Hiatos

por Sandra Sedini - publicado 02/08/2017 18:15 - última modificação 03/08/2017 13:26

Projeto Hiatos: a (des)memória das ditaduras na América Latina Hoje Pressupostos de caráter histórico: a ditadura como hiato A proposta dessa exposição, que acontecerá no Memorial de Resistência de São Paulo de 14/10/17 a 13/03/18, é refletir sobre a memória das ditaduras na América Latina, com destaque para o Brasil, a Argentina e o Chile. Um dos vetores a balizar essa exposição será o papel cumprido pelos relatórios das Comissões de Verdade nesse trabalho de recordação. Sociedades pós-ditatoriais são espaços de negociação e de conflitos entre memórias que se decantam e perfilam em função de questões privadas, comunitárias (pensemos nos grupos de ex-guerrilheiros, de parentes de desaparecidos etc.) sociais e até internacionais. Na América Latina essas memórias foram e são ainda negociadas de diferentes modos e em diferentes intensidades. Um país como a Argentina tem uma alta densidade e presença das marcas da ditadura em seu território e em sua paisagem política e histórica. Na outra ponta, no Brasil de um modo geral resiste-se muito mais a enfrentar a tarefa de elaborar essa memória, buscar a verdade e a justiça, estabelecer os marcos e marcas da recordação desse passado. Sua Comissão Nacional da Verdade demorou mais de um quarto de século para ser estabelecida em 2011. Todo ato de recordação se dá no presente e esse presente determina o que e como nos lembramos. Esse ponto será fundamental nesta exposição. Se na Argentina e no Chile as memórias das suas ditaduras se tornaram um elemento importante na autoimagem daqueles países e na produção de novas políticas, no Brasil o recalcamento da violência ditatorial se tornou mais um caso de memoricídio da violência que sempre caracterizou a nossa historia, desde seu período colonial. O passado ditatorial pode ser percebido como um “hiato”, ou seja, uma “fenda”, uma “falta” ou “interrupção”, na medida em que percebemos nele uma excepcionalidade que o destaca da história e de sua continuidade. Ao propormos uma curadoria inspirada nesse termo partimos desse pressuposto: ou seja, devemos encarar esse elemento de exceção que marcou o momento da ditadura. Essa exceção era caraterizada pela existência de um Estado autoritário, que utilizou-se de táticas terroristas, suspendendo o estado de direito, perseguindo e eliminando a sua população. Aceitar essa excepcionalidade é importante para pensarmos também na excepcionalidade dessa memória do mal. Por outro lado, sobretudo na América Latina, essa excepcionalidade não pode ocultar o fato da referida tradição de violência no Brasil e que também existe em outros países desse continente. Trata-se de uma violência advinda do Estado e de seus representantes e que também caracteriza a relação ente os diversos grupos sociais. Ou seja, temos que tomar o cuidado de refletir sobre a excepcionalidade dos momentos de ditadura, mas sem com isso apagar os elementos de continuidade da violência, por exemplo, da prática de tortura e de desaparecimento de parte da população nas mãos do aparelho de Estado. O “hiato”, portanto, não está rodeado de uma jardim edênico, ou seria um deserto no meio de uma frondosa floresta de direitos humanos, antes esse “hiato” é um momento de aprofundamento das tensões sociais que levaram ao acirramento da violência de Estado. Encarar desse modo essas ditaduras é importante para termos em mente que a memória desses “hiatos” deve servir de crítica a cada presente: todo ato de memória da ditadura deve ser também um tal momento de reflexão crítica. Temos que atentar para a excepcionalidade radical daqueles momentos, para suas características idiossincráticas, mas ao mesmo tempo permanecer atentos para o fato de que os conflitos sociais que estão na base daqueles momentos de crise não terem tido ainda uma resposta digna. O fascismo respondeu às demandas sociais com violência gerando as ditaduras; não aconteceu ainda uma resposta autêntica e à altura daquelas demandas, ou seja: não houve a verdadeira transformação social que permitiria uma verdadeira catarse da violência sofrida nos momentos de “hiato”. A tradução curatorial dessa paisagem histórica Diante da tarefa de repensar hoje os “hiatos” ditatoriais da América Latina, esta exposição promove o encontro de oito artistas que vêm se dedicando de modo original e expressivo ao tema da memória do mal nos séculos XX e XXI: Andreas Knitz, Clara Ianni, Fulvia Molina, Horst Hoheisel, Jaime Lauriano, Leila Danziger, Marcelo Brodsky e Rodrigo Yanes. O termo “hiato” que os une na curadoria pode ser pensado como um termo da medicina, onde hiato significa uma “fenda ou abertura no corpo humano”. Estaríamos aí no campo da memória como ferida: trauma. Mas hiato também pode ser entendido como “interrupção”, ou ainda, como “falta”, “intervalo”, “lacuna”. O dicionário Houaiss, de onde retiro essas definições, além de retomar o sentido fonético do termo, também recorda por último que hiato é uma palavra da geomorfologia que indica uma “lacuna estratigráfica”. Nada mais adequado para pensarmos a memória, já que as rochas são nada mais que camadas mnemônicas da Terra. O espaço da exposição é composto de um quadrado dentro de outro quadrado. Esse desenho vem ao encontro de uma outra metáfora importante quando se trata de se pensar a relação entre memória e história: normalmente pensamos que uma é a moldura da outra. Se pensarmos nas artes e nos artistas como agentes de e da memória (as Artes são filhas de Mnemosine), poderíamos projetar essa ideia no plano da exposição: no quadrado maior, que forma uma espécie de ampla moldura ao quadrado interno, os oito artistas expõem suas obras. Nelas encontraremos traduzidas as suas respectivas leituras da proposta curatorial. No quadrado interno estaríamos no campo da “história”. Não se trata, é claro, de uma visão positivista da história, mas, antes, de se pensar justamente as tramas da história que estão na base desses hiatos. Esse quadrado não será uma caixa de pandora que libera a verdade, mas antes uma black box do oblívio: nela procura-se fazer uma mise en scène daquilo que justamente emperra o trabalho de recordação. Estamos no lado noturno da linguagem e do simbólico. Se história deriva de histor, que vem do termo eidonai, derivado de “uidein”, ver, conhecer, mostramos nessa black box justamente o invisível que marca a história: como história de recalcamentos, desaparecimentos, enterros. Se o trauma é o invivível, o hiato é o “inhistoriável”: mas tanto trauma como a história da violência demandam a sua inscrição. A ideia com a exposição é por em movimento, colocar em debate porquê esses hiatos são muitas vezes enterrados, se tornam feridas que não podem ser tocadas e são mascaradas pelo brilho do presente. Aqui os níveis privados, íntimos, até o sócio-político têm que ser levados em conta. O ideal seria que esse traçado da exposição entre memória e história na verdade rompesse, via diálogo imagético e conceitual, a diferença estanque entre memória, história e esquecimento, entre quadro e moldura (ergon e parergon). MSS