Você está aqui: Página Inicial / PESQUISA / Projetos Institucionais / USP Cidades Globais / Ensaios / Crime e violências

Crime e violências

por admin - publicado 07/08/2019 17:45 - última modificação 07/08/2019 17:44

Por Marcelo Batista Nery, com supervisão de Sergio Adorno

Por Marcelo Batista Nery, com supervisão de Sergio Adorno

A sociedade é produzida por mudanças sociais, convergentes em certos aspectos e divergentes em outros, trazendo em seu interior novas formas de organização institucional, política, econômica, jurídica e demográfica. Nos grandes centros urbanos essas formas surgem, se desenvolvem, retrocedem ou desaparecem com uma velocidade ainda maior. Assim, é importante não somente investigar como elas ocorrem em situações específicas, mas também encará-las menos como dicotomias e mais como partes que integram os contextos das metrópoles. Isso porque as mudanças que atravessam as grandes cidades apresentam inúmeras similaridades, sobretudo no mundo globalizado, mas também possuem singularidades locais, irredutíveis aos processos globais.

No que diz respeito aos crimes urbanos, por exemplo, é forçoso reconhecer relações condicionadas por fatores que atuam em distintos níveis — macro/global e micro/local. Inicialmente, cabe compreender que esses níveis se entrecruzam e são basilares para o entendimento amplo da realidade criminal. Não obstante, ambos os níveis revelam dois lados da mesma moeda.

Sob a perspectiva macro/global, ou seja, nos âmbitos mundial, nacional, regional e metropolitano, o foco incide sobre a identificação de determinadas regularidades em grandes escalas territoriais. Do ponto de vista micro/local (o chamado intraurbano), o foco se desloca para a compreensão das diacronias de uma dada localidade ou região. Assim, diante desses ângulos de observação, o ideal seria que se levasse em conta a estreita articulação entre dimensão macro e as especificidades de cada território. Porém, muitas vezes isso não acontece. Com maior frequência, os padrões de criminalidade são examinados segundo áreas extensas, omitindo-se as influências procedentes de seu mosaico de características demográficas, sociais, econômicas etc.

Estudos convencionais não costumam focalizar as características do espaço intraurbano e as mudanças que nele ocorrem ao longo do tempo como critério para definição de políticas, planejamento e gestão de segurança. O espaço heterogêneo, fragmentado e hierarquizado da cidade, no entanto, expressa as condições de vida daqueles que o ocupam, condicionando várias dimensões da estrutura social (econômica, política e ideológica) que nele se reproduz.

Essas dimensões estão relacionadas com a condição de vida específica de cada grupo social, em cada local. Desse modo, conhecê-las por meio de variáveis e indicadores selecionados permite uma aproximação, ao menos em parte, com a complexidade das relações institucionais e humanas. É nesse sentido que considerar as distinções do espaço urbano constitui-se uma das estratégias fundamentais para o entendimento dos aspectos sociais na urbe, de sua variabilidade e variação ao longo de um período de tempo. Notadamente em uma cidade desigual como São Paulo, na qual regiões extremamente pobres e lugares que apresentam índices de países desenvolvidos convivem lado a lado em um mesmo território.

No artigo “Crime e violências em São Paulo: retrospectiva teórico-metodológica, avanços, limites e perspectivas futuras”, publicado na Revista Cadernos Metrópoles nº 44 fica claro que os autores não têm a pretensão de avaliar a literatura, mas nela identificar os argumentos frequentemente empregados para explicar possíveis nexos e correlações entre transformações econômico-sociais urbanas e a evolução da violência e do crime. Também de pronto explicam que não se cuida de todas as modalidades de crimes, mas de uma em particular, o homicídio, em um recorte espacial e temporal específico, ou seja, o estado de São Paulo, com destaque para a capital, no período entre 1970 e 2016.

A partir daí importantes estudos são lembrados, entre os quais o pioneiro trabalho de Boris Fausto, o que permite identificar uma hipótese corrente sobre a cidade partida, ou seja, que congrega bairros seguros e bairros inseguros. Também são mencionados trabalhos quantitativos empíricos, como o de Pezzin e Macedo, que confirmam a existência de correlações positivas e significativas entre indicadores de urbanização e crimes contra o patrimônio na Região Metropolitana de São Paulo.

Conforme Pezzin e Macedo, a pobreza absoluta (pauperismo) contribui para a ocorrência de roubos e furtos. Desse modo, quanto piores as condições sociais de um grupo maiores seriam os casos desses crimes. Todavia os homicídios, por exemplo, não seriam significativamente afetados pelo pauperismo.

O grande mérito desses estudos foi justamente ter demonstrado as relações entre o desenvolvimento econômico-social e o movimento do crime, destacando a tendência de alguns delitos serem maiores naqueles locais em que se observa maior precariedade da infraestrutura urbana, caracterizada por pior oferta de postos de trabalho, serviços de lazer e cultura. Além disso, também evidenciaram a possível influência da crise econômica no ingresso de novos indivíduos em grupos delinquentes. Mas em meados da década de 1980 a reflexão sobre o crime urbano, que estava apenas se iniciando, sofria com a gestão estatal antidemocrática e centralizada durante o regime militar (1964-1985), o que tornou quase impossível a obtenção de informações sobre a criminalidade violenta.

Nos 1990, a produção de novos dados em São Paulo possibilitou outras reflexões e tematizações. Em 1995 foi promulgada a Lei 9.155 e publicada a Resolução SSP 161, que dispunham sobre a obrigatoriedade divulgação dos dados da Secretaria de Segurança do Estado e o encaminhamento das informações ao Diário Oficial, tornando-os públicos. Os números divulgados em domínios geográficos menores (como já mencionado, município, região metropolitana e interior de São Paulo) demonstravam que os crimes eram claramente distribuídos de forma heterogênea, bem como as tendências de suas taxas.

No final da década, as inovações tecnológicas viabilizaram o exame das tendências das taxas de homicídios em maior detalhe. Entre as inovações que mudaram a produção de dados criminais, em escala e detalhe, algumas merecem destaque. Entre elas destaca-se a implementação do Infocrim (Sistema de Informações Criminais), em 1999, um banco de dados informatizado que interligou as redes de distritos e companhias policiais, disponibilizando dados como local, data, horário e natureza das ocorrências, locadas em um mapa digital.

Densidade de homicídios dolosos no município de São Paulo, em 1999

Mapa da violência por Marcelo Nery

Fonte: Infocrim/SSP-SP. Elaborado pelos autores

Hoje, o acesso a dados qualificados e sistematizados, as análises macro/micro, o entendimento da multicausalidade, a identificação de espaços intraurbanos, a caracterização de variabilidade e padrões espaço-temporais, bem como a influência do crime organizado e das políticas públicas de segurança, evidencia um cenário que não pode ser ignorado pelos estudos urbanos de vários campos científicos, sobretudo aqueles dedicados às pesquisas do crime em grandes cidades. Nesse contexto, as dificuldades são grandes, mas as perspectivas para o futuro não são menores.

Em síntese, o crescimento do crime urbano e o temor gerado por ele estimulam a produção de registros criminais. Isso, de um lado, apresenta sempre repercussões bastante amplas e, de outro, aumenta a demanda da sociedade civil, da política, de parte da mídia e das próprias corporações policiais por serviços que minimizem a criminalidade. Ao mesmo tempo que a evolução tecnológica do Estado amplia a quantidade desses dados e a sua exposição – hoje é possível obter pela internet algumas estatísticas sobre crimes e criminosos –, evidencia a sua opacidade, ao passo de suas inconsistências, da falta de clareza sobre o que significam ou traduzem e mesmo da indisponibilidade dos que não compõem a divulgação oficial. Essa dinâmica, por si só, pode aumentar a sensação de insegurança da população. E quanto mais inseguras as pessoas se sentem, mais as instituições responsáveis pela segurança e as agências públicas de estatísticas se sentem desestimuladas a produzir informações qualificadas e dados além dos já disponibilizados (macro/global). Sobretudo aqueles que possam provocar mudanças nas regras e práticas de governo ou amplificar as demandas sociais.

Para lidar com os desafios impostos pela heterogeneidade urbana uma possibilidade promissora é selecionar as variáveis de interesse, compatibilizar as informações em termos espaciais e temporais e estratificar o território municipal em diferentes padrões urbanos e demográficos, com a subsequente delimitação de subáreas. Isso asseguraria a análise da heterogeneidade e hierarquização espaciais que caracterizam a metrópole paulistana. Assim desenvolvendo políticas, planejamento e gestão adequados a lugares e momentos específicos.

 


 

Por Marcelo Batista Nery
Pesquisador
Colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – Programa USP Cidades Globais – e Coordenador de Transferência de Tecnologia do Núcleo de Estudos da Violência (Cepid-Fapesp). Doutor em sociologia pela USP, com doutorado sanduíche em City and Regional Planning na University of California. Graduado em ciências sociais (USP), é o primeiro com essa formação a obter o título de mestre em sensoriamento remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Tem experiência nas áreas de geoinformação e sociologia, com ênfase em análise espacial, geoprocessamento, planejamento urbano, segurança pública, homicídio, dinâmica criminal e distribuição espacial urbana.