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Só não pode tirar um: dados de crianças e adolescentes no universo gamer da Twitch

por Fernanda Rezende - publicado 12/08/2021 11:50 - última modificação 13/09/2021 09:03

Por Thayla Bicalho Bertolozzi, mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades USP. Graduada em Relações Internacionais (USP). Pesquisadora no Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro-Cebrap).

Por Thayla Bicalho Bertolozzi, mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades USP. Graduada em Relações Internacionais (USP). Pesquisadora no Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro-Cebrap).

Em muitos jogos de RPG (Role Playing Game) e de tabuleiro os dados ditam o rumo dos eventos: são eles os responsáveis por determinar quão forte, quão inteligente, quão destro alguém será, ou quantas casas um participante deverá andar. E, aqui, é certo que estamos falando de um tipo específico de dado - da ferramenta, brinquedo ou elemento lúdico que, seja de plástico ou digital, tende a nos mostrar um resultado aleatório, geralmente variando de 1 a 6, ou de 1 a 4, 1 a 8, 1 a 12, 1 a 20 etc. Foi justamente nesse contexto que surgiu a expressão “só não pode tirar um”, o valor numérico mínimo dos dados, e que costuma denotar um sinal de grande azar do jogador.

Tais dados, porém, têm ao menos uma outra característica em comum, além do nome, com os dados cujo sinônimo pode ser "informações": se os dados usados nos jogos podem definir o rumo dos eventos - e até mesmo qual será o perfil de um determinado jogador -, os dados operacionais ou informacionais, assim como pessoais, também são fundamentais para embasar estatísticas, pesquisas e decisões de mercado consequentes de análises.

Para além disso, dados que identifiquem ou tornem alguém identificável também se assemelham, em alguma medida, à pontuação obtida nos dados lúdicos sobre quão ágil ou forte será sua personagem, ainda que não ditem quem ela será, especificamente.

Mas por que associá-los e falar de ambos neste momento? Isto se deve ao fato de que, agora, em agosto de 2021, a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) já poderá produzir sanções com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Mesmo antes disso, empresas já vinham tentando se adaptar para entrarem em conformidade com a LGPD, o que foi o caso da Twitch, plataforma de streaming pertencente à Amazon e comumente usada para transmissão de partidas de jogos e e-sports, fazendo com que seja a “queridinha” de crianças, adolescentes e adultos no Brasil e em outros países para tal finalidade.

Em outubro de 2021, portanto, a Twitch atualizou notas sobre privacidade e as transformou em um “Aviso de Privacidade”, tendo sido este citado, inclusive, nos termos de serviço da plataforma. Desde então, foram publicados detalhes sobre quais informações pessoais são coletadas, direitos e escolhas dos titulares de dados, além de outras pontuações sobre segurança, privacidade e retenção de dados.

No 12º capítulo, o Aviso diz respeito à privacidade das crianças. Segundo o texto, menores de 13 anos de idade não poderiam usar ou acessar os serviços da Twitch em nenhum momento e de nenhuma maneira, embasando-se na Lei de Proteção da Privacidade On-line das Crianças dos Estados Unidos (e a GDPR, regulação europeia, por sua vez, autoriza tal tratamento a partir dos 16 anos, muito embora também permita que os Estados Membros da União europeia possam prever, por lei, uma idade menor, desde que não inferior a 13), ainda que, no Brasil, a LGPD permita o tratamento de dados sem consentimento de responsáveis legais a partir dos 12 anos de idade. Apesar disso, a Twitch ressalta que, para residentes da EEE e do Brasil, onde o processamento tem base no consentimento, “[...] a Twitch não se envolverá conscientemente nesse processamento para os usuários cuja idade mínima para consentimento seja estabelecida pela lei de proteção de dados aplicável”.

Provavelmente almejando uma compreensão mais fácil por parte de seu público-alvo, em fevereiro de 2021, a plataforma disponibilizou um guia de escolhas de privacidade dos usuários, indicando o que precisa ser feito para ter suas necessidades de privacidade atendidas.

Todavia, esta não é uma discussão sobre o gap entre as idades previstas na LGPD, na GDPR e na Lei de Proteção da Privacidade On-line das Crianças dos Estados Unidos, seja ele de um ou quatro anos - muito embora esta também seja uma pauta pertinente -, mas sim sobre como, na prática, é complexo impedir ou dificultar que menores de 12 (ou 13) anos tenham acesso aos serviços não somente desta plataforma, mas também de todos os jogos que eventualmente são transmitidos por meio dela.

Ou seja: é inegável que as mudanças da Twitch se configuram enquanto um passo importante, mas não basta somente que a plataforma de streaming mude suas políticas sem que as diretrizes dos jogos transmitidos - como League of Legends, Fortnite, Overwatch e tantos outros - possuam uma previsão mínima sobre o tema em seus termos e políticas. Aos poucos, tal transformação vem ocorrendo, e esta é uma responsabilidade das empresas que fazem gestão de tais jogos, e não especificamente da Twitch, embora revele quão difícil pode ser a regulação nesse quesito mesmo que a plataforma pareça ter começado a se preocupar com temas regulatórios desde 2020.

Para além da mudança necessária nos termos dos jogos, mesmo somente dentro do âmbito da plataforma de streaming, é complexa a efetivação da regulação. Afinal, ao alcance de um clique, crianças podem acessar o site e registrar-se mesmo que sua idade vá contra os termos de serviço e o aviso de privacidade. Este é um problema que não compete apenas à Twitch, mas também à sociedade, à educação parental e aos limites que precisam ser impostos, porém é inegável que a quantidade de dados coletados, sobretudo dados públicos quando tais crianças passam a realizar streamings (vídeos de partidas de jogos que muitas vezes contêm imagens em tempo real de seu rosto e sua voz), acendem um alerta para a necessidade de se pensar em outros meios de efetivar a regulação.

Em um teste, ao tentar criar uma conta para uma criança ou pré-adolescente com 12 anos, idade prevista na LGPD, a Twitch nos impediu alegando que só é possível a partir dos 13 anos. Esta já é uma barreira muito importante já realizada pelo sistema. No entanto, crianças e pré-adolescentes menores de 13 anos poderiam simplesmente adicionar um ano de nascimento inferior ao seu para conseguir acesso à plataforma. Não só poderiam como o fazem: há até mesmo streamers nessa faixa de idade.

Como efetivar, então, uma regulação prevista tanto pela LGPD quanto pelos termos da plataforma? Segundo o mesmo aviso de privacidade, pais, mães e tutores de crianças menores de 13 anos que tenham criado contas na Twitch podem entrar em contato com a plataforma, por meio de privacy@twitch.tv, para que a conta da respectiva criança seja encerrada e seus dados apagados.

No entanto, considerando que a criança que forneceu um dado intencionalmente incorreto sobre seu ano de nascimento, é possível prever que muito provavelmente ela forneceu outros dados, também, de e-mail, e um nome de usuário distinto de seu nome (o que é muito comum em jogos e fóruns relacionados, e não diz respeito necessariamente a uma tentativa de falsear a identidade). Seria preciso provar que aquele usuário é, de fato, menor de idade, e que é o titular daquela conta da Twitch.

Como fazer isso, então, se o cadastro da plataforma não exige o nome real completo de usuários? É certo que é possível identificá-lo digitalmente de outras formas, que não com o uso do nome real completo, mas para pais, mães e tutores, esta pode ser uma tarefa complexa. Não ter o nome completo coletado é positivo, mas aqui também revela o aspecto negativo. E caso a Twitch acate todo e qualquer pedido de possíveis responsáveis sem a devida verificação, até mesmo streamers maiores de idade poderão ser afetados indevidamente por pessoas mal-intencionadas se passando por seus tutores.

Com a possibilidade de se cadastrar na plataforma a partir de uma conta do Facebook, também é possível que a criança ou pré-adolescente se utilize, inclusive, da conta dos pais para entrar na Twitch. Neste caso, caberá aos pais ter noção não apenas do que a criança faz em seu computador, mas também do que se passa com sua conta do Facebook.

Por fim, a questão que não se encerra por aqui é: basta somente que uma lei defina o que e como regular o tratamento de dados de crianças e adolescentes? E é suficiente que algumas das plataformas de streaming mais conhecidas estejam adequadas à legislação? A realidade atual já nos mostra que não. Conversas, da parte dos pais, com os filhos, podem ser úteis, mas certamente não resolverão por completo a onda de transmissão de jogos que abrange até mesmo crianças muito menores do que a idade prevista pela LGPD. Tudo isso só revela que ainda precisamos de mais ferramentas e, é claro, de mais diálogo.