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Apontamentos sobre 'A Superindústria do Imaginário', de Eugênio Bucci

por Mauro Bellesa - publicado 13/09/2021 09:18 - última modificação 13/09/2021 09:18

Por Victo José da Silva Neto: Doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universiteit Utrecht (Holanda). M.Sc. na Unicamp. Bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e em Relações Internacionais pela PUC-SP.

Por Victo José da Silva Neto: Doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universiteit Utrecht (Holanda). M.Sc. na Unicamp. Bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e em Relações Internacionais pela PUC-SP.

11 de setembro de 2021.

In the New Age we'll all be entertained
Rich or poor, the channels are all the same - Father John Misty

Eugênio Bucci, além de professor titular da ECA-USP, é uma máquina associativa que devora concepções teóricas diversas e ilumina pontes previamente invisíveis entre elas. A despeito do elogio à sua capacidade integradora, espero que a metáfora maquínica acima não chegue aos seus ouvidos (ou ao seu raio visual). Até porque, em algumas passagens, há de forma mais ou menos explícita uma postura antagônica à tecnologia digital e às práticas culturais derivadas (pobres Tamagotchis, Emojis e Selfies). Mas foquemos na obra.

O maior feito de A Superindústria do Imaginário (SI) (BUCCI, 2021) é posicionar a esfera comunicacional no centro do sistema econômico. Autores de diversas correntes têm tentado lidar com as transformações em curso, ampliadas pelos avanços das tecnologias digitais. Correntes de economia política oferecem interpretações calcadas na preponderância da “esfera da circulação” sobre a “esfera da produção”. Bucci vai além e é mais convincente. Ele define a SI como “o monopólio do capital sobre o Imaginário” (p. 310), que fabrica e distribui mercadorias imagéticas que proveem sentido aos indivíduos. A SI é um estágio no qual o capitalismo negocia e acumula sobre significações, o que só é possível dada a incompletude e dualidade do “eu”.

Além do seu berço na comunicação, a SI bebe de duas fontes principais: da psicanálise e do marxismo. Bucci encomenda a alma do marxismo para então ressuscitá-lo uma vez mais. São diversos golpes, que não se restringem a denúncia das “ideologices dogmáticas”, mas também colocam a produção de sentido (e de cultura, portanto) no centro da acumulação capitalista, desmontando a tradicional separação entre estrutura/superestrutura. Interpretações do “trabalho cultural” ou imaterial vêm sido propostas desde Raymond Williams, passando pelos autonomistas italianos (XIA, 2021), mas a proposta de Bucci é original. Inquestionavelmente realista no diagnóstico, o autor disseca a forma moderna da mercadoria: a produção industrial de fetiches, ou, em sua terminologia, de Imaginário. Isso resulta dos três traços novos da mercadoria: incorpórea; visada ao desejo e não à necessidade; e que não entrega utilidade, mas sentido (p.349).

Estas mudanças são indicativas de que “o capitalismo, então, aprendeu a fabricar este terceiro valor da mercadoria, o valor de gozo” (p. 380). O valor de gozo se oferece ao sujeito por meio da fruição estética da mercadoria (na linguagem e pela linguagem). Ao visar o valor de gozo o indivíduo busca saciar o desejo enraizado em sua incompletude. Uma operação sempre fadada ao fracasso, dado que o gozo imaginário “só se realiza como promessa, nunca se consuma, mas sempre se oferece” (p. 380). Mantêm- se assim em eterna circulação as mercadorias recheadas de valor de gozo. Cumpre ressaltar o quanto este novo valor conceituado por Bucci se aproxima da visão marginalista de valor: “a oferta de gozo, esta não se dirige a uma necessidade social objetiva, mas a um desejo do sujeito, um desejo subjetivo, que nenhum cálculo econométrico social dará conta de aquilatar” (p. 377). A subjetividade está na raiz desse valor, o que por si só impede qualquer tentativa de relacionar o valor com o trabalho que o produziu. No entanto, há uma diferença fundamental entre a percepção de valor subjetivo para Bucci e para os marginalistas: para estes, o valor é subjetivo, mas derivado de um cálculo racional do homo oeconomicus, enquanto que para aquele, o pensamento é persona non grata na consubstanciação do valor de gozo. Este, inclusive, é um ponto de contato que Bucci poderia ter explorado se não se ocupasse tanto de seguir a trilha marxista. A economia tem se aproximado de outras disciplinas como a psicologia, a sociologia e o direito para aprimorar seus conceitos: o homo psychologicus tem recebido atenção e prêmios Nobel (TIROLE, 2020 [2016], p. 132) e, embora seja apenas aparentado de um eventual homo psychanaliticus, parece um ponto de partida promissor.

Retomando, Bucci tem a clareza de que, ao desmontar o conceito de mercadoria, precisa também remodelar sua produção. O “trabalho socialmente necessário” não faz mais sentido na produção sígnica (p.391) e não é ele que determina o valor de troca (p.392). Entra em cena o olhar, o trabalho escópico que “opera a junção entre significados e significantes visuais” e “tece o sentido dos signos visuais” (p. 385). Os valores de gozo compõem-se tanto de um valor de trabalho residual daqueles que preparam a imagem da mercadoria (equipes de publicidade, branding, etc.) mas principalmente da “exploração do olhar das massas”. Como se daria esse processo de geração de valor a partir da exploração do trabalho escópico? Na prática, é bastante óbvio que a audiência gera o valor de uma grife, rede social ou non-fungible token, posteriormente convertido em preço. Na teoria, Bucci não explica como se daria esse processo, limitando-se a afirmar que “Do olhar social e dessa forma avançada de trabalho escópico [...] escorre valor de troca para o signo da mercadoria” (p. 393). Ficamos, portanto, sem a dinâmica de como isso se opera para além do escorregão.

Bucci fica entre “atualizar os conceitos” da economia política marxista e propor uma teoria original própria. Ele justifica sua invectiva pela trilha marxista devido ao fato de que o valor de gozo cunhado por Lacan remete à teoria do valor marxista. Pode ser, mas será possível atualizar conceitos escolhidos a dedo dentro do edifício marxista e chegar a um corpo teórico coeso? Para atualizar a teoria marxista do valor seria preciso elaborar também (ao menos) uma teoria do capital atinada com a SI. Outra questão seria compreender as condições que determinam essa nova teoria do valor enquanto relação social: Marx cunhou a dupla emancipação do trabalhador na revolução industrial, livre de relações de servidão e “livre” dos meios de produção. Qual seria o equivalente histórico para a consolidação da acumulação de valor de gozo? Tais condições também seriam “inescapáveis” e levariam a uma nova teoria de ação política (“gozadores do mundo, uni-vos! ”)? Isto tem a ver com a própria ausência de um entendimento da estrutura e dinâmica sociológicas, posto que o próprio Bucci, acertadamente, identifica um esvaziamento do antagonismo capital/trabalho e limites da conceptualização de classes.

A despeito de alguns pontos como um eurocentrismo carregado (Lacan, Habermas, Marx, Freud, Debord, Saussure...) sua colaboração para sanar o “déficit de paradigma teórico” (p. 415) é valiosa e bem-vinda. Bucci não propõe uma teoria, mas faz um trabalho prévio talvez mais difícil: a integração de conhecimentos seccionados artificialmente pelas fronteiras disciplinares. Uma tarefa que permite vislumbrar vigas mestras de novas e necessárias teorias. Como apontado por outro intelectual: “São estas regiões fronteiriças da ciência que oferecem as mais ricas oportunidades ao investigador qualificado” (WIENER, 2017 [1961], p. 25).

Referências

TIROLE, Jean. Economia do Bem Comum. Rio de Janeiro: Zahar, 2020 (2016).

WIENER, Norbert. Cibernética: ou o controle e automação no animal e na máquina. São Paulo: Perspectiva, 2017 (1961).

XIA, Bingqing. Rethinking digital labour: A renewed critique moving beyond the exploitation paradigm. The Economic and Labour Relations Review, p. 1 – 11. DOI: 10.1177/10353046211038396.