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O que está em jogo na atual corrida tecnológica e qual o futuro do Brasil Digital?

por Fernanda Rezende - publicado 02/08/2021 18:50 - última modificação 13/09/2021 09:09

Por Anderson Röhe, especialista em PEB e na triangulação Brasil, China e EUA. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em RI pela Faculdade Damásio. Mestre em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).

Por Anderson Röhe, especialista em PEB e na triangulação Brasil, China e EUA. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em RI pela Faculdade Damásio. Mestre em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).

Em tempos de crise é mais urgente edificar pontes do que as destruir. Ao menos, é o que vem fazendo o governo Joe Biden, ao tentar (re)fazer as alianças com a Europa e propor uma ação conjunta para tentar conter o poder e avanço crescente das grandes empresas de tecnologia (Big Techs). Uma vez vistas como vilãs e/ou em parte responsáveis pelo agravamento de problemáticas anteriores à pandemia: desde a propagação de fake news e discursos de ódio à denúncias de monopólio, formação de quartéis e espionagem.

No Brasil, por sua vez, não há a mesma pressa ou disposição para acompanhar a atual corrida tecnológica. Ao menos no âmbito federal. Já que hoje o país é tido como um pária internacional. Pois, ao invés de investir em uma inserção autônoma, o país insiste em ficar na contramão de sua tradição diplomática, de caráter mais pragmático do que político-ideológico. Ao incorrer nos mesmos erros do passado, ou seja, de retorno ao alinhamento quase que automático aos EUA, porém sem contrapartidas objetivas. Mormente por ser ainda fiel à agenda ultraconservadora pregada pela administração Trump. E que tanto arranhou sua imagem global.

Portanto, antes de elogiar tal iniciativa, é preciso atentar para o que realmente está em jogo. Sobretudo para seu timing e modus operandi.

Panorâmica (overview)

Por ocasião do G7 - em junho de 2021 - o chefe da Otan afirmou não querer travar uma Guerra Fria com a República Popular da China (RPC). Porém alertou quanto à ameaça que a ascensão chinesa representa para a segurança internacional, visto que aquela se aproxima em termos militares e tecnológicos. Lembrando que o G7 reúne as maiores economias e a Otan é uma aliança política-militar criada após a 2ª Guerra Mundial em resposta à expansão comunista. Mas que vêm questionando o compromisso dos EUA em defender seus parceiros europeus.

Surpresa mesmo foi focar na RPC e adotar um tom menos hostil caso haja cooperação da Rússia. Principalmente, ao a) repreender a China sobre a questão de direitos humanos e vigilância na província de Xinjiang; b) pedir mais autonomia para Hong Kong e c) insistir em uma investigação mais a fundo sobre as origens do coronavírus.

Por isso a ênfase da declaração final. Ao que consideram: “falta de transparência e uso de desinformação pela China”, “comportamento assertivo” e “desafios sistêmicos à ordem internacional baseada em regras”. O que reforça a ideia de que o avanço chinês - capitaneado por suas Big Techs - deva ser contido, em virtude do que chamam de controle rígido sobre a política e vida cotidiana da sociedade chinesa. Como afirma Amy Webb em seu livro Os Nove Titãs da IA: como os gigantes da tecnologia e suas máquinas pensantes podem subverter a humanidade.

Nada mais legítimo, se não fosse a pressão atual da China sobre as Big Techs. O caso Alibaba é um bom exemplo. Visto que, de um lado, tanto democratas e Republicanos nos EUA quanto o próprio Partido Comunista Chinês concordam que algo deva ser feito, a fim de delimitar o poder e lucro excessivos das Big Techs, por outro, discordam do modo como será feito. Se através de banimento e/ou moratória por uma eventual regulação.

No entanto, a reflexão que se faz é: ameaça para quem, para quais valores/princípios? E, o mais relevante, de onde vem essa retórica? Isto é, parte de qual referencial?

Tal narrativa vem de uma mentalidade tradicionalista e visão de mundo ainda apegada à Guerra Fria, caracterizadas por uma disputa maniqueísta de combate ao comunismo. E que ainda serve de modelo para uma “sociedade padrão”. O que não só remete a um jogo de soma zero e contexto de crises sistêmicas, como também vai de encontro à principiologia chinesa, ao menos no plano discursivo, de coexistência pacífica, não interferência e autodeterminação dos povos (In: Palavras-chave para conhecer a China: governança da China. FGV Editora).

“Tecnologias da Adaptação”, e não de inovação

Em A Tecnologia da Adaptação - e como vencê-la, Evgeny Morozov já alertava para o fato de as tecnologias emergentes do século XXI - como 5G, Inteligência Artificial (IA) e Big Data – servirem de instrumento mais de manutenção do status quo do que de inovação propriamente dita. E que nada de realmente novo está sendo produzido, e sim revisitado. Como velhos preconceitos e retóricas construídas socio-historicamente.

Em The Costs of Connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalismo, Nick Couldry e Ulises A. Mejias caminham na mesma direção. Isto é, estamos não no último, mas no mais recente estágio de mercantilização da vida humana, pois sem a presença de limites regulatórios ou barreiras morais/éticas. Capitalização que, portanto, não se trata de uma simples metáfora. E sim de um processo que ainda está em curso.

Daí vem a crítica à Shoshana Zuboff em Big Other: Capitalismo de Vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. Ao defender sua mutação e pensar o Capitalismo de Vigilância como variante do Capitalismo de Informação.

Em outras palavras, há certa ingenuidade de Zuboff em acreditar que há um “novo” capitalismo. O que há, na verdade, é o velho capitalismo com roupagem nova. Dada a escala e seu atual alcance a mais pessoas, de forma mais rápida e em tempo real. Fenômeno explicado pelos chamados 5 Vs do Big Data (volume, velocidade, veracidade, variedade e valor).

Papéis de China e EUA hoje se invertem em IA e proteção de dados

Hoje há um olhar estreito para o que acontece na China. Mormente em termos de pré-julgamento de sua transformação digital. Pois algo vem ocorrendo e sem o referencial teórico-conceitual para classificá-lo como bom, ruim ou melhor. Um modelo híbrido que enseja o “socialismo com características chinesas”. A despeito de reducionismos e categorizações simplistas e/ou maniqueístas que intencionam rotulá-lo como um modelo arriscado ou mesmo disfuncional por ser considerado “cópia do original”.

Em particular, quanto à proximidade entre governo (Partido Comunista Chinês) e mercado (Big Techs). No sentido de otimização do processo de digitalização via dirigismo do Estado (eGov). Por meio de ingerência e planejamento da economia. Mas acompanhada de vigilância e controle social. O que não necessariamente está associado a algo ruim, e sim diferente dos padrões ocidentais, como argumenta a professora de Economia Política, Isabela Nogueira, no artigo O Estado na China (In: Revista Oikos, 2021).

Por outro lado, há todo um movimento em direção a uma cultura de proteção de dados e informações pessoais na China, com o advento de seu Novo Código Civil. Ao contrário dos EUA, que estão ficando para trás na atual disputa tecnológica por regulação da privacidade, pois ainda não dispõem de uma legislação própria e de alcance nacional.

Qual, então, o futuro do Brasil Digital?

O que está em jogo – sobretudo sob uma perspectiva brasileira de cálculo estratégico – não é bem uma questão de salvaguardas de direitos humanos e liberdades civis. E sim concorrencial, a fim de não ficar para trás e travar seu crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico.

Isto é, inquirir o como, em que contexto, com qual objetivo e no interesse de quem é feita a costura de tais alianças. Se o propósito é altruísta/ humanitário, no sentido de salvar o ecossistema planetário, ou político-ideológico, de mero retorno ao alinhamento de outrora.