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O Voo da Coruja

por Mauro Bellesa - publicado 31/07/2013 13:45 - última modificação 18/09/2013 17:29
Rights: Alexey Dodsworth Magnavita

Relato crítico do debate "O Que Está Acontecendo?", realizado em 21 de junho de 2013, de autoria de Alexey Dodsworth Magnavita, que foi também um dos debatedores do evento.

Alexey Dodsworth Magnavita*

O filósofo alemão Hegel (1770-1831) costumava explicar o fato de a coruja ser o animal-símbolo da filosofia por se tratar de uma ave que alça voo quando o dia já se foi. Há muitas interpretações para tais dizeres, e uma delas é a de que pensamos o mundo quando os fatos já se sucederam. “A filosofia sempre chega tarde demais”, dizia Hegel. Mas há outras leituras possíveis e mais otimistas a respeito da filosofia, como a que nos recorda da capacidade da coruja para girar a própria cabeça num ângulo de 360º, vendo o mundo a partir de ângulos inviáveis para outros seres. Humanos que somos, demandamos muitas cabeças para conseguir enxergar um cenário com a amplitude devida e, assim, nos tornamos a necessária coruja.

Falemos, pois, dos participantes do debate no IEA, no dia 21 de junho, sobre as manifestações populares: é por demais usual a crítica de que intelectuais costumam cometer o equívoco de observar nosso mundo a partir de um patamar excessivamente teórico, como “cabeças sem corpo”. Todavia, ao contrário do que muitas vezes se espera, os acadêmicos presentes (tanto no sentido físico quanto no virtual) ao debate não pareciam estar nas alturas difíceis de atingir das tradicionais torres de marfim, demonstrando uma percepção sensível e clara da sucessão de manifestações que tomou conta do Brasil em 2013. Ficou evidente para mim que os acadêmicos presentes tinham – cada qual dando maior ou menor ênfase a pontos distintos – ótimas análises sobre os atuais movimentos populares. Não me parece, portanto, que a coruja tenha voado tarde demais.

É digno de destaque que o evento tenha sido praticamente salvo por Jorge Luiz Campos, um ativista do Movimento Passe Livre (MPL) que estava presente. Ao solucionar um problema tecnológico, o ativista permitiu a transmissão do encontro pela internet. Assim como o MPL tem a proposta de melhorar a mobilidade do povo no espaço da cidade, foi o mesmo MPL presente no evento quem possibilitou nossa mobilidade conectivo-virtual. Faço questão de destacar a participação do ativista do MPL, sobretudo por ter percebido certo “apagamento” de sua presença nas notícias veiculadas pela grande mídia sobre o evento. Causa-me estranheza tal esquecimento da imprensa em relação a um personagem tão significativo – afinal, estávamos lá para discutir um fenômeno social desencadeado pelo MPL.

A maioria dos acadêmicos presentes concordou num ponto que parece ter sido ignorado (quiçá, propositalmente apagado) pela grande mídia: as manifestações populares não tinham uma pauta vaga. Elas foram desencadeadas pelo MPL e tinham, sim, objetivos muito claros. Ainda que algumas reportagens pareçam ter a deliberada intenção de fazer parecer que os protestos “não tinham uma pauta clara”, a verdade dos fatos aponta para outra direção. Desde o início, o que se pleiteia é o passe livre no transporte público para todos os cidadãos brasileiros, e os jovens do MPL estão longe de serem vagos ou difusos sobre aquilo que demandam. Não faltam artigos e até mesmo vídeos no YouTube demonstrando – até com desenhos, para os maus entendedores – que a gratuidade do transporte público não é uma fantasia, não é delírio, tendo sido já proposta por Luiza Erundina quando foi prefeita da cidade de São Paulo.

Dentre os presentes, chamou-me a atenção o discurso do antropólogo italiano Massimo Cavenacci: foi ele quem mais se manteve conectado às propostas desencadeadas pelo MPL. Cavenacci criticou duramente a questão da catraca nos ônibus. Note, caro leitor, que, ainda que também sejam cobrados, na Itália os ônibus não possuem catraca. É o passageiro que, por livre e espontânea consciência, cumpre o acordo e valida o bilhete pelo qual pagou num “tabaccaio” (posto de venda de bilhetes, dentre outras conveniências). À parte o fato de termos que pagar pelo transporte público, a catraca brasileira soa ofensiva a qualquer um que tenha tido a oportunidade de vislumbrar os ônibus europeus. A catraca lembra uma aranha de metal acusatória a insinuar: "Povo brasileiro, você é desonesto e precisa ser tratado como animal num curral". É um símbolo opressor e discriminativo, conforme lembrou o professor Canevacci.

(Digressão pessoal: catracas nos convencem da lenda da desonestidade brasileira e até nos seduzem a corroborar tais fantasias – brasileiros costumam dizer que “brasileiros são desonestos”. Quando ouço tais afirmações, sempre me dá vontade de perguntar se a pessoa é estrangeira. Invariavelmente, não é. Este “brasileiro” negativista existe como uma espécie de fantasma a nos assombrar e, ainda que exista na realidade dos fatos, aposto que sua incidência é menor do que fantasiamos. As pessoas são, em sua maioria, gente de bem. Não, não precisamos da catraca.)

Evidentemente, com o correr dos dias, as manifestações passaram a abarcar questões que não se restringiam às do MPL, e isso foi muito bem salientado pela maioria dos participantes, em especial pelo próprio ativista Jorge Luiz Campos, e pela professora Arlene Clemesha, que apontaram algo que também percebo: a tentativa de infiltração de grupos fascistóides nos movimentos populares e a notável incompetência policial para lidar com manifestações democráticas legítimas.

Como bem destacaram Sérgio Adorno, Renato Janine Ribeiro e Nicolas Lechopier, as vias usuais de reivindicação política estão desgastadas e se revelam insuficientes. Deste modo, estamos vivendo um momento de reinvenção política. Empolgada pelas manifestações, a população espontaneamente se organizou em torno de outras pautas, temas tão sortidos quanto – muitas vezes – conflitantes. Esquerda e direita se misturaram (mais num sentido de confronto que de aliança, como seria de se esperar) nas mesmas ruas que, por direito democrático, pertencem a todos nós, progressistas e conservadores. Há, evidentemente, aqueles que protestam por protestar, numa catarse de objeto indefinido, muitas vezes criticando coisas sobre as quais travaram pouco conhecimento. Há os que alegam que “essa história de esquerda e direita” não existe mais no Brasil. Enganam-se.

(Outra digressão pessoal: tal engano, todavia, parece ter uma razão mais simples do que parece. O governo do PT, nos últimos anos, tem ocupado uma posição que poderíamos definir como centrista. Ao tentar agradar esquerda e direita, um pouco agrada a cada lado e, ao mesmo tempo, muito desagrada a ambos. Isto parece explicar — em parte, ao menos — o que está acontecendo: diante de um governo que cria opositores em muitos fronts, quando eles saem todos para reclamar (ainda que de forma não articulada), dá no que vimos. E ainda estamos vendo.)

E, dentro do que vimos, o que mais chama a atenção – e conforme salientado pela professora Clemesha – é o quanto a Polícia Militar se revela despreparada para lidar com as legítimas e democráticas manifestações populares. Eles não são monstros, são gente como a gente. Mas com o rosto escondido e sem identificação, disparando balas de borracha nos olhos de jornalistas, inevitável perguntar: quem é o vândalo aqui?

Cientes disso, os participantes do evento não parecem nada dispostos a deixar passar a oportunidade de pensar a história acontecendo.

A coruja voa quando a maioria foi dormir.

* Mestrando em filosofia política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Além de relator, foi um dos debatedores do encontro O Que Está Acontecendo?, realizado pelo IEA em 21 de junho de 2013.