Brasil, 25 anos de democracia – avaliação crítica: instituições de representação, sociedade civil/cultura política e políticas públicas

por Marilda Gifalli - publicado 14/05/2013 18:51 - última modificação 14/05/2013 18:51

Objetivo

Criar o ambiente acadêmico adequado para exame e aplicação da abordagem da qualidade da democracia no Brasil

O Grupo de Pesquisa sobre a Qualidade da Democracia pretende reunir reflexões, artigos de opinião, livros, entrevistas e textos de resultados de pesquisas de autoria de acadêmicos, escritores, jornalistas e artistas, entre outros, que se dedicam ao tema da democracia da perspectiva de sua qualidade.

O Brasil está completando 25 anos de sua mais recente experiência democrática. Nessa fase, os ciclos eleitorais para a escolha de governos se sucedem segundo as regras constitucionais e garantem a alternância no poder.  Estão hoje mais garantidas as liberdades individuais e alguns direitos de cidadania, o que indica alguma melhoria no funcionamento das instituições republicanas. Depois de um interregno de mais de duas décadas de regime autoritário as forças armadas retornaram às suas funções profissionais e, mais importante, nenhum ator político relevante reivindica, no momento, meios antidemocráticos para competir ou chegar ao governo.

Tais progressos, porém, seriam o bastante para se afirmar que a democracia está completamente consolidada? É inegável que o país convive com déficits e distorções importantes no funcionamento do regime democrático. Práticas de abuso de poder, como a crescente ocorrência do fenômeno da corrupção, indicam que o império da lei ainda não está completamente estabelecido. O federalismo brasileiro tem falhas e desequilíbrios evidentes, a começar pelos mecanismos eleitorais que levam a sensíveis desigualdades no valor do voto em um bom numero de estados do país. É também visível o tratamento desigual recebido por diferentes segmentos da população brasileira quanto aos seus direitos, a exemplo da insuficiente representação feminina em governos e no Congresso Nacional. Esse exemplo, como muitos outros, poderia indicar que o processo de extensão da cidadania ainda não está completo. Há também importantes assimetrias e distorções no funcionamento das instituições republicanas, limitando, por uma parte, a capacidade de fiscalização e controle interinstitucional e, por outra, a função de representação da sociedade que cabe aos partidos políticos e ao parlamento. Esses limites não põem em dúvida a existência da democracia, mas colocam em questão a sua qualidade.

Nenhum dos aspectos mencionados implica tampouco em desconhecer os avanços econômicos e sociais verificados no país nas últimas duas décadas de funcionamento do sistema democrático. A estabilidade econômica e o controle da inflação mudaram para melhor as condições de sobrevivência e de participação nos benefícios de consumo de vários segmentos populacionais, e uma maior atenção à questão social resultou na melhora de alguns índices que medem as desigualdades. Não obstante, é evidente que o processo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas demandadas pela sociedade enfrenta limites sérios quanto à sua eficiência e eficácia. Em muitas áreas de atividade governamental o planejamento ainda está ausente e permanecem desperdícios que, por sua vez, são agravados pela malversação de fundos e pela corrupção. Ademais, os critérios que informam o processo de tomada de decisões nem sempre levam em consideração as desigualdades regionais, sociais e econômicas da sociedade brasileira.

A perspectiva da qualidade da democracia, impondo exigências de mensuração dos mecanismos de responsabilização vertical, societal e horizontal, da participação política dos cidadãos e da responsividade de governos pressupõe o rigor analítico próprio do debate publico e dos métodos de conhecimento científico. Envolve sobretudo um claro compromisso público ético e moral com o pressuposto de que democracia pode ser aperfeiçoada em benefício do bem estar e da qualidade de vida das pessoas. O que pressupõe ainda a existência de plataformas abertas de debate visando o aprimoramento da Qualidade da Democracia no país. Este Grupo de Pesquisa do IEA se constitui para realizar esses objetivos.

Justificativa

A experiência internacional mostra que eleições são indispensáveis para a existência da democracia, mas a análise dos processos de democratização dos últimos 40 anos, em várias partes do mundo, mostrou que elas não garantem per se a instauração de um regime político capaz de assegurar princípios fundamentais como o primado da lei, o respeito aos direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos e o controle e a fiscalização de governos. Apesar de sinalizar que o antigo regime terminou e que, doravante, a escolha de quem governa está submetida ao princípio da soberania popular, a vigência de eleições não tem impedido que, em vários casos, mesmo evoluindo no sentido de garantir a governabilidade, democracias eleitorais não atendam necessariamente a todos os critérios segundo os quais um sistema político autoritário se transforma em democrático. No Leste Europeu, na Ásia e na América Latina, países que consolidaram processos eleitorais competitivos convivem com a existência de governos que violam os princípios de igualdade perante a lei, usam a corrupção e a malversação de fundos públicos para realizar objetivos privados e dificultam ou bloqueiam o funcionamento dos mecanismos de accountability vertical, social e horizontal. Nesses casos, o que está em questão não é se a democracia existe, mas a sua qualidade (Shin, 2005; Morlino, 2002; Diamond e Morlino, 2005; O’Donnell, Cullell e Iazetta, 2004; Schmitter, 2005; Lipjhart, 1999).

É por essa razão que a definição de democracia voltou a ocupar o debate político contemporâneo. Apesar das controvérsias herdadas do século XIX, a literatura sobre as experiências recentes de democratização classificou-a como um fenômeno de natureza multidimensional que envolve eleições, diferentes instituições e a cultura cívica dos cidadãos. Enquanto o significado mais usual de democracia, na literatura especializada, se refere preferencialmente aos procedimentos e aos mecanismos competitivos de escolha de governos através de eleições, outras abordagens do fenômeno democrático ampliaram a compreensão do conceito, incluindo tanto as suas dimensões institucionais como aquelas que se referem aos conteúdos da democracia e os seus resultados práticos no terreno da economia e da sociedade.

Sob a influência das abordagens minimalista de Schumpeter (1961) e procedimentalista de Dahl (1971), vários autores definiram a democracia em termos de participação, competição e contestação pacífica pelo poder. Assim, o estabelecimento de um regime democrático implicaria basicamente em condições mínimas como: 1) direito dos cidadãos escolherem governos por meio de eleições com a participação de todos os membros adultos da comunidade política; 2) eleições regulares, livres, competitivas e abertas; 3) garantia de direitos de expressão, reunião e organização, em especial, de partidos políticos para competir pelo poder; e 4) acesso a fontes alternativas de informação sobre a ação de governos e o processo político. Essa definição explicita porque qualquer sistema político que não se baseie em processos competitivos de escolha de autoridades públicas, capazes de torná-las dependentes do voto da massa de cidadãos, isto é, do mecanismo de accountability vertical, não pode ser considerado uma democracia.

Mas a ênfase minimalista de Schumpeter e de seus seguidores é vulnerável ao que outros autores classificaram como “falácia eleitoralista”, isto é, a tendência de se privilegiar as eleições sobre outras dimensões da democracia (Karl, 2000). De fato, ao definir a democracia essencialmente como um método de escolha de governos entre elites que competem pela posição, a vertente minimalista dá pouca importância ao que acontece com as demais instituições durante a democratização. Instituições como o parlamento, os partidos, o judiciário ou a polícia podem funcionar de forma deficitária ou incompatível com a doutrina da separação de poderes, mesmo convivendo com um regime de regras eleitorais. Exemplos recentes são os casos da Rússia, do Irã, do Paquistão e, no contexto latino-americano, do Peru sob Fujimori, da Bolívia e do Equador na fase de decisão de suas novas constituições, e da Venezuela sob Chávez. Nesses casos, freqüentemente a oposição não apenas tem sido impedida de competir em condições de igualdade – o que contraria os critérios das abordagens citadas antes - como não encontra amparo em instituições como a policia judiciária, o ministério público, o próprio poder judiciário ou o parlamento, quando, por exemplo, restrições à liberdade de imprensa e/ou à mídia eletrônica constrangem o direito de participação e o acesso dos cidadãos a informações alternativas sobre o processo político.

Por outra parte, ao discutir os procedimentos democráticos, Robert Dahl (1971) ampliou a definição do conceito com sua análise das poliarquias, mostrando que para que o princípio de contestação do poder esteja assegurado é também indispensável que a participação dos cidadãos na escolha de governos seja universal e assegure a possibilidade de que eles próprios possam ser escolhidos para formá-los. Outra característica central da democracia, para o autor, é a exigência de responsividade de governos e lideranças políticas diante dos cidadãos.

Essas condições envolvem garantias relativas ao direito de organização e representação da sociedade civil, em especial, em partidos políticos, através dos quais se supõe que a pluralidade de concepções e interesses que constituem a sociedade possam se expressar. Mas elas implicam também na necessidade de que princípios internalizados em instituições – como a noção de equilíbrio entre poderes ou o respeito aos direitos de minorias – sejam garantidos por uma constituição aceita como legítima pela sociedade, ou seja, pela dimensão jurídico-legal relativa a valores compartilhados pela maioria dos membros da comunidade política. Embora essa visão faça referência a conteúdos da democracia, a sua ênfase mais importante são os procedimentos democráticos, cujo funcionamento depende da existência e do desempenho de instituições criadas para esse fim.

Uma perspectiva concorrente, embora complementar às outras, define a democracia em termos de sua qualidade, tornando mais central o foco nos conteúdos do regime democrático. Utilizando-se de uma analogia com o funcionamento do mercado, o conceito refere-se à qualidade do produto ou serviço produzido segundo procedimentos, conteúdos e resultados singulares. A qualidade envolve processos controlados por métodos e timing precisos, singulares, capazes de atribuir características específicas ao produto ou serviço oferecido para satisfazer as expectativas de seus consumidores potenciais. No caso da democracia, espera-se que esse regime seja capaz de satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto à missão que eles atribuem aos governos (qualidade de resultados); à garantia de seus direitos de associação e de gozo da liberdade e da igualdade políticas necessárias para que possam alcançar seus interesses e preferências (qualidade de conteúdo); e à existência de mecanismos institucionais, de escolha de governantes e de checks and balances, destinados a capacitar os cidadãos a avaliar e julgar o desempenho de governos e de representantes escolhidos (qualidade de procedimentos). Instituições e procedimentos são vistos, então, como meios de realização de princípios, conteúdos e resultados esperados pela sociedade do processo político. Além disso, a exigência de participação dos cidadãos envolve a existência de graus de cultura cívica capazes de legitimar e dar vitalidade ao sistema. 

Com base nesses pressupostos, Diamond e Morlino (2005 ou 4?) identificaram oito dimensões segundo as quais a qualidade da democracia pode variar. As cinco primeiras correspondem a regras de procedimentos, embora também sejam relativas ao seu conteúdo: o primado da lei, a participação e a competição políticas, e as modalidades de accountability (vertical, social e horizontal); as duas seguintes são essencialmente substantivas: de um lado, o respeito por liberdades civis e os direitos políticos e, de outro, como conseqüência do anterior, a garantia de igualdade política e de seus correlatos, como a igualdade social e econômica; por último, é mencionado um atributo que integra procedimentos a conteúdos, ou seja, a responsividade de governos e dos representantes, por meio do que os cidadãos podem avaliar e julgar se as políticas públicas, assim como o funcionamento prático do regime (leis, instituições, procedimentos e estrutura de gastos públicos) correspondem aos seus interesses e preferências. Embora esta perspectiva defina a democracia fundamentalmente em termos dos seus princípios e conteúdos mais importantes, o que supõe a percepção dos cidadãos a seu respeito, fica claro que ela faz a integração de procedimentos institucionais a conteúdos, sem deixar de se referir aos resultados práticos do regime com base no pressuposto de que a igualdade social e econômica pode ser alcançada se e quando a igualdade política for efetiva.

A noção de qualidade da democracia tem exigências, portanto, que vão além da simples institucionalização de eleições livres e competitivas; essas são meios de afirmar e garantir direitos de cidadania em decorrência da participação popular, mas também, fator propulsor de condições institucionais que estabelecem o equilíbrio entre os poderes e a obrigação de governos e representantes prestarem contas de suas ações; é quanto a isso que o papel dos partidos políticos e do parlamento é indispensável. O escopo dessa abordagem é, portanto, o de examinar as condiçoes em que as instituiçoes de representaçao, a participaçao política dos cidadáos e a cultura política que prevalece na sociedade interagem no processo de funcionamento do regime democrático e, em especial, no que se refere as suas promessas relativas aos princípios de liberdade e igualdade política; a qualidade do regime democrático depende do alcance desses objetivos fundamentais, e essa nova abordagem se propóe a examinar essa realidade.

Impactos Científicos e Sociais: a atividade do Grupo estará dirigida ao debate e produção de conhecimento no âmbito do tema proposto e, afora isso, pretende influir no debate público das questões que envolvem o aperfeiçoamento do regime democrático no Brasil. Nesse sentido, terá papel central a atividade do blog http://qualidadedademocracia.com.br

Áreas do Conhecimento: Ciência Política, Sociologia e Direito;

Membros Permanentes

Brasilio Sallum; Carlos Melo; Cícero Araújo; Cláudio Couto; Edison Nunes: Eduardo Graeff; Eduardo Portella; Elizabeth Balbachevsky; Eunice Ribeiro Durham; Fernando Filgueiras; Francisco Weffort: Helena Sampaio; José Álvaro Moisés; Leôncio Martins Rodrigues; Lourdes Sola; Lucio Rennó; Marco Aurélio Nogueira; Marcus André Melo; Maria Celina D'Araujo; Nina Ranieri; Nuno Coimbra Mesquita; Rachel Meneguello.