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Precisamos falar sobre a liberdade dirigida: a questão da (auto)censura na internet

por Fernanda Rezende - publicado 20/12/2021 11:56 - última modificação 20/12/2021 11:56

por Anderson Röhe, especialista em PEB e na triangulação Brasil, China e EUA. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em RI pela Faculdade Damásio. Mestre em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).

por Anderson Röhe, especialista em PEB e na triangulação Brasil, China e EUA. Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduado em RI pela Faculdade Damásio. Mestre em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).

16 de dezembro de 2021

Para falar sobre liberdade na internet é preciso ter conhecimento estrutural de um todo que não pode ser compartimentado. Não apenas em relação ao papel do Estado sobre a liberdade individual, mas acerca de uma visão (ecos)sistêmica que requer leitura fria do que hoje ocorre em países tidos como referência em crescimento econômico, porém considerados “incivilizados”, como a China. Dada a escala e dinâmica de mudanças que acontecem na economia e sociedade chinesas, e que, por serem mitificadas como ameaça antidemocrática, não servem de modelo de desenvolvimento tecnológico para o Ocidente.

Pois o equívoco mais comum está em heurísticas e correlações espúrias que levam a inevitáveis reducionismos epistemológicos. É o chamado “solipsismo” ou equívoco em fazer comparações e estudar a Ásia a partir de um referencial dito ocidental.

Mormente acerca da relação da China com tecnologia, ao entendê-la como processo e continuidade, e não um fim em sim mesmo. Algo peculiar e até mesmo complexo sob a ótica eurocêntrica tradicional (Wang, 2021) que se prende às suas referências cartesianas do passado (Canclini, 2019). E que procura classificar o dirigismo estatal chinês como interferência típica de um regime totalitário, violador de patentes, segredos industrial-comercial e propriedade intelectual. Bem como predatório ao meio ambiente e opressor de minorias étnicas raciais. Isto é, a demonização da China ou sua desumanização como player global! O que resulta na naturalização de tais práticas discriminatórias; já que a China passa a ser vista como um ator sem direitos, legitimidade, mas principalmente sem credibilidade no sistema-mundo! Sobretudo no momento em que passa a influenciar o debate global sobre privacidade e proteção de dados (Souza apud CEBC, 2021), pauta que revolucionará o que se entende como humanidade.

Segundo Evgeny Morozov (2015) há muita hipocrisia em torno dessa retórica. Sobretudo em como foi sócio/historicamente construída, situada no tempo e ainda continua a ser reproduzida e reformulada para os dias atuais. Principalmente à medida que as potências do Norte Global procuram se colocar à parte dos processos de transformação digital e  datificação, já que extraem destes o que há de melhor, mas se eximem de responsabilidade por seus efeitos deletérios; como se nada tivessem contribuído para o atual estado das coisas (a tal isenção ou “excepcionalismo estadunidense”).

Em Who’s the true enemy of internet freedom - China, Russia, or the US?, Morozov expõe o oximoro, em especial no tocante à liberdade na internet, ao questionar o que é ser livre no século XXI. E Morozov é alguém a ser ouvido, dadas suas reflexões críticas acerca das consequências políticas e sociais dos progressos tecnológico e digital.

Afinal, o que são o desbloqueio automático de celulares por biometria facial e o cinturão de vídeo vigilância urbana se não tentativas (bem-sucedidas) de normalização dos estados de exceção? Não pela imposição da força por uma Espada de Dâmocles sob nossas cabeças, mas pela construção dos consensos já na horizontal (no plano individual). Ao introjetarmos uma “cultura da vigilância”, nos dizeres de Lyon (apud Oliveira, 2021), partindo do pressuposto de que “nos comportamos melhor quando observados”. E ao agirmos diferente, conforme o ambiente onde estamos, deixamos de ser autênticos. Logo, não há bem censura, mas uma liberdade modulada, “dirigida”. Dinâmica que confere autonomia, mas não dá muita margem de manobra ao cidadão comum que ficaria limitado em seu campo de ação, segundo sua condição financeira e conveniência para ter acesso a bens, produtos e serviços.

O Brasil, p. ex., é hoje um país “parcialmente livre” segundo o Relatório Freedom on the Net 2021 que aponta por aqui declínios contínuos de liberdade na internet. Assim como nos EUA, cujos programas de vigilância em massa têm sidos considerados incompatíveis com os direitos de privacidade dos cidadãos da União Europeia.

São estados de exceção que se naturalizam pelo (hiper) vigilantismo tecnototalitário e que hoje independem de sistema e/ou regime de governo, visto que presentes em democracias tradicionais como Reino Unido e EUA. Bastando, p. ex., priorizar bem-estar e segurança coletiva em detrimento da liberdade individual, sem que haja a devida contrapartida com avaliação de risco, compliance (regramento), enforcement (cumprimento de regras e normativas) e accountability (responsabilização e/ou prestação de contas).

Yuval Noah Harari (2018), em Why Technology Favors Tyranny, já alertava para o fato de que o aparecimento de “ditaduras digitais” independe de regime e sistema de governo. Seja este na China ou em Israel (Lemos, 2021). Bastando a implementação de novas tecnologias digitais de informação e comunicação em massa - como Inteligência Artificial (IA) e Big Data - sem o devido cuidado com limites éticos e salvaguardas contra potencial concentração de poder por pequenas elites e grupos de interesses em detrimento de uma grande maioria que sequer sabe e/ou consente com tais termos, possibilitando àquela minoria se locupletar política e financeiramente. Daí a propensão a líderes demagogos e autocráticos até mesmo onde há voto popular e alternância de poder (V-Dem, 2021).

Em Homo Deus, Harari (apud Canclini, 2019) afirma que, com a globalização e o fluxo internacional de dados (datificação), não há como diferenciar democracias de sistemas autoritários. Ou mesmo valorar o que se entende como liberdade, igualdade, justiça e até mesmo terrorismo. Mas apenas observar como hoje as sociedades operam e controlam o processamento de dados: se de forma ética, transparente e responsável, ou mais opaca (em que se infere tudo a respeito do cidadão - seus gostos pessoais, inclinações políticas e hábitos de consumo - embora este desconheça e/ou saiba quase nada acerca desses controladores/operadores, suas reais intenções ou mesmo planos de poder).

E Harari (2016) vai além. Haja vista que, à medida que a IA se desenvolve, atribui-se a ela a responsabilidade por “apagar muitas vantagens práticas da democracia e erodir os ideais de liberdade e igualdade”. Pois, ao reconfigurar praticamente todos os aspectos da vida cotidiana, a IA acaba por desacreditar o que ainda resta da visão democrática liberal.

Por isso, o método desse ensaio é contrapor o que se diz sobre a China contemporânea com aquelas que são consideradas as maiores democracias do mundo: EUA (pilar da democracia moderna), Índia (por sua representação demográfica) e Brasil (pela escalada do autoritarismo após a redemocratização). Pois foram os mais atingidos pela reversão do estado democrático de direito (V-Dem, 2021), já que acompanhados por uma crise pandêmica não só sanitária e socioeconômica, mas institucional. Especialmente em razão de uma retórica de que as nações que não fazem parte da aliança global pela democracia (Korybko, 2021) são tidas, falaciosamente, como uma ameaça existencial ao chamado mundo livre e responsáveis em grande medida por sua atual derrocada.

Referências:

CANCLINI, Néstor R. G. Ciudadanos reemplazados por algoritmos. CALAS – Centro Maria Sibylla Merian de Estudios Latinoamericanos Avanzados em Humanidades y Ciencias Sociales. Bielefeld University Press. Primera edición, 2019.

HARARI, Yuval N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Cia das Letras (2016).

SOUZA, Joyce; AVELINO, Rodolfo; DA SIVEIRA, Sergio Amadeu. A Sociedade de Controle: manipulação e modulação nas redes digitais. Editora Hedra; 1ª edição 22 fev. 2019.