGS - Revista Digital de Tecnologias Cognitivas).

Por Priscila Bianchini (especialista em gestão de centros de tecnologia de software e inovação para América Latina e desenvolvedora de soluções de BI com ênfase em análise e visualização de dados gerenciais em empresas de tecnologia) e Guilherme Cestari (doutor em tecnologias da inteligência e design digital, professor da graduação em Design da PUC-SP,  membro do Centro Internacional de Estudos Peirceanos e editor executivo da TECCOGS - Revista Digital de Tecnologias Cognitivas).

10 de setembro de 2021.

Globalmente, universidades e centros de pesquisa científica veem crescer questionamentos sobre sua relevância e autonomia cultural, político-institucional, tecnológica e econômica. Relatórios da rede internacional Scholars at Risk e o podcast “Cientistas na Linha de Frente” oferecem exemplos e panoramas da evolução e perfil da hostilidade sobre diversos campos do conhecimento – dos estudos de gênero à pesquisa sobre tratamentos médicos. Além disso, a integração da ciência e educação a um número crescente de plataformas privadas suscita debates sobre rastreabilidade, preservação, popularização e capitalização do conhecimento, bem como sobre perseguição, censura e banimento de equipes de pesquisa. Sem a atenção, compreensão, confiança e participação da sociedade, a academia fragiliza sua legitimidade e, por consequência, suas capacidades de prospecção de recursos humanos e financeiros. Nesse cenário, o diálogo aberto com indústria e comércio é um pilar importante para que o contexto acadêmico se mostre mais versátil e atrativo a estudantes, pesquisadores, empresários e políticos de modo a integrar fazer e pensamento científicos às políticas públicas e estratégias organizacionais.

Como, então, diálogos entre academia e mercado podem conduzir iniciativas para o desenvolvimento tecnológico? Em específico, como a relação entre esses setores tem modificado a formação de profissionais no Brasil? Endereçar essa discussão envolve considerar variáveis de política governamental, modelos de empreendedorismo, sistemas de gestão pública e privada, além de percursos de formação do conhecimento científico nos mais diversos níveis e disciplinas.

Integrações entre academia e mercado não podem ser reduzidas a “academia pesquisa” e “mercado aplica”, ou “a academia [idealmente financiada pelo Estado] realiza os esforços iniciais e dispendiosos na exploração de uma tecnologia” e, depois, “o mercado apara as pontas [otimizando e popularizando o conhecimento para o lucro]”. A função social da academia não se limita a formar trabalhadores ou desenvolver tecnologias para o mercado, inclui também promover o acesso livre e contínuo à educação crítica, ao pensamento científico, à liberdade de expressão e à cidadania de forma participativa. O mercado ou os produtos e serviços que ele oferece não são nem podem ser a única forma de acesso ao conhecimento acadêmico para a sociedade em geral. Se o mercado monopolizar essa mediação, os riscos são:

  • Padronizar avaliações da “relevância” de um pesquisador usando como critério somente a “aplicação prática” e a “viabilidade comercial” da pesquisa desenvolvida, submetendo a pesquisa científica exclusivamente à lógica do lucro ou do empreendedorismo;
  • Tornar equipes de pesquisa ou departamentos excessivamente dependentes de grupos privados, de modo que a universidade perca seus canais de comunicação diretos com a sociedade civil (cidadãos leigos, ONGs, associações sem fins lucrativos, prefeituras…);
  • Tornar os resultados do trabalho dos pesquisadores propriedades intelectuais do financiador privado, e não material público de consulta livre de copyrights ou com direito de acesso facilitados;
  • “Deseducar” a sociedade (ou deixar de informá-la) sobre o papel da ciência – que ficaria aparentemente restrito à contribuição ao mercado.

A edição de setembro de 2012 da revista “Em Discussão”, um levantamento publicado em 2018 no Jornal da USP e o artigo “Financiamento à ciência no Brasil” dão uma ideia das dinâmicas de financiamento de P&D no Brasil na última década; nos setores público e privado, as áreas de saúde, exatas e da terra, biológicas e agrárias superam historicamente o financiamento de letras e artes, ciências humanas e sociais aplicadas. Na América do Norte e Europa, onde estão os setores de P&D de multinacionais de tecnologia, é possível encontrar parcerias entre universidades e empresas para desenvolvimento de pesquisas relacionadas a tecnologias emergentes. Nas subsidiárias latinas é mais comum encontrarmos ambientes de inovação internos ou associados a startups que em pareceria direta com a academia.

A velocidade na qual o mercado demanda profissionais é proporcional à implementação de funcionalidades e ao lançamento de novos produtos. Diante da falta de mão-de-obra, o mercado passa também a produzir seus próprios profissionais, mais bem treinados nas especificidades que a empresa exige. Por outro lado, a formação in company corre o risco de reproduzir univocamente visões que a empresa tem de trabalho, mercado, tecnologia, criatividade, ética e sociedade.

Dados da Brasscom produzidos em 2019 (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais) apontam para falta de mão de obra qualificada no setor de tecnologia, constatável pela quantidade de vagas abertas. A sugestão da associação para suprir demandas do mercado em menor tempo é a formação de tecnólogos, com um currículo orientado às práticas e técnicas mercadológicas e que atenderia à necessidade de pessoal mais rapidamente que os formados em cursos de bacharelado ou engenharias. De acordo com a Brasscom, 60% dos cursos de tecnologia oferecidos por entidades públicas têm classificação insatisfatória no MEC.

“Some things will not happen in an economy driven only by markets. And that is the main reason you need a Media Lab. If industry can do what we are doing, we should not be doing it.”

Nicolas Negroponte

Nicholas Negroponte, que em 1979 idealizou o Media Lab no MIT, aponta que determinados tipos de ideia ou modelos de inovação têm poucas chances de se desenvolverem em um mercado direcionado pela economia e, para a criação do laboratório, foi necessário romper com os padrões existentes nas universidades. A não departamentalização foi uma alternativa para estabelecer novos relacionamentos entre educadores, designers, jornalistas, arquitetos, músicos e para a manter a liberdade criativa fora dos moldes de empresas e startups, que têm um direcionamento econômico de lançar novos produtos e serviços no mercado. Negroponte critica cursos livres oferecidos por EdTechs, que estariam mais preocupados em ensinar que na complexidade envolvida no processo genuíno de aprendizado. A separação estrita entre pesquisa e ensino acaba por reduzir cursos à mera reprodução de práticas e conceitos.

No caso do desenvolvimento e implantação de novas tecnologias, a situação parece ainda mais delicada, já que o produto é imaterial e ao mesmo tempo altamente "funcional" (destinando-se a atividades e propósitos específicos). Some-se ao fato de que o tempo de pesquisa científica na academia é, em geral, mais lento que os cronogramas de desenvolvimento no mercado, e softwares são produtos de alta plasticidade, que exigem ainda maior agilidade no desenvolvimento e manutenção/atualização.

Fomentar espaços de discussão envolvendo diversas áreas em que o conhecimento e pensamento crítico possam desenvolver-se livremente, sem necessariamente adotar uma visão utilitarista desde o ensino básico, organizados por governos, universidades e entidades da sociedade civil parece ser uma forma de expansão do conhecimento gerado dentro da academia.

O Estado tem um papel fundamental em direcionar a evolução tecnológica do país e colocá-lo como protagonista na transformação digital. Para que haja força de trabalho qualificada frente aos desafios de velocidade e capacidade técnica é necessário traçar rotas claras, caso contrário mantem-se em uma estagnação tecnológica, acarretando prejuízos para toda a sociedade. Diante das recentes declarações do Ministro da Educação questionando a busca do diploma universitários por pessoas que utilizam o FIES para acessar a universidade e colocar em evidência apenas o fomento do ensino técnico, nos distanciamos cada vez mais da própria Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial que classifica como limitado o conjunto de habilidades profissionais e técnicas – ocupamos a 101ª posição no ranking GTCI 2020.

Como afirma Boaventura de Sousa Santos, em entrevista à Revista Lusófona de Educação, “pensamentos alternativos sobre as próprias alternativas” se fazem necessários aos setores públicos e privados de educação, pesquisa e tecnologia, diante do desamparo estatal e da competitividade e complexidade que crescem e se evidenciam juntamente com demandas sociais históricas.