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Transcomunicação

por Fernanda Rezende - publicado 20/07/2021 15:25 - última modificação 13/09/2021 09:11

Por Lucia Santaella, titular da Cátedra Oscar Sala em 2021.

Por Lucia Santaella, titular da Cátedra Oscar Sala em 2021

Diante da hipercomplexidade do mundo em que vivemos, tenho repetido ultimamente, com bastante ênfase, que devemos evitar o imediatismo do presentismo. Ou seja, é preciso recuar no tempo para melhor saltar no presente. Sem isso, os fossos abissais das contradições em que estamos instalados tornam-se opacos e indiscerníveis. Isso não significa que o passado em si possa funcionar como um abre-te sésamo. De acordo com Benjamin, o passado importa na medida que relampeja para revelar os instantes de perigo do presente. Os perigos são muitos, mas aquilo que nos cabe é pensar para compreender, pensar como um exercício de vidência, ver aquilo que está oculto pelo axioma das crenças e por teimosas e obsoletas categorias convencionadas.

Nesse contexto, sou levada a uma retrospecção do meu pensamento pelo menos desde que o universo digital dava os primeiros passos para se instalar de modo cada vez mais onipresente na vida social e cotidiana. Em 1999, o projeto de pesquisa que apresentei ao CNPq tinha o seguinte título: “Fundamentos biocognitivos da comunicação”. Apresentei o projeto com certa apreensão porque temia a pecha então em voga: “isto não é comunicação”. Nem vou discutir essa pecha, pois confio que a história do pensamento sempre se vinga das pechas limitadoras. Uma área de conhecimento não é feita de fronteiras arbitrariamente pré-definidas, mas por aquilo que os investigadores vivos estão fazendo. Vivos no sentido de estarem apalpando no presente as determinações para o futuro.

Assim tinha início o projeto: Tendo por objeto de estudo as redes comunicacionais da teleinformática, este projeto parte da hipótese de que essas redes não se fazem mais entender sob um ponto de vista meramente tecnológico, exigindo, ao contrário, investigações situadas nas interfaces complexas da biologia com simulações computacionais e a interatividade cérebro e máquina.

Nessa época, defendia que o funcionamento das redes de comunicação apresentavam semelhanças com o comportamento do sistema nervoso, do sistema imunológico, podendo ser simulado através de programas computacionais que estavam, na época, no centro das preocupações dos cientistas de inteligência artificial. A compreensão desse funcionamento parecia exigir, portanto, a interface e cooperação da pesquisa em comunicação com algumas disciplinas, tais como as ciências cognitivas, as ciências da informação, inteligência artificial e a biologia que, a despeito da especificidade de cada uma, estão sempre lidando com questões que são, antes de tudo, questões comunicacionais. As ciências da comunicação tinham, portanto, muito para dar e receber nessa convergência. Isso eu dizia em 1999.

Pode-se ver por aí que meu interesse não estava mais centrado naquilo que, mais de uma década depois, viria a chamar de mídia mania. Lancei o livro Cultura das mídias em 1992 para me despedir definitivamente desse termo daí para frente. O diagnóstico era simples. A palavra “mídia” que, por questões ideológicas, alguns continuam a chamar de “os media” ou “as media”, emergiu de modo alvoroçado como uma tradução da expressão new media, em inglês, termo com o qual os pesquisadores, especialmente no contexto norte-americano, estavam buscando dar conta das mudanças disruptivas que o computador estava trazendo para a cultura e a sociedade.

O problema, no nosso contexto, é que a palavra “mídia” entrou em um saco de gatos em que muito se falava e continua a se falar em mídia, sem saber muito bem de que mídia se está falando. As mídias são de muitos tipos caracterizados por lógicas próprias. Hoje, o novo saco de gatos são as redes. O problema não vem das palavras em si, mas do fato de que são usadas como novas para ocultar ideias velhas e, além de velhas, mal fundamentadas e mal pesquisadas.

Em 2015, meu novo projeto no CNPq tinha o título de “Por uma nova ontologia da comunicação” o que reclamava, consequentemente, por uma nova epistemologia. Na postulação do projeto, fiz uma afirmação que tenho repetido desde então: Tudo parece indicar que estamos vivendo o crepúsculo da onipresença das mídias sociais. Sem negar a continuidade de sua existência, sua presença não será mais exclusiva e imperativa à reflexão, pois elas estarão embutidas, invisíveis, miniaturizadas na composição de agregações reticulares hipercomplexas, o que não permitirá mais que o campo da comunicação seja pensado sob a soberania das mídias.

Não se tratava lá, nem aqui, evidentemente, de anunciar uma louvação salvacionista dos últimos gritos das tecnologias. Aliás, atravessamos, no momento, um estágio bastante distópico em relação a elas. Mas é preciso constatar que aquilo que está correndo por baixo do frisson antropocêntrico e egocentrado das redes sociais pode ser sintetizado nas novas expressões que, não sem razão, vêm sendo enunciadas, ou seja: o big data é o novo petróleo, a conectividade é o novo oxigênio e a inteligência artificial é a nova eletricidade.

De fato, cada vez mais incrementam-se ambientes de computação em rede globais, imersivos, invisíveis, construídos por meio da proliferação contínua de sensores inteligentes, câmeras, softwares, bases de dados e centros de dados massivos em um tecido de informação de abrangência mundial. Envolvendo as coisas e os humanos os dispositivos de conexão fornecem feedback sobre atividades, saúde e fitness. Já em funcionamento em alguns países, os sensores avisam sobre tudo, desde coisas que precisam de reparos até se o jardim já foi regado. Dispositivos embarcados e aplicativos para smartphones já permitem uma série de monitoramentos, inclusive para a leitura em tempo real dos recursos nos campos, florestas, oceanos e, especialmente, para o gerenciamento inteligente das cidades.

A realidade atual de conexão e comunicação entre pessoas está se expandindo até os objetos (máquinas e/ou artefatos) que as cercam. Tudo isso tende a interagir de maneira inteligente, gerando ações responsivas ao comportamento humano. Tais tendências caminham para transformar o gigantesco organismo transcomunicativo em um superorganismo planetário estendido por todas as peças dos ambientes.

Ao mesmo tempo, desde 2012, um cruzamento de fatores, especialmente a potência da escalabilidade computacional, o gigantismo dos dados e o aumento de complexidade das redes neurais artificiais conduziram a uma explosão da inteligência artificial que, com seus métodos de machine learning e deep learning está penetrando em todas as áreas de conhecimento e atividades humanas, especialmente o direito, a medicina, a economia, a administração, as comunicações e, inclusive, as artes.

Nos ambientes de pesquisa internacionais, a robótica evolucionária avança também a passos largos para desenvolver robôs capazes de identificar, analisar e interpretar o ambiente de maneira dinâmica e que aprendam com essas experiências, à maneira de um organismo vivo, dotado de inteligência. Busca-se também explorar a computação subjetiva que visa à emulação de alguns traços da subjetividade humana tais como a adaptação e flexibilidade em ambientes desconhecidos, da reflexibilidade, da percepção e das relações entre humanos, por meio de algoritmos capazes de desenvolvimento mental autônomo.

Por mais que tais condições nos atemorize, esse é o mundo em que o globo terrestre se converteu e que nem mesmo a pandemia foi capaz de paralisar. Tudo isso ocorre em ritmo estonteante e à revelia da mais recente tendência autoprotetora da guerra declarada contra o pretenso ataque das redes, paradoxalmente, as mesmas redes das quais o ser humano não tem nenhuma condição de se desgrudar, pois longe de estarem reclusas ao universo humano, as redes conectivas adquiriram tentáculos e fibras que vão do microfísico ao cosmos.

Os termos pós-mídia e transmídia já eram criticamente empregados pelas artes, bem antes que a mídia mania tomasse conta das comunicações. Não apenas a comunicação, quanto quaisquer áreas de conhecimento precisam dar um salto qualitativo ontológico e epistemológico, pois o conhecimento está sendo desafiado diante da necessidade de drásticas mudanças em nosso vocabulário, juntamente com a mudança de escala espaço-temporal do próprio pensamento: evolução dos códigos genéticos, taxas de mutação, relações cooperativas, sistemas cognitivos artificiais, enação, sustentabilidade, evolubilidade, extremofilia, eis os temas que estão sendo estudados em laboratórios avançados de arte-ciência no mundo, funcionando, eles mesmos, como enclaves mutacionais.

Em vista disso, urge que as ontologias planas devidamente diferenciadas nos seus modos de existência, coloquem-nos na contracorrente das narrativas antropocêntricas, mesmo quando elas aparecem disfarçadas de necronarrativas denunciadoras. A grande aceleração destrutiva que levou à crítica mudança do período geológico da Terra, o Antropoceno, ou Antrobsceno, no dizer de Parikka, exige que busquemos onde aterrar, uma busca de novas orientações políticas capazes de nos livrar do imbróglio ideológico e político do aceleracionismo e paradoxalmente da paralisia que afeta a nós, brasileiros. Urge também que nos coloquemos eticamente a contrapelo das pragas egóicas dos antagonismos. Enfim, urge que a comunicação olhe para o mundo e seja convidada a abandonar o seu casulo antropocêntrico. Hoje a comunicação deve ser trans, caso contrário ela já era, vagando nas brumas de um passado que não mais existe e que pouco serve para iluminar o presente.