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Notas acerca da (a)historicidade dos algoritmos

por Fernanda Rezende - publicado 24/08/2021 11:05 - última modificação 13/09/2021 09:00

Por Abel Reis, M. Sc. em Engenharia de Sistemas e Computação pela UFRJ. Estudou Filosofia também na UFRJ e Informática na PUC-RJ

Por Abel Reis, M. Sc. em Engenharia de Sistemas e Computação pela UFRJ. Estudou Filosofia também na UFRJ e Informática na PUC-RJ.

O elemento criador, outrora o próprio ao Deus bíblico, transforma-se em caráter distintivo do agir humano. Sua atividade criadora é derradeiramente transposta para o seio dos negócios. - Martin Heidegger em "A sentença nietzschiana 'Deus está morto'"

Introdução

O presente artigo organiza na forma de curtas anotações, doze teses que procuram endereçar a temática da impossibilidade da historicidade como uma propriedade teoricamente possível em algoritmos – tendo sido este assunto, objeto de rápido debate na sessão deste grupo em 11/06/2021.

A abordagem aqui proposta parte de uma concepção não historiográfica, não marxista, e não sociológica da noção de Historicidade. O ângulo desta proposta é de matriz fenomenológico-existencialista, em particular, heideggeriano. A adoção deste ponto de vista autoriza compreender algoritmos como objetos técnicos desprovidos de temporalidade.

Torna-se assim possível desafiar de forma mais robusta e adequada o ideário tecno-romântico – à moda de Raymond Kurzweil – que acredita que a IA poderá alcançar no futuro próximo, estágio de maturidade técnica tal que sistemas inteligentes emulem, de maneira funcionalmente plena, capacidades cognitivas e afetivas humanas, ou ainda que máquinas se tornem suporte físico viável de longa duração, post-mortem, para cérebros humanos. Há uma interessante série no catálogo do Amazon Prime, Upload, que explora os riscos e possibilidades desse futuro distópico.

O framework conceitual que inspira este artigo é derivado da interpretação que o filósofo americano Hubert Dreyfus faz da fenomenologia de Heidegger. Dreyfus foi e ainda é crítico agudo da possibilidade de uma IA de fundo cognitivista (baseada em símbolos e regras), e tem desenvolvido uma rica formulação sobre a possibilidade de uma IA de base heideggeriana.

O que não é historicidade

1. Historicidade não diz respeito à tematização historiográfica ou ao conhecimento da História apoiado em dados sobre o passado (HEIDEGGER, Ser e Tempo).

2. Historicidade não diz respeito à interpretação da lógica e do conteúdo de eventos passados, de acordo com métodos historiográficos (HEIDEGGER, Ser e Tempo).

3. Historicidade também não diz respeito à condição de determinação das relações sociais de produção pelas estruturas econômica, jurídico­política e ideológica (Nico Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais).

O que é historicidade

4. Compreendemos historicidade como condição que torna possível aquilo que poderíamos chamar de devir histórico.

5. A historicidade engendra a temporalização fluída do vivido enquanto desenrolar de possibilidades existenciárias entrelaçando dessa maneira passado (experiências) e futuro (expectativas) no devir. É esse engendramento que produz a percepção humana da temporalidade.

6. O desenrolar do vivido, esse acontecer, é “gestado” entre nascimento e morte e assim é porque o ser-no-mundo está aberto no tempo. Assim, o homem existe historicamente porque é em sua essência, temporal.

7.  Desse modo, existir é direcionar-se à concreção fática do mundo através da realização de possibilidades de ser, possibilidades estas que se rearticulam a cada momento em que se é. Somos assim, a cada vez, um feixe de novas possibilidades de ser.

8.  A existência abarca as múltiplas dimensões da experiência – meio social, corpo, afetos, finitude. O homem encontra-se cotidianamente frente a um aí, imerso em um mundo de relações com coisas, e outros entes em geral.

9. Historicidade, pelo ângulo aqui enunciado, é uma dimensão da ordem da ontologia ainda que legitimo seja o papel da historiografia ou sociologia.

Algoritmos não tem historicidade

10. A natureza dos algoritmos é desassociada da temporalidade, da corporeidade, e dos afetos. Temporalidade como categoria ontológica (o percurso entre o nascimento e a morte), não como categoria cronológica ou tempo propriamente dito.

11.  Porque é desprovido de temporalidade, algoritmos não tem futuro, não tem passado, não tem porvir, não há nascimento, não há morte – exibem um eterno estado potencial de agora.

12.  Algoritmos comportam-se como abstrações executáveis em equipamentos eletrônicos, logo não tem corporeidade. O corpo é o fundamento não-representacional da cognição. Como disse Merleau-Ponty, “o corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem passar por representações, sem subordinar‐se a uma função simbólica ou objetivante”.

13.  A memória de máquina é uma eterna presentificação computacional (por meio de registros e estados computacionais), fenômeno que não provê substrato ontológico.

Conclusão

Acreditamos que a abordagem aqui exposta poderá contribuir para uma ampla e rica discussão sobre os fundamentos filosóficos de uma crítica à inteligência artificial e aos artefatos técnicos de software em geral, como tecnologias de alto impacto humano, econômico e social. Ademais o framework aqui adotado pode revelar-se valioso para suportar a análise das condições de possibilidade do uso de ferramentas de IA em estudos sobre a psicologia humana.