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Redes de Conhecimento, de Violência & A Impressão de Categorias Sociais sobre os Corpos

por Mauro Bellesa - publicado 25/04/2022 12:55 - última modificação 25/04/2022 12:55

Por Filipe Albuquerque Russo, CEO da SagaPro, autor dos livros "Caro Jovem Adulto" e "Asfixia" e criador do blog Supereficiente Mental. Licenciado em Matemática pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP e pós-graduando em computação aplicada à educação no Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação da USP.

Por Filipe Albuquerque Russo, CEO da SagaPro, autor dos livros "Caro Jovem Adulto" e "Asfixia" e criador do blog Supereficiente Mental. Licenciado em Matemática pelo Instituto de Matemática e Estatística da USP e pós-graduando em computação aplicada à educação no Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação da USP.

19 de abril de 2022

Ao longo da trajetória da humanidade pelo cosmos e pelo planeta fabricou-se todo tipo de conhecimento, tecnologia e linguagem, com o passar do tempo e dos processos históricos fábricas especializadas foram construídas para a produção e socialização de saberes, práticas e categorias sociais. Na fábrica intitulada casa se produz saberes domésticos e familiares, na fábrica escola se produz saberes escolares e na fábrica universidade se produz saberes acadêmicos; estas são nossas redes primárias de conhecimento comunitário. Cada uma dessas fábricas se apresenta enquanto dispositivo, um ambiente a ser ativado pelos seus diversos agentes, cada qual interpretando seu devido papel social. Mas quem imprime os roteiros? Quem escreve as peças? Quem delega os papéis? Quem assiste ao show da vida diária, dos modos de produção e socialização de saberes, práticas e categorias sociais? Quem aplaude, vaia ou resenha o diário (inter)nacional? Dentre as produções de inúmeras redes secundárias de conhecimento vale ressaltar a publicação dos livros Fotoescritos do ConfinamentoCrônicas de QuarentenapoETes, os quais foram pensados, escritos e publicados colaborativamente durante a pandemia da Covid-19 e representam um enfrentamento poético, artístico e coletivo frente aos tempos turbulentos que enfrentamos e aos quais sobrevivemos. Também não posso deixar de enfatizar a importância da manutenção de mapeamentos sociais em nome da memória, visibilidade e pertencimento, tais como O Mapa dos Caçadores de Bons ExemplosO Mapa da Publicação IndependenteO Mapeamento da Memória Mekukradjá – Círculo de Saberes. Há ainda grupos se organizando virtualmente em diferentes plataformas digitais, assumindo diversas frentes sociais, tais como a Associação Multiétnica Wyka Kwara, a qual trabalha com as pautas indígenas e dos povos originários, e como o coletivo de artistes Aldeia Crypto, o qual trabalha com arte NFT.

Logo do NFT

Segundo Flusser (2017, p. 24) os carpinteiros não apenas informam a madeira (quando impõem a forma de mesa), mas também deformam a ideia de mesa (quando a distorcem na madeira). De modo equivalente e (trans)figurado, os pais não apenas informam as crianças (quando impõe a organização familiar), mas também deformam a ideia de família (quando a distorcem sobre os corpos de seus filhos); os educadores não apenas informam os educandos (quando impõe a organização escolar), mas também deformam a ideia de classe escolar (quando a distorcem sobre os corpos de seus educandos); os acadêmicos não apenas informam os graduandos (quando impõe a organização universitária), mas também deformam a ideia de academia (quando a distorcem sobre os corpos de seus graduandos, pós-graduandos, mestrandos, doutorandos, entre outros). Em outras palavras mais breves, nas fábricas casa, escola e universidade se fabricam as categorias sociais dos filhos, dos educandos, dos acadêmicos; ao imprimí-las sobre corpos vivos. Todas as instituições são gigantescas impressoras de signos, onde os densos de tinta imprimem verticalmente sobre os leves de tinta, por transferência (bancária), pressão (social) e gradiente de concentração. “Um sapateiro não faz unicamente sapatos de couro, mas também, por meio de sua atividade, faz de si mesmo um sapateiro” (Flusser, 2017, p. 34).

Grafite - Daniel Capilla

Daniel Capilla/Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0)

É difícil e foge ao escopo deste ensaio delimitar e investigar a fundo o surgimento, a dinâmica, a organização e a fluidez das redes de violência, uma subrede das redes de conhecimento, uma vez que a violência é aprendida, socializada e impressa contra o nosso corpo e os corpos dos nossos, passando assim a ser um conhecimento amplamente socializado e culturalizado. Por outro lado há uma responsabilidade em se pontuar quais são os grandes alvos dessa violência distribuída, rizomática, capilarizada e líquida, comecemos pois com a infância e a juventude. De acordo com a União Internacional de Telecomunicações, ITU (2022) na sigla em inglês, no que diz respeito à segurança das crianças que ativamente utilizam a internet 44% da população entrevistada se preocupa com cyberbullying, 27% com falhas na proteção de dados e 26% com a corrupção de menores, dados da UNESCO evidenciam que um terço da juventude global experiencia alguma forma de bullying. Culturas filicidas, do estupro, feminicídas e de modo mais geral, xenofóbicas e tanotopolíticas permeiam o mundo todo e o ciberespaço não é um lugar mais seguro por ser mais vigiado, há muito a internet já é povoada por haterstrollsstalkersghostsfakes e pedófilos, em outras palavras, ciberviolência e cibercrime. “No Brasil a violência é a principal causa de morte dos jovens. Em 2019, de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos que morreram no país por qualquer causa, 39 foram vítimas da violência letal” e “considerando a série histórica dos últimos onze anos (2009-2019), foram 333.330 jovens (15 a 29 anos) vítimas da violência letal no Brasil. São centenas de milhares de indivíduos que não tiveram a chance de concluir sua vida escolar, de construir um caminho profissional, de formar sua própria família ou de serem reconhecidos pelas suas conquistas no contexto social em que vivem” (Cerqueira et al., 2021, p. 27). As mortes por Covid-19 no Brasil já chegaram a 656 mil em março de 2022, praticamente o dobro da série histórica de vítimas de violência letal contra a juventude no Brasil, nós sofremos uma tremenda violência sanitária, administrativa e política contra a vida. O Atlas da Violência 2021 destaca a violência contra a juventude, as mulheres negras e não negras, pessoas negras, população LGBTQI+, contra as pessoas com deficiência e contra indígenas, em capítulos dedicados. Os casos de violência (sexual) nos Metaversos, a ressurgência de grupos neonazistas e os crimes (sexuais) de guerra na Ucrânia demonstram a força, a fluidez, a amplitude e o poder devastador das redes e culturas de violência. A guerra é a forma mais antiga e tradicional de espoliação interestatal.

Foto de Aleksandr Zakharov

Aleksandr Zakharov 1/Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0)

Da escala celular à populacional, o ser humano é uma rede, de células, tecidos, órgãos, sistemas, organismos, pessoas. Pensar que não agimos por meio de redes de bolhas (espumas) é pensar que somos onipresentes e oniscientes. Pessoas são redes móveis, de conhecimentos e violências, de riscos e potências. Risco e potência são polarizações da incerteza. As pessoas são preciosas e imprecisas, incertas e errantes. “Não é possível viver sem apostar no porvir” (Santaella, 2013, p. 22). Muito se fala de tecnologia de forma reificada, desvinculada de seu berço humano e socio-histórico. “A máquina […] tem por motivo imediato a construção de uma mediação material que sirva à sua verdadeira função existencial, a de constituir uma força impulsionadora do sistema de relações sociais” (Vieira Pinto, 2005, p. 86). Os celulares funcionam de modo a amplificar, modular, suprimir e reconfigurar nossa transcepção de sinais comunicacionais, nesse sentido configuram-se enquanto repetidores e qualificadores de sinal. O ruído é a informação ainda não organizada em linguagem humana, nós (re)configuramos o ruído a nossa imagem e som, com ou sem inteligência artificial.

 

Os fenômenos acontecem de forma espontânea, indelimitada e inominada. Ao nomeá-los imprimimos sobre eles uma categoria, que não poderia lhe ser mais alienígena, estrangeira, exterior e artificial. Revelar alguns aspectos do fenômeno significa também ocultar outros tantos, por oclusão. Toda categoria é oclusiva, a seleção das categorias carrega em si os vieses das nossas abordagens. Categoria social diz respeito a uma população de pessoas que possuem alguma característica cultural em comum, enquanto que a ciência é produtora, mantenedora e propagadora de realidades/categorias sociais, portanto longe de ser neutra e apolítica. Em humanidades ou ciências sociais as categorias “têm um efeito performativo sobre os objetos que designam, criando roteiros identificatórios para os sujeitos que ancoram sua autocompreensão e sua compreensão de mundo nesses alicerces” (Foucault, 2007; Hacking, 2006; Butler, 2018; apud Safatle, da Silva Junior e Dunker, 2021). As categorias são tão potentes que não apenas descrevem a realidade, mas a criam. Nós somos responsáveis pelas categorias sociais que criamos, ou seja, pelas classes sociais que nossas sociedades produzem, em qualquer uma de suas tantas fábricas.

Referências
Cerqueira, D. & al. (2021). Altas da Violência 2021. São Paulo: FBSP.
Flusser, V. (2017). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Ubu Editora.
ITU. (2022, 08 fevereiro). Safer Internet Day: Cyberbullying tops child online safety concerns. Itu.int. Recuperado em 18 de março de 2022, em https://www.itu.int/hub/2022/02/safer-internet-day-poll-cyberbullying-concerns/.
Safatle, V.; da Silva Junior, N. e Dunker, C. (2021). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica.
Santaella, L. (2013). Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus.
Vieira Pinto, A. (2005). O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

Imagem: NFT MCH+/Wikimedia Commons (CC0)