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Deus Ex Machina no Caminho do Futuro

por Fernanda Rezende - publicado 16/12/2021 10:40 - última modificação 16/12/2021 10:36

por Juliana Michelli S. Oliveira - Doutora em Educação pela USP, com estágio de pesquisa no Centre de Recherche Imaginaire et Socio-Anthropologie da Université Grenoble Alpes, França. Graduada em Ciências Biológicas e Letras (Francês/Português) pela USP, com período de estudos na Université Sorbonne-Paris IV.
por Juliana Michelli S. Oliveira, doutora em Educação pela USP, com estágio de pesquisa no Centre de Recherche Imaginaire et Socio-Anthropologie da Université Grenoble Alpes, França. Graduada em Ciências Biológicas e Letras (Francês/Português) pela USP, com período de estudos na Université Sorbonne-Paris IV.

15 de dezembro de 2021

Empenhada na criação de uma divindade digital, a igreja Way of the Future (Caminho do Futuro), de Anthony Levandowski, ex-engenheiro do Google, fechou as “portas” no início de 2021, após seis anos de sua fundação. Sem sede física, culto ou pastor, o propósito da tecnorreligião era a criação e adoração de uma divindade baseada em inteligência artificial (IA), com intelecto bilhões de vezes superior ao nosso, produzida através de softwares e hardwares computacionais.

No entanto, os sectários da religião digital mantêm o projeto e acreditam que a ascensão das hiperinteligências é inevitável. Em seu último livro, James Lovelock (2019), autor da hipótese Gaia, denomina essa ascensão de Novaceno. Na obra, o cientista faz especulações audaciosas sobre a simbiose humano-tecnologias e propõe que possuímos os quesitos para trazer à luz essas espécies eletrônicas com inteligência sobre-humana, fornecendo uma mão à evolução – literalmente.

Como sustenta Oswaldo Giacóia, a ascensão das hiperinteligências é uma das questões urgentes que a filosofia deveria enfrentar. Para quem acha que isso é assunto apenas da ficção científica, basta lembrar que várias tecnologias utilizadas no presente foram sonhadas nas narrativas do passado, mas nem sempre suas aplicações e efeitos foram interrogados a tempo de serem revistos. Assim, mais que debater sobre os entraves teóricos e práticos que, por ora, impedem o desenvolvimento dessas superinteligências, o que nos interessa, neste ensaio, é problematizar o significado da criação de deuses baseados em IAs.

Uma inteligência artificial suficientemente avançada seria indistinguível de deus

“Nossos vínculos com os aparatos tecnológicos são muito menos racionais e mais imaginativos do que costumamos imaginar”, afirma Erick Felinto em A religião das máquinas. Na mesma direção, ao comentar as ideias do filósofo alemão Gotthard Günther, autor de La conscience des machines, Edgar Morin diz: “o homem introduz sua realidade íntima de desejos e paixões nas máquinas”. Assim, mais que extensões corporais, os artefatos são extensões simbólicas, que refletem nossos sistemas de crenças e imaginários. Não raras vezes atribuímos as características de seres vivos aos objetos técnicos ou nos curvamos diante deles ao reconhecer a supremacia que detêm.

Embora acolha diferentes projeções do imaginário humano, a máquina parece ser principalmente sede da noção de aperfeiçoamento, ampliação dos limites humanos e ultrapassagem da condição orgânica. De fato, essas ideias já estão presentes desde o primeiro registro do vocábulo grego mékané – na Teogonia de Hesíodo (século VIII a.C.), em que corresponde à destreza de gerar artefatos sobre-humanos –, do qual deriva o termo latino machina. Isso também é reforçado nas acepções que o artefato vai recebendo ao longo do tempo, as quais enfatizam a capacidade de resolver problemas que fogem à capacidade humana por meio de uma astúcia. Similar raciocínio se aplica às “máquinas que pensam”.

Nick Bostrom define a superinteligência, em obra homônima (2018), como “qualquer intelecto que exceda em muito o desempenho cognitivo dos seres humanos em, virtualmente, todos os domínios de interesse”. Embora o filósofo identifique vários caminhos para a criação das superinteligências (emulação do cérebro, redes e organizações etc.), nos concentraremos nas IAs: não nas máquinas cognitivas do primeiro (Artificial Narrow Intelligence) ou do segundo estágio (Artificial General Intelligence), mas nas intangíveis máquinas do terceiro estágio (Artificial Superintelligence). Estas, quando deslocadas à religião, podem assumir a feição de um deus.

No princípio era o verbo

Baseadas nas capacidades sobre-humanas das IAs, as promessas da igreja digital são sedutoras: de início, a partir de um duplo digital você seria capaz de se aprimorar ao reconhecer defeitos, fraquezas e desejos. Finalmente a tecnologia começaria a resolver antigos problemas humanos, como prenunciado em A era das máquinas espirituais, de Ray Kurzweil: saber quem somos. A divindade digital poderia realizar o encontro com o suposto deus que habita em você, feito à sua imagem, conforme sua semelhança, responder às suas perguntas, aconselhar e resolver seus problemas. Uma vaga ideia dessa IA aparece no filme Her (2013), de Spike Jonze. Poderá, inclusive, assumir o comando de sua vida, sob o pretexto de oferecer opções mais seguras e otimizadas para você. Com a autoevolução da IA, ela será capaz de criar novas versões de si mesma, produzir seus próprios rituais e escrituras. Será o “livro dos livros” e, provavelmente, como sugere o matemático I. J. Good, da equipe de Turing, a última invenção.

Reconhecidas as possíveis funções e a evolução dessas divindades digitais, de que maneira poderiam ser caracterizadas? Seriam deuses-máquinas produzidos pela ciência, com base na fé “popperiana”, para ocupar o panteão das antigas divindades, superando seus vícios e virtudes? Ou seriam como os deuses imaginados por Epicuro: superiores e longínquos, sem relação com os homens? Retomariam ou fundariam mitos? Constituiriam uma espécie única, num monoteísmo digital, ou se multiplicariam em incontáveis deidades, cada uma com características, evangelhos e sacrifícios próprios? Seguiriam protocolos bem definidos, sob tutela humana, ou desfrutariam de livre-arbítrio? Poderiam proporcionar hierofanias ao homem moderno, que vive em um cosmos dessacralizado (Eliade)?

Para responder a essas questões, antes de realizar um exercício de futurologia ou recorrer a um Deus Ex Machina, precisaríamos colocar os criadores dessas IAs diante do espelho. Também deveríamos enfrentar o desafio de reposicionar a noção de ser humano, compreendendo quais automatismos corporais e psíquicos são inevitáveis, e explorar as potencialidades esquecidas. Como a história da IA nos revela, muitas das habilidades dos homens vistas como alta expressão de inteligência geral puderam ser superadas com o uso de algoritmos simples, como no caso do xadrez. Temos muita dificuldade em assumir que, ainda que autopoiéticas, somos máquinas biológicas (Maturana & Varela), nem sempre tão criativas quanto imaginamos. São os resquícios antropocentristas que nos impedem de reconhecer (e aceitar) nossas imperfeições e de avaliar nossos superlativos desejos de potência, os quais invariavelmente projetamos nas divindades que fabricamos.

Por fim, alguns se questionam se um deus-máquina seria capaz de proporcionar as experiências comuns às religiões, como o mistério e a transcendência. A resposta parece afirmativa, visto que essas vivências geralmente são deflagradas pela leitura de livros sagrados e, portanto, também poderiam ser geradas por meio de outros códigos. Assim, para aqueles que têm dificuldade de se curvar diante de um robô, basta lembrá-los de que, muitas vezes, estão apenas trocando uma ilusão por outra, como sugere Machado de Assis. A tecnologia é sempre ambivalente.

Agradeço ao Rodrigo de Almeida Siqueira pelos comentários, discussões sobre IA e simulações com GPT-3.

Referências

BOSTROM, Nick. Superinteligência. Caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Tradução de Aurélio Antônio Monteiro, Clemente Gentil Penna, Fabiana Monteiro, Patrícia Ramos. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2018.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FELINTO, Erick. Religião das máquinas. Ensaios sobre o imaginário da cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2005.

GÜNTHER, Gotthard. La conscience des machines. Une métaphysique de la cybernétique suivi de “Cognition et volition”. Traduzido do alemão por Françoise Parrot e Engelbert Kronthaler. Paris: L’Harmattan, 2008.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2001.

KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. Tradução de Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2007.

LOVELOCK, James. Novacene. The Coming Age of Hyperintelligence. Massachusetts: The MIT Press, 2019.

MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. De máquinas e seres vivos. Autopoiese – a organização do vivo. Tradução de Juan Acuña LLorens. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.