Um Ensaio sobre Corrupção e Ação Climática
Flávia Mendes de Almeida Collaço[I] e Pedro Roberto Jacobi[II]
As mudanças climáticas (MC) compõem o maior risco atual para o desenvolvimento sustentável. As projeções científicas indicam que bilhões de pessoas enfrentarão escassez de alimentos e água, ocorrência mais frequente e violenta de desastres naturais, risco de aumento da exposição a doenças, perda de casas, bens e meios de subsistência, implicando também em migração forçada (UNDP, 2010; OIM, 2021). O Acordo de Paris (2015) reconhece as mudanças climáticas como um desafio global enfrentado por todos, com dimensões locais, subnacionais, nacionais, regionais e internacionais. Por isso, implementar medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas envolve o reconhecimento da visão transfronteiriça do risco climático e das interconexões entre pessoas, ecossistemas e economias em um mundo globalizado.
O governo brasileiro ratificou o Acordo de Paris e, ao fazê-lo, assumiu o compromisso de adotar medidas para redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) por meio de um conjunto de contribuições nacionalmente determinadas (NDCs). O Brasil já tem duas NDCs ratificadas. A primeira declarou um compromisso de reduzir, em 2025, as emissões de GEE em 37% e, em 2030, a indicação de reduzir em 43%, tendo o ano de 2005 como referência. Tais medidas consideram todo o conjunto da economia em território nacional, não havendo uma distribuição formal da contribuição de cada setor específico. A nova NDC manteve as intenções determinadas pela primeira NDC, sendo que essa manutenção de meta implicará em um aumento das emissões do país (Observatório do Clima, 2020).
Vem agregar à essa complexa lógica de atuação para o enfrentamento das MC também a agenda 2030 que estabelece os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), em prol da diminuição da desigualdade social, contra a pobreza e de combate às MC através da transição do modelo de desenvolvimento atual dos países, para um modelo sustentável. Nesse sentido, faz-se necessário pensar o papel das cidades e regiões metropolitanas (“think globally, act locally”1) no alcance das metas nacionais e na proposição de iniciativas de desenvolvimento sustentável e/ou de baixo carbono.
As negociações climáticas dos últimos 20 anos demonstraram que sua governança tem se expandido para muito além da resposta multilateral sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Isso porque, a agenda climática é composta e deve dialogar com um conjunto amplo de políticas e setores que possuem características próprias, o que inclui: grau de regulação; obrigações legais e práticas; prioridade dos órgãos de controle; responsabilidade das esferas de governo; mecanismos de prestação de contas, dentre outros. Em adição, existe a necessidade de se conciliar as diferentes escalas do problema que tem natureza global, com níveis de ação regional, nacional e local.
Para além dos dilemas de governança multinível, o maior desafio das mudanças climáticas tem sido na verdade, seu endereçamento e real enfrentamento. Sabe-se que os países não darão conta de cumprir os objetivos de mitigação climática do Acordo de Paris. As avaliações sobre as projeções de emissões atuais e projetadas sob as NDCs sugerem que o orçamento global de emissões acumuladas de 1,5 °C estará esgotado até 2030.
De fato, a maioria dos países desenvolveram leis, planos e metas climáticas, mas ainda falta a implementação de tais políticas de forma efetiva e rigorosa. Existe um hiato muito significativo entre a retórica da emergência climática e a efetiva capacidade de implementar as medidas necessárias. Isso porque ainda é muito incipiente a ênfase na ação climática e em políticas de forma efetiva, rigorosa e ágil. Os combustíveis fósseis ainda permanecem como pilar da economia global e as emissões no mundo continuam a aumentar. Mas, o que vem impedindo os países de agir de forma a reverter o quadro existente?
Cientistas vem apontando algumas razões. Em primeiro lugar, falta um acordo global sobre compartilhamento de encargos, transferências tecnológicas e financiamento climático. Isso porque, o Acordo de Paris produziu apenas um sistema de compromisso voluntário, sem definir recursos a sanções. O que na perspectiva de muitos estudiosos, não é incentivo suficiente para que os países iniciem uma forte mitigação e adaptação ao clima (Lamb e Minx, 2020).
Outra explicação comumente explorada, diz respeito às características peculiares do problema das mudanças climáticas que representam obstáculos substanciais à nossa capacidade de fazer as escolhas difíceis necessárias para enfrentá-los. Segundo Gardiner (2014), as mudanças climáticas são “a perfect moral storm” porque impõe a necessidade de uma ética intergeracional. A consequência direta disto, segundo o autor, é que, mesmo que as questões éticas pudessem ser respondidas, ainda assim poderíamos ter dificuldade para agir, pois as incertezas climáticas associadas aos cenários de impactos gerados não promovem e mobilizam a ação que se faz necessária.
Um terceiro fator está na resiliência dos sistemas atuais de desenvolvimento e estabelecimento das infraestruturas que se apresentam como sistemas resistentes e com inércia incorporada, restringindo severamente a velocidade e a ambição das transições. Isto inclui a vida útil longa e os custos irrecuperáveis das infraestruturas que dependem de um alto consumo de energia (Lamb e Minx, 2020).
Por fim, sob a ótica do sistema vigente – do qual fazem parte a indústria dos combustíveis fósseis, as indústrias energo-intensivas assim como o capital financeiro – temos que a política climática representa uma ameaça existencial às suas práticas operacionais, fazendo com que tais atores mobilizem enormes montantes de recursos econômicos e políticos para barrá-la e estimular o negacionismo.
Tal subterfúgio pode envolver desde o lobby entre empresas e políticos, até a manipulação dos discursos públicos contra a ação climática, ou a captura dos órgãos do governo encarregados de sua regulamentação. Nesse sentido, é possível afirmar que muitas práticas e drivers de corrupção podem estar de fato sendo utilizados para impedir a transição e a implementação da agenda climática. Sendo a corrupção aqui entendida como “abuso de poder confiado a alguém, visando a obtenção de ganho privado, causando degradação ambiental, enfraquecimento da governança ambiental ou injustiça socioambiental” (Collaço, Reis e Morgado, 2021).
Por isso, a corrupção pode ser considerada como um dos elementos utilizados para a manutenção de interesses prevalecentes ao longo do tempo, que também se situam dentro de uma trajetória de instituições políticas e normas sociais, que muitas vezes reforçam e entrincheiram-se ativamente na sua articulação de poder. Por exemplo, para os economistas políticos, o aprisionamento de carbono e as falhas morais não são acidentes da sociedade moderna, são características de design da economia fóssil. Sob diferentes perspectivas teóricas, argumenta-se que as instituições têm um papel central na mediação do poder de grupos de interesse e na fixação de sistemas de tecnologia por meio de regras e outros arranjos organizacionais, e por isso, tem havido muita atenção quanto ao desenho adequado de políticas para superar as restrições políticas, por exemplo, compensando grupos de interesse ou trazendo benefícios sociais e de saúde à vanguarda da agenda climática (Lamb e Minx, 2020).
Finalmente, sob esse ponto, argumenta-se que a corrupção age como constraint da ação climática, já que pode afetar todas as etapas do ciclo das políticas. Seja pelo enviesamento da formulação das políticas, leis e regulações, por meio de práticas que podem resultar em influência indevida, diminuindo a coerência entre políticas setoriais e a climática. Seja pela implementação ineficaz de políticas, programas, projetos e serviços públicos, com favorecimento ou desvio; dificultando o alcance das metas climáticas. Seja pelo enfraquecimento da capacidade do Estado de monitorar e fiscalizar o cumprimento da legislação ambiental e climática e de responsabilizar os infratores, por meio da prevaricação por exemplo. Nesse sentido, a pesquisa que será desenvolvida no Centro de Sínteses Cidades Globais, buscará compreender como a Corrupção, por meio de suas várias práticas e drives, se apresenta como um dos principais empecilhos (constraints) ao progresso da política climática com foco nas cidades da Macrometrópole Paulista.
Corrupção, Barganha Política e Ação Climática Em artigo publicado na Nature Climate Change (2018), Pedro R. R. Rochedo e colegas usam modelos de avaliação integrada para explorar cenários de emissão de carbono que foram projetados especificamente para o Brasil. Suas pesquisas quantificam as mudanças necessárias em outros setores econômicos para compensar as maiores emissões de desmatamento devido à erosão da governança ambiental no país. O estudo afirma que a “barganha política”, ou a busca por apoio político, e as recentes sinalizações (tanto do governo passado – 2018 – quanto do governo atual) que o governo vem dando aos proprietários de terras para aumentar o desmatamento, está colocando em risco a contribuição do país para o Acordo de Paris. Foram assinados atos e decretos provisionais, diminuindo os requisitos de licenciamento ambiental, suspendendo a ratificação de terras indígenas, reduzindo o tamanho das áreas protegidas e facilitando os grileiros a obter as ações de áreas desmatadas ilegalmente pode minar o sucesso das reduções de emissão de CO2 que o Brasil alcançou através do controle do desmatamento na década anterior (Rochedo et al., 2018). Segundo os autores, a análise da governança ambiental no Brasil ajuda a explicar como uma crise política pode ser um fator importante para o aumento do desmatamento e das emissões de carbono no país. Isso porque, o controle do desmatamento, observado nos anos de 2005 até 2012, foi resultado do fortalecimento de acordos institucionais, como o de impor o Estado de Direito e enviar sinais que podem, direta ou indiretamente, incentivar os agentes econômicos a decidir se desmatam ilegalmente ou não. Tal arranjo institucional também pode ser afetado pelo grau de cooperação com o regime internacional sobre as mudanças climáticas, e segundo os autores, ao analisar essas forças nas últimas duas décadas, a governança ambiental no Brasil pode ser dividida em três períodos principais: antes de 2005, um período com governança muito fraca e altas taxas de desmatamento; 2005–2011, um período com melhorias na governança ambiental e resultados efetivos na redução do desmatamento; e 2012–2017, quando a governança sofreu uma erosão gradual com a grande anistia concedida a desmatadores ilegais passados na revisão do Código Florestal, o que levou a uma reversão do desmatamento tendência de redução na Amazônia após 2012 e, posteriormente, a um aumento do desmatamento durante 2015-2020 e consequentemente, aumentando as emissões de GEE (Rochedo et al., 2018). |
Referências
COLLAÇO, F. M. DE A.; REIS, V.; MORGADO, R. Novas Medidas Contra a Corrupção e sua relevância para temas socioambientais. Transparência Internacional Brasil, n. Agosto 2021, p. 21, 2021.
GARDINER, S. M. A Perfect Moral Storm : Climate Change , Intergenerational Ethics and the Problem of Moral. Environmental Values, v. 15, n. 3, p. 397–413, 2014.
LAMB, W. F.; MINX, J. C. The political economy of national climate policy: Architectures of constraint and a typology of countries. Energy Research and Social Science, v. 64, n. January, p. 101429, 2020.
OBSERVATÓRIO DO CLIMA. NDC e “ pedalada “ de carbono: como o Brasil reduziu a ambição de suas metas no Acordo de Paris. Piracicaba: 2021.
ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL PARA LAS MIGRACIONES - OIM. La movilidad humana derivada de desastres y el cambio climático en Centroamérica. OIM, Ginebra, 2021.
ROCHEDO, P. R. R. et al. The threat of political bargaining to climate mitigation in Brazil. Nature Climate Change, v. 8, n. 8, p. 695–698, 2018.
UNDP. Staying on track : tackling corruption risks in climate changeUnited Nations Development Programme. 2010. Disponível em: <http://scholar.google.com/scholar?hl=en&btnG=Search&q=intitle:Staying+on+track:+Tackling+corruption+risks+in+climate+change#0%5Cnhttp://www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/democratic-governance/anti-corruption/staying-on-track--tackling-corrupti>.
[I] - Pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP;
[II] - Supervisor de pós-doutorado do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP.
[1] - A autoria dessa frase não é consenso na comunidade científica, ela foi atribuída a David Browerne (1969), Dubos (1977) e a Frank Feather (1979).