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O inimigo conhece o sistema?

por Fernanda Rezende - publicado 30/07/2021 11:55 - última modificação 13/09/2021 09:09

por José Costa Júnior, professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais. Realiza estágio pós-doutoral no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Por José Costa Júnior, professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais. Realiza estágio pós-doutoral no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Vivemos em circunstâncias nas quais praticamente todos os aspectos da vida cotidiana possuem uma relação direta ou indireta com a internet. Mesmo quando estamos desconectados, nossas atividades, interações e organizações estão envolvidas e continuam a se desenvolver no espaço virtual. Essa conjunção entre a vida offline e a vida online configura o que o filósofo Luciano Floridi chama de onlife, uma configuração da vida na qual o mundo digital mantém uma relação direta e intensa com o não-digital, numa situação em que tudo está ligado e produzindo efeitos reais, mesmo quando não estamos conectados. Informações falsas e inexatas que nos chegam pelas redes sociais e pela internet podem pautar comportamentos, crenças e opções, num exemplo da presença da virtualidade em circunstâncias fora de conexão. Segundo a análise de Floridi, torna-se necessário o desenvolvimento de uma relação crítica com as tecnologias, sem demonizá-las ou buscar retomar um mundo no qual essas possibilidades não existiam. Assim, a compreensão dos fenômenos desse cenário pauta a formação de uma cidadania que possa lidar com as dificuldades e desafios.

Um elemento importante desse contexto é a compreensão de que as expectativas iniciais de que a Internet promoveria emancipação e liberdade mostraram-se limitadas. O oferecimento de conhecimento e de interações diversas são realidades, mas também existem tensões na nossa relação com o mundo digital, conforme nos aponta a pesquisadora Marta Peirano no livro El inimigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias después de la economía de la atención (2019). Peirano descreve como estamos disponíveis para a vigilância, a manipulação e o vício comportamental, num contexto em que as grandes corporações são pautadas por modelos de negócios pouco preocupados com liberdade, nos quais nossos dados pessoais aparecem como o atrativo central. As estruturas e redes são construídas de modo a obter nossa atenção e dados, estimulando cada vez mais nossos mecanismos psicológicos. Essa situação abre espaço para rotinas de vigilância e vícios comportamentais, tudo sob um verniz de entretenimento que escapa à nossa avaliação. O título do livro de Peirano faz referência ao fato de que as grandes corporações da internet nos conhecem à fundo, assim como conhecem os sistemas que constroem para nos viciar, nos vigiar e nos manipular. Ao saber nossos gostos, nossas relações, nossas expectativas melhor do que nós mesmos, abrem possibilidades de controle e influência consideráveis.

Ao avaliar as inovações e implicações dessas tecnologias e da internet, principalmente em relação ao potencial da desinformação, o Conselho Europeu desenvolveu em 2017 um estudo intitulado Information Disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making (Desordem da Informação: Rumo a um quadro interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas). Nele, os pesquisadores Claire Wardle e Hossein Derakhshan apontaram que a movimentação na estrutura dos processos informacionais possibilitou a desorganização na produção e na distribuição de informações, com objetivos de impactar o modo como se recebe e se compartilha informações. Fenômenos identificados como “fake news” são parte dessa desordem, mas também processos nos quais as informações podem ser manipuladas ou construídas com inexatidão, com o objetivo de desinformar, tumultuar ou criar tensões ligadas às expectativas de verdade. No contexto político, por exemplo, discursos que falam diretamente para as inseguranças e tensões das pessoas, através de propostas simples, mas sem embasamentos, podem ser disseminados com muita facilidade.

Esse contexto também cria tensões em relação à credibilidade das fontes de informação e até mesmo em relação às expectativas de verdade por parte de quem as recebe. O termo “pós-verdade” tem sido utilizado para descrever essa situação na qual narrativas alternativas e a interpretação variada de fatos passam a compor os debates públicos. Em 2016, o Dicionário Oxford apontou a “pós-verdade” como a palavra do ano, devido à popularização do termo para descrever as atuais circunstâncias, principalmente a partir dos usos políticos desses mecanismos. O filósofo Lee McIntyre (2015) definiu “pós-verdade” como “situação relacionada ou denotando circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal.” Assim, o fenômeno da pós-verdade seria parte de uma crescente tendência internacional em que alguns se sentem encorajados a promover distorções na realidade de acordo com suas opiniões, crenças e objetivos. Não se trata apenas de desconsiderar os fatos, mas da possibilidade de que os fatos possam sempre ser reinterpretados, selecionados ou apresentados conforme o desejo de quem o faz. Um exemplo seriam os questionamentos a dados cientificamente estabelecidos, como por exemplo a esfericidade do planeta e o processo de evolução por seleção natural, que passam a ser questionados por narrativas alternativas que buscam minar a autoridade cientifica.

E quais são os efeitos políticos e sociais dos contextos de pós-verdade? O filósofo Michael P. Lynch analisa em The Internet of Us: Knowing More and Understanding Less in the Age of Big Data algumas das consequências do que identifica como “colapso da conversação pública”. Esse colapso impacta um dos pilares do sistema democrático, que é a discussão informada sobre concepções e fatos que pautam as decisões políticas e sociais.  Quando esses debates acontecem sem bases ou fundamentos, partindo de visões que não são amparadas por investigações sérias, corre-se o risco de que a discussão pública fique atomizada e polarizada, sem possibilidade de consensos democráticos ou respostas. Lynch considera que as sociedades se mantêm saudáveis enquanto seus cidadãos tomam decisões informadas e a partir de um nível básico de sinceridade pública. Sem tais traços, como em situações de desordem informacional, o “poder do povo” não passa de um slogan vazio, pois a possibilidade de uso do discurso organizado e exigente próprio da democracia se perde. Esse pressuposto encontra desafios nos contextos de desinformação da atualidade, no qual a intepretação dos fatos pode variar e se disseminar de acordo com a vontade de alguns.

A simbiose entre humanidade e tecnologia é um traço cada vez mais comum das nossas vidas no século XXI. Nesse sentido, um elemento fundamental onlife é conhecer os meios e mecanismos tecnológicos através dos quais a internet e as redes de interação social nos impactam, juntamente com a compreensão das consequências desse estado de coisas para nós e para a sociedade. Afinal, se “o inimigo conhece o sistema”, também precisamos compreendê-lo e, se possível, fazer as mudanças necessárias para não nos desumanizarmos nem tiranizar nossa vida política.

Referências

FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. Nova York: Springer, 2015.

LYNCH, Michael P. The Internet of Us. Knowing More and Understanding Less in the Age of Big Data. Nova York: Liveright, 2016

MCINTYRE, Lee. Pos-truth. Cambridge, MIT Press, 2018.

PEIRANO, Marta. El inimigo conoce el sistema: Manipulación de ideas, personas e influencias después de la economía de la atención. Madri. Debate, 2019.

WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. “Information disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making”. Council of Europe Report, v. 27, 2017.