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Ciência de dados e tecnologias colaborativas: desafios e possibilidades

por Mauro Bellesa - publicado 17/05/2023 11:35 - última modificação 11/12/2023 10:52

Por Marcelo Batista Nery, Luciana Fukimoto Itikawa, Artur Damião Cardoso e Natália Maria Ventura (NEV-USP)

Por Marcelo Batista Nery, Luciana Fukimoto Itikawa,
Artur Damião Cardoso e Natália Maria Ventura (NEV-USP)

Seminário na USP apresenta os vários potenciais da Ciência de Dados, alertando para a desmistificação de mitos sobre BigData, simultaneamente à precaução com segurança e ética nesta frente de pesquisa e gestão.

Em 29 de setembro de 2022, ocorreu o Seminário Urbansus: Ciência de Dados e Geoinformação em Modelos de Análise e Gestão Urbanas, organizado pelos pesquisadores Luciana Fukimoto Itikawa e Marcelo Batista Nery, do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP. O evento contou com a presença de professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e do Centro de Pesquisa em Matemática Aplicada à Indústria (CeMEAI), além do Programa do Instituto Fogo Cruzado. O professor doutor Sérgio Adorno iniciou o evento com comentários sobre a sociologia urbana, contextualizando o debate. Adorno destacou que a sociologia urbana sempre buscou inovações metodológicas para aprimorar a precisão das análises das relações e interações sociais, conflitos urbanos, formas de resolução e respostas institucionais. Para ele, a combinação entre ciência de dados e ciências sociais é um desdobramento qualitativamente mais complexo de uma tendência já existente na sociologia, que busca compreender a vida urbana, um tecido social complexo em que é difícil distinguir fronteiras. O emprego de novas metodologias apoiadas em ciência de dados tem beneficiado a sociologia na precisão cada vez maior dos acontecimentos, entendendo-os em suas especificidades e singularidades.

 

A apresentação é iniciada pela Dra. Maria Isabel, que discorre sobre o mapeamento de tiroteios e disparos de armas de fogo nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife e da região metropolitana de Salvador, totalizando 49 cidades. O Fogo Cruzado é um laboratório de dados sobre violência que tem como objetivo principal a produção de dados primários sobre violência armada, com a finalidade de democratizar o acesso a esses dados por meio de tecnologias abertas e colaborativas. A missão do instituto é gerar informações para pesquisadores, gestores públicos e para a população em geral, a fim de que possam melhor compreender o que está ocorrendo no âmbito da segurança pública.

Além disso, o Fogo Cruzado é uma plataforma digital colaborativa que surge no contexto em que a área da Segurança Pública é, possivelmente, um dos campos menos democráticos das políticas públicas no país, com um verdadeiro apagão em relação aos dados e informações sobre segurança pública. Diante disso, essa plataforma trabalha estabelecendo relações de confiança com cinco públicos: os usuários, ou seja, cidadãos que vivenciam a violência armada, sofrendo diretamente com suas consequências; jornalistas; pesquisadores; sociedade civil organizada; e agentes públicos. São estabelecidas relações cíclicas com esses cinco públicos, que fazem parte de uma comunidade que ajuda o Instituto a construir os indicadores primários sobre violência armada, por meio de uma metodologia própria e inédita do Fogo Cruzado, que está aberta ao público. O Instituto trabalha com três fontes de dados: imprensa, por meio do monitoramento de veículos nacionais, regionais e locais de comunicação, incluindo coletivos de comunicação; as polícias, por meio do monitoramento das redes sociais da polícia, monitoramento dos sites da Polícia Militar e Polícia Civil, com atenção para a comunicação de operações policiais; e também os usuários, seja de forma passiva por meio do aplicativo, mensagens nas redes sociais, ou de forma ativa, por meio do monitoramento de redes sociais.

De acordo com Maria Isabel, a ausência de informações sobre Segurança Pública é, sobretudo, resultado de uma escolha deliberada de não produzir indicadores que possam auxiliar no monitoramento das políticas de segurança. Um primeiro desafio dessa ausência de informações oficiais são as chamadas fake News. Segunda ela, existem notícias e denúncias plantadas, conhecidas como "contra-informação" no mundo da Segurança Pública. Ela ressalta que o Fogo Cruzado não trabalha com denúncias isoladas, mas sim com padrões temporais e espaciais de denúncias. Além disso, a equipe do Fogo Cruzado confirma as informações por meio de outras fontes e desenvolve usuários que colaboram mais de uma vez, tornando-os usuários de confiança. Dessa forma, a coleta de informações é agilizada e a equipe tem mais chances de obter informações fidedignas.

Outro desafio apontado por Maria Isabel é a qualidade dos dados públicos que permitiram políticas públicas mais eficazes. Ou seja, uma cidade só pode ser inteligente se a governança for inteligente. Em 20 de setembro de 2019, ocorreu o caso da morte de Agatha Félix, uma menina de apenas 8 anos que foi baleada no Complexo do Alemão enquanto estava dentro de uma van voltando da escola com sua família. Um policial atirou contra uma motocicleta e atingiu Agatha, que não resistiu aos ferimentos. O Estado do Rio de Janeiro imediatamente declarou que esse era um caso isolado. No entanto, o governo estadual não produzia indicadores sobre a faixa etária das crianças vítimas de armas de fogo que morreram ou ficaram feridas, algo que, segundo a pesquisadora, é bastante simples de ser feito, mas que não estava disponível para a população. Sem essa transparência, os dados públicos ficam pouco submetidos ao escrutínio público. Além disso, ela afirma que muitas vezes os pesquisadores e outros agentes focam apenas em dados policiais, ignorando outras instituições que podem produzir dados relevantes para verificar a validade das informações produzidas pelas forças policiais.

Essa falta de informação permitiu que o governo estadual afirmasse que esse era um caso isolado. Devido ao monitoramento do Fogo Cruzado, a população do Rio de Janeiro foi informada imediatamente de que Agatha foi a décima sexta criança morta em 2019, somente na região metropolitana do Rio de Janeiro. Com isso, o discurso político de que as crianças vítimas de violência armada eram casos isolados foi desconstruído. Segundo a pesquisadora, o acesso da população aos dados ajuda a pressionar para mudanças efetivas nas políticas públicas. O caso de Agatha demonstra que a população, quando tem acesso à informação, pode pressionar para que políticas públicas efetivas sejam implementadas por diferentes atores.

 

Na sua apresentação no seminário, o professor doutor Luis Gustavo Nonato, pesquisador do CeMEAI, expõe os trabalhos realizados em colaboração com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) para compreender a dinâmica criminal de forma espaço-temporal. Um desses trabalhos resultou na criação do CrimAnalyzer, uma ferramenta de análise visual que permite aos usuários estudar o comportamento dos crimes em regiões específicas de uma cidade.

O desenvolvimento do CrimAnalyzer atendeu às necessidades de uma equipe de especialistas em criminologia e teve três grandes objetivos: i) discretização espacial com base em regiões censitárias, ii) identificação de hotspots de crime espacial que podem não ser os mais prevalentes em termos de número de crimes, mas que são importantes o suficiente para serem investigados, e iii) compreensão da dinâmica dos padrões de crime ao longo do tempo, utilizando comparações qualitativas e quantitativas. Por meio desse sistema, foi possível identificar locais de maior incidência de crimes e os padrões associados a eles, bem como observar como esses locais e os padrões correspondentes de crime evoluem ao longo do tempo, em uma perspectiva espaço-temporal e longitudinal. Com base no CrimAnalyzer, foi possível realizar estudos interessantes, como a questão do roubo de carga, por exemplo, identificando tendências de aumento e concentração dos registros desses crimes em algumas regiões específicas da cidade de São Paulo.

Após o trabalho do CrimAnalyzer, os dados de crime foram utilizados considerando as coordenadas geográficas de cada ocorrência. Então, foi criada a ferramenta denominada “Mirante” que possibilitou observar a dinâmica criminal de maneira espacial e temporal, incluindo a sazonalidade dos crimes ao longo do tempo e as diferenças entre eles, bem como a relação de cada região da cidade com a cidade como um todo. Foi desenvolvida uma métrica que permite selecionar uma região específica e observar a criminalidade nessa região em comparação com a cidade como um todo. Para o professor, a grande inovação do Mirante foi a agregação dos dados de crime sobre o mapa de rua, na escala de ruas e quadras.

Por fim, o professor apresentou a mais recente técnica desenvolvida, denominada CriPAV. Essa ferramenta permitiu que os pesquisadores realizassem algumas análises que as outras duas ferramentas não possibilitavam, como tentar entender quais regiões da cidade apresentavam uma dinâmica criminal semelhante, mesmo que essas regiões não fossem próximas espacialmente. O professor apresentou um exemplo para ilustrar o funcionamento da ferramenta, mostrando como a criminalidade em uma região com degradação urbana e elevada taxa de criminalidade diminui à medida que a degradação urbana diminui. Ou seja, a partir da melhoria da infraestrutura urbana, a criminalidade diminuiu em uma determinada região.

O professor concluiu afirmando que ferramentas como CrimAnalyzer, Mirante e CriPAV são ferramentas analíticas desenvolvidas exclusivamente para analisar dados de crime, sem a pretensão de traçar explicitamente uma correlação entre os dados de crime e as variáveis externas. No entanto, ele constatou que a análise das variáveis externas, como informações sobre a estrutura urbana, localização de pontos de ônibus e escolas, bem como variáveis como clima e mobilidade urbana, em conjunto com a análise do crime, pode trazer um conhecimento mais profundo sobre o fenômeno da criminalidade. O professor aponta que não há uma relação causal entre a variável externa e o crime, mas é possível simular os impactos de determinadas variáveis na dinâmica criminal. Portanto, seria possível entender o impacto das variáveis externas na predição de crimes, por meio da simulação de cenários em que determinados tipos de políticas públicas são implantados e seus possíveis impactos são avaliados. Entretanto, é importante lembrar que no desenvolvimento de modelos preditivos, apesar da sua extrema relevância e grande potencial analítico, sempre existe a possibilidade de viés que impede a percepção das interconexões entre variados fatores que presidem a lógica da dinâmica criminal, principalmente no que concerne às questões sócio-étnico-racial.

O mesmo desafio apontado anteriormente por Maria Isabel é confirmado pelo professor Luis Gustavo quanto à confiabilidade e qualidade das informações públicas. Para ele, os mecanismos utilizados pelos órgãos governamentais ligados à segurança pública para inserir informações ainda são deficientes em termos de autoverificação, comprometendo a confiabilidade dos dados. Dessa forma, a credibilidade depende tanto de investimentos em tecnologias, como de treinamento das pessoas envolvidas que inserem as informações, assim como os próprios policiais. Para o professor, apesar dos estudos sobre o tema serem insuficientes, são necessários: análise com dados incompletos e insuficientes afeta negativamente nas pesquisas. Sem a confiabilidade nos dados, ações voltadas ao planejamento e à promoção da segurança ficam limitadas e, em consequência, sem perspectivas de redução dos índices de violência.