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Outros aforismos em uma cidadania digital

por Mauro Bellesa - publicado 13/09/2021 09:12 - última modificação 13/09/2021 09:12

Por Wilson Oliveira Filho, artista multimídia e professor na Unesa, onde coordena o curso de gradução tecnológica em fotografia; mestre em comunicação e cultura e doutor em memória social pela Unirio, com bolsa sanduíche na Universidade de Chicago, EUA; fez estágio pós-doutoral na UFRJ.

Por Wilson Oliveira Filho, artista multimídia e professor na Unesa, onde coordena o curso de gradução tecnológica em fotografia; mestre em comunicação e cultura e doutor em memória social pela Unirio, com bolsa sanduíche na Universidade de Chicago, EUA; fez estágio pós-doutoral na UFRJ.

6 de setembro de 2021

Gifs animados despontam na rede como alternativas aos chamados “textões”. Talvez, no lugar desse texto, um vídeo ou até mesmo um meme (afinal o memeio é a memensagem estendendo e “memeticando” a mais conhecida máxima de Marshall McLuhan) pudesse por si só condensar melhor a ideia que proponho aos leitores que fazem parte ou se interessam pelas tão importantes reflexões dessa Cátedra. Os gifs mostram que a rede é audiovisual ampliando sua vocação plenamente textual como apontava Beatriz Sarlo. Dos hipertextos aos loops de vídeo ou fotos que as tecnologias digitais tornam mais e mais corriqueiros, podemos no campo da imagem pensar gifs como aforismos. Esse texto tenta se estruturar dessa forma. Seu tom tem esse modelo de pensamento que parece dar conta de situações complexas, pois pede complemento, envolvimento, pois não se esgota em suas linhas, mas no suplemento daquele que o lê. Aforismo, obra aberta por excelência, rizomático por vocação.

Talvez a principal escrita aforismática que mais impactou os estudos de mídia tenha sido a do próprio Marshall McLuhan assim como a de Nietzsche o foi para a filosofia. O teórico canadense foi lido de forma equivocada, escondida pelos cantos das universidades no Brasil (como relatou a professora Lucia Santaella em uma de nossas reuniões), com desconfiança e ironia por aqueles que aderem à primazia do texto padrão da escrita acadêmica (fundamental sem dúvida, mas não exclusivo por muitas vezes não ser inclusivo). Mais ainda, McLuhan foi lido como grosseiramente propôs Guy Debord em “A sociedade do espetáculo”, como o imbecil mais convicto do século XX.  Alguns aforismos que seguem podem nos ajudar a compreender os desafios da cidadania audiovisual planetária nesse capitalismo de vigilância-de-dados-de plataforma... Partimos de dois e com alguns outros costuramos não um manifesto pela cidadania planetária muito bem compilado por Felice et al, mas um giro pelas possibilidades de um globo que nem tanto sul, nem tanto norte precisa ser comum!

1-      “A nova interdependência criada pela eletricidade recria o mundo à imagem de uma aldeia global”.

2-      “A transformação do planeta em um único teatro global requer toda a população mundial não apenas como público, mas também como companhia de atores”.

O primeiro é bastante conhecido, sobretudo por reduzir parte de uma escrita já condensada em um termo, “Aldeia global”.  Associado inicialmente à televisão, meio envoltório, audiotátil em que McLuhan depositava suas esperanças (“A televisão compensa nossa miopia” ou “A guerra do Vietnã foi perdida pelos Estados Unidos nas salas de televisão da América”), a ideia se torna uma espécie de matriz para entender a globalização em termos midiáticos/tecnológicos. O segundo se torna mais curioso quando associamos uma outra enigmática provocação mcluhaniana: “Na espaçonave terra não existem passageiros, somos todos tripulação”. Na aldeia global, somos personagens, protagonistas e ao mesmo tempo tripulação. Participadores para retomar a definição de nosso gênio Hélio Oiticica.

A expressão aldeia global, que surge na obra de McLuhan nos anos 1960, já encontrava no conceito de teatro global dos anos 1950 sua origem. Não pretendemos, nem teríamos espaço para aqui investigar essa origem, talvez baste apontar então seus destinos como Lipovetsky e Serroy fizeram em “Tela Global” ou Vinicius Andrade Pereira em “Estendendo McLuhan” com a compreensão de uma memória global. Sigamos o método mcluhaniano de explorar e não explicar.

Para ilustrar seu método, McLuhan recorria ao belo texto de Edgar Alan Poe: “A descendent into the maelström” (https://www.bookyards.com/en/book/details/10299/A-Descent-Into-The-Maelstrom), de 1841. O conto trata da tentativa de como escapar de um naufrágio e do turbilhão ocasionado por este a partir da descrição de um homem que, para sair do vórtice de água que o cerca e engole, observa como os objetos adotam padrões e os imita. Para McLuhan, são os padrões que tardiamente se converteriam em Leis da mídia: o que uma tecnologia aperfeiçoa (enhance); o que a tecnologia torna obsoleto (obsolete); o que a tecnologia pode recuperar (retrieve) do que perdemos; como a tecnologia vai se reverter (reverse) quando levada ao limite.

Explorando os padrões, compreendendo que a entrada em cena de novas ferramentas traz novas percepções, podemos ler as questões relacionadas a um novo humano, não mais pós, não mais über, mas conectado ao outro local e globalmente. Não mais divíduo, infovíduo, mas ‘altervíduo’.  A pandemia traz uma nova possibilidade como pensarmos a aldeia global como vem tentando fazer o pesquisador italiano e professor da Universidade de Toronto Paolo Granata em seu “Global Village day” https://www.youtube.com/watch?v=jr0QfEQwmK4. Evento que homenageia McLuhan e recontextualiza a expressão para nosso delicado momento. De certa forma eventos assim reforçam como nossa cidadania planetária pode avançar, reconhecendo e separando padrões, criando práticas para além de ditames de diferentes instituições.

A aposta de McLuhan na cidade como uma sala de aula (cita as classroom) partia desse método e da recontextualização de treinamento da percepção em termos globais para educar e apontava já para uma necessária literacia midiática glocal. A cidade-planeta enquanto ainda habitável precisa compreender não só o termo aldeia global, mas a criação de um outro possível por parte de todos. Se o mais famoso aforismo “o meio é mensagem” lido de forma determinística e sem contexto, esquecendo seu complemento “o usuário é o conteúdo” ou o jogo de palavras “o meio é a massagem”, as big techs, por exemplo, precisam de alternativas enquanto mídias que são, pois continuam a entender o usuário como cifra e não como cidadão. Cifra que agora trabalha por vontade própria, e na maior parte do tempo sem saber, para os grandes grupos informacionais.

E aqui tal como um gif voltamos ao início. Sempre em loop, circuito, giro, cicumambulatio. Há uma contracorrente (um contra ambiente em termos mcluhanescos) para esse trabalho imaterial das redes, da lógica dos algoritmos que vem de todo um esforço feito pelos artistas. Seja nos ‘algoritmos’ na dadosfera onde, “a cultura do compartilhamento se cruza com a cultura da vigilância” (BEIGUELMAN, 2021, p.49). Nesse vórtex poético, a possibilidade dos algoritmos de gerar arte, seja na recombinação da imagem e som espalhados pela aldeia ‘netglobalizada’ dos que veem na baixa definição, nas possibilidades inexploradas da imagem como dado (Deleuze foi o primeiro e pensar essa possibilidade no final de “Imagem-tempo”) a possibilidade de co-criar e de ressignificar a presença no mundo global é uma necessidade. Trata-se de fato de algo que a aldeia já nos alerta: O ritual, a passagem de um lugar a outro, de uma narrativa a outra que operam os gifs. Os fluxos e refluxos (corsi e recorsi de Vico) das sóciotécnicas, das antropotécnicas, das semioses coletivas que algo tão banal e bacana como um gif pode nos alertar quando pensado como aforismo visual. Em mais uma máxima McLuhan nos ajuda a terminar: “No princípio era a montagem”. Na cidadania planetária talvez valha a remontagem de signos e sentidos para se chegar a uma aldeia global digital.

 

KERCKHOVE, Derrick De. Marshall McLuhan: Aforismos e profecias. São Paulo: Paulus, 2020.

BEIGUELMAN,  Gisele. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo, Ubu Editora, 2021.