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E-Commerce Caboclo: como a Amazônia Adentra, a seu Modo, a Era Digital

por Mauro Bellesa - publicado 25/04/2022 13:55 - última modificação 25/04/2022 13:55

Por Igor Venceslau, doutorando em geografia humana na USP. Mestre em geografia humana pela mesma instituição, com estágio na Universidade do Kentuky, EUA. Pesquisa a difusão do comércio eletrônico no território brasileiro, na constituição e expansão do meio técnico-científico-informacional e na imbricação de variáveis-chave do período: informação, finanças e logística. Membro da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) e do corpo editorial do Boletim Campineiro de Geografia.

Por Igor Venceslau, doutorando em geografia humana na USP. Mestre em geografia humana pela mesma instituição, com estágio na Universidade do Kentuky, EUA. Pesquisa a difusão do comércio eletrônico no território brasileiro, na constituição e expansão do meio técnico-científico-informacional e na imbricação de variáveis-chave do período: informação, finanças e logística. Membro da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) e do corpo editorial do Boletim Campineiro de Geografia.

20 de junho de 2021

Paradoxalmente, a empresa mais valiosa do mundo quase não atua na região que lhe empresou o nome. Nos últimos anos, assistimos a uma disputa muito maior pela utilização de um novo nome de domínio de navegação web (.amazon) do que propriamente um interesse genuíno de expandir seus negócios ali. Desde o início da pandemia, a Amazon tem inaugurado novos centros de distribuição em todas as regiões brasileiras (inaugurados em Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Recife e Fortaleza), o que antes era uma exclusividade da metrópole de São Paulo, com exceção da maior delas – a Amazônia. O que por um lado pode parecer apenas desinteresse em incluir uma região com um mercado consumidor disperso e diversos problemas desde a conectividade até a logística, por outro lado manifesta a própria incapacidade de empresas “globais” operarem em espaços de lentidão.

Obviamente é possível comprar on-line pelo amazon.com.br desde cidades da Amazônia brasileira, sobretudo nas metrópoles de Manaus e Belém. Contudo, o custo elevado do frete e o longo prazo de entrega praticamente inviabilizam o comércio eletrônico praticado pelas grandes empresas. A falta de conhecimento do território numa região onde as mercadorias se movimentam principalmente pelas águas e pelo ar adiciona outro desafio.

A partir de um trabalho de campo realizado em dezembro de 2021, apresentamos neste texto, brevemente, como a Amazônia tem criado, a partir da experiência da escassez, seu próprio modo de inserção na era digital.

Desde o início da pandemia com o fechamento compulsório das lojas físicas e das fronteiras nacionais e estaduais, a Amazônia foi a região brasileira que registrou maior crescimento do comércio eletrônico (dados da Ebit Nielsen), acima dos 100%. Sem a presença das grandes empresas do varejo on-line e diante da necessidade que emana dos lugares, surgiu uma experiência inédita denominada de e-commerce caboclo. Essa estratégia realizada por agentes regionais consiste em três etapas, correspondo ao que podemos propor como as variáveis-chave do período histórico atual, permitindo o nexo material-imaterial: 1) informação - levar Internet wi-fi gratuita para as cidades ribeirinhas, atendendo a uma população com pouca ou nenhuma conexão; 2) finanças – oferecer crédito próprio para uma população majoritariamente desbancarizada; 3) logística – realizar a entrega específica e quase sempre informal, o que depende de um conhecimento tácito detido por agentes locais. A principal empresa a adotar essa estratégia é a Bemol, maior rede de lojas físicas da Amazônia Ocidental e que se tornou o maior agente de e-commerce na região. Sediada em Manaus, oferece frete grátis e prazos rápidos para os estados do Amazonas, Roraima, Rondônia, Acre e oeste do Pará, aliando o modal rodoviário com o aéreo e o fluvial, sob o slogan “o jogo virou”.

Após oferecer conectividade, crédito e entrega nessas localidades, a Bemol inaugura uma loja física, invertendo a tendência geral: na Amazônia ribeirinha deste século, primeiro chega a loja virtual e depois a loja física. Mas essa última também não é criada segundo os parâmetros convencionais. Em Autazes, cidade ribeirinha distante cerca de cinco horas de Manaus (de barco ou pelo modal rodofluvial com duas balsas longas), foi inaugurada uma loja híbrida, dotada de um totem gigante onde os consumidores podem comprar produtos da loja virtual, num espaço que também serve como loja física e contando com auxílio de funcionários. Na tela, produtos em tamanho real, experiência de compra personalizada e realidade aumentada. Até os funcionários da entrega feita por caminhão ou barcos já estão equipados com tablets com sistemas inteligentes que informam em tempo real a entrega de um produto e permitem a escolha da melhor rota.

É nessa mesma região onde vimos surgir nos últimos anos uma startup, a NavegAM, dedicada exclusivamente à produção de um sistema para rastreamento de embarcações que transitam nos inúmeros rios e igarapés amazônicos, acompanhando em tempo “real” a distribuição das mercadorias do comércio eletrônico.

A controle remoto, a partir de alguns lugares do mundo e por poucos agentes, das atividades da chamada economia digital, não pode ser entendido como um processo inexorável. Apesar da força predominante de sua verticalidade, alguns lugares e regiões inteiras escapam de sua ação. São justamente nesses espaços de lentidão, em geral marginalizados no processo de globalização, onde agentes regionais reinventam as possibilidades de utilização da técnica contemporânea.

Entendidos pela racionalidade hegemônica como entraves ao processo de digitalização, os elementos do meio natural, como no caso da Amazônia, se imiscuem aos objetos tecnológicos da atualidade, conformando um meio híbrido, o que marca a sua forma específica de assimilação do “meio técnico-científico-informacional” (Santos, 1996). Nesse ponto, a tese da homogeneização do espaço humano na era digital e a ausência de fronteiras ou de distância não se confirma: temos, antes, um espaço heterogêneo e híbrido de objetos naturais, artificiais e cada vez mais conectados.

Embora a chegada do e-commerce em regiões mais remotas pode ser entendida, por alguns, como a destruição de uma forma de comércio local humanizado, preferimos pensar, a partir da forma híbrida como este vem se apresentando, numa humanidade aumentada em suas capacidades corpóreas e cognitivas de ação, para utilizar um termo de Sadin (2013). Portanto, vê-se surgir nos interstícios (espaço-temporais, territoriais) das contradições da difusão da tecnologia digital o modo particular de sua apropriação e, quiçá, mesmo de sua superação.

Foto 1 de Igor Venceslau

Website da Bemol, com o slogan “o jogo virou: frete grátis de verdade”

Foto 2 de Igor Venceslau

Antena para conexão de Internet na cidade ribeirinha de Autazes – AM. Foto: Igor Venceslau

Foto 3 de Igor Venceslau

Tótem em loja híbrida (física e virtual) na cidade ribeirinha de Autazes – AM. Foto: Igor Venceslau

Foto 4 de Igor Venceslau

Tablet com sistema de entregas para comércio eletrônico na Amazônia. Foto: Igor Venceslau

Foto 5 de Igor Venceslau

Mercadorias do e-commerce em embarque no porto de Manaus para cidades ribeirinhas da Amazônia. Foto: Igor Venceslau

Foto 6 de Igor Venceslau

Barco para logística de e-commerce em Manaus – AM. Foto: Igor Venceslau

Foto 7 de Igor Venceslau

Interface de sistema da empresa NavegAM para rastreamento de embarcações do e-commerce na Amazônia

Foto 8 de Igor Venceslau

Aeronave para transporte de mercadorias do e-commerce na rota Manaus – Porto Velho. Foto: Igor Venceslau

Foto 9 de Igor Venceslau

Entrega de mercadoria do e-commerce em canoa de moradora de comunidade de palafitas, no interior da Amazônia. Foto: Igor Venceslau

REFERÊNCIAS

SADIN, Éric. L’humanité augmentée. L’administration numérique du monde. Paris: L’échappée, 2013.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.