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Territórios frágeis em intempérie - Eventos climáticos extremos em época de pandemia: o caso de Florianópolis

por admin - publicado 10/07/2020 09:15 - última modificação 10/07/2020 09:23

por Tatiana Tucunduva P. Cortese, Debora Sotto, Carlos Andrés Hernández Arriagada, com supervisão de Marcos Buckeridge

por Tatiana Tucunduva P. Cortese, Debora Sotto e Carlos Andrés Hernández Arriagada, com supervisão de Marcos Buckeridge

Em plena pandemia causada pelo COVID-19, um ciclone extratropical intitulado "Ciclone-Bomba" atingiu o Sul do Brasil no última dia 30 de junho de 2020, ocasionando pelo menos dez mortes e grande rastro de destruição ao longo da costa, impactando uma das 18 regiões metropolitanas que estão localizadas na zona costeira brasileira ou são diretamente influenciadas por ela (PBMC, 2016).

Com ventos de até 120 km/h, equivalente a um furacão de categoria 1 na escala Saffir-Simpson, o ciclone-bomba deixou mais de dois milhões de pessoas sem energia elétrica nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A abrupta chegada da intempérie acresceu às cidades impactadas, já sob forte stress em razão da epidemia pelo COVID-19, um grave choque adicional, colocando em xeque a capacidade de resposta dos governos locais de maneira a evidenciar seríssimas falhas nos protocolos de resposta a emergências dessa natureza.

O sul do Brasil é considerado uma área ciclogenética da América do Sul, principalmente nos meses do inverno, ou seja, há troca de energia entre atmosfera e superfície e a corrente do Brasil intensifica esses sistemas no Atlântico Sul, alterando a distribuição horizontal do aquecimento e favorecendo o surgimento de ciclones. Dentre os ciclones extratropicais, existem alguns com desenvolvimento diferenciado devido à rápida redução da pressão central e intensidade aumentada, dificultando o prognóstico e ocasionando graves ameaças à vida humana e a propriedade em áreas costeiras ou de navegação. Estes são denominados ciclones explosivos ou "bombas" (Bitencourt, Fuentes e Cardoso, 2013).

A cidade de Florianópolis, ilha localizada no Estado de Santa Catarina, foi especialmente impactada pela tempestade que foi considerada incomum por ter atingido em poucas horas uma intensidade alta em todo o território do Estado. Além da queda de árvores, postes, destelhamento de casas, causou o maior dano na história da rede elétrica do Estado resultando em mais de 1,5 milhão de unidades consumidoras sem energia[1].

Tudo isso ocorreu em meio ao enfrentamento da epidemia causada pelo novo coronavírus. A cidade de Florianópolis, a exemplo das demais capitais do país, decretou   situação de emergência aos 17 de março de 2020. Foram impostas pelo governo municipal uma série de medidas de caráter moderado, voltadas a promover níveis mínimos de isolamento social para controle de infecções, com a proibição de eventos públicos, fechamento de praias e escolas, restrição do funcionamento de estabelecimentos comerciais e repartições públicas e imposição do uso de máscaras em locais públicos.

No momento em que o ciclone extratropical atingiu a cidade, de acordo com o “Covidômetro” - métrica que classifica a cidade de Florianópolis em classes de risco, com maior ou menor restrição de atividades - a cidade estava em transição para situação amarela, de risco moderado, tendo a Prefeitura liberado a abertura de academias, shoppings e galerias, apesar da cidade já contar com uma ocupação de 84% dos leitos hospitalares disponíveis, com 1379 casos confirmados e 23 mortos[2]. Por sorte, apesar dos danos materiais causados pelo ciclone, o número de vítimas a demandar atendimento hospitalar de alta complexidade foi bastante reduzido, não chegando a exercer pressão sobre o sistema de saúde já sobrecarregado na cidade.

Menos de uma semana após a ocorrência do ciclone, aos 6 de julho de 2020, a cidade de Florianópolis já havia retornado à classe laranja, de alto risco, com maior restrição de atividades, em razão da ocupação dos leitos ter subido para 90,19% e o número de casos ter quase que dobrado, atingindo a marca de 2.236 casos confirmados[3].

É preciso ressaltar que a tempestade que se precipitou sobre o Sul do país no dia 30 de junho não chegou sem aviso: o Instituto Nacional de Meteorologia - Inmet, responsável por monitorar esses eventos climáticos, emitiu alerta laranja para ventos fortes na região com antecedência bastante razoável. Existem bons equipamentos para monitorar e prever eventos climáticos, segundo os meteorologistas do Inmet, porém, o maior desafio é fazer com que a informação chegue à população em uma velocidade adequada. Há ainda o Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia de Santa Catarina - EPAGRI/CIRAM, órgão responsável pelo monitoramento do tempo e do clima em Santa Catarina, divulgando condições do tempo e do mar, com alertas para situações adversas que coloquem em risco a vida da população.

Por um processo conhecido e monitorado de perto pelos climatologistas, os ciclones extratropicais no Atlântico Sul têm sofrido alterações em frequência e intensidade por causas múltiplas e sinérgicas, todas relacionadas às mudanças globais do clima: mudanças nos padrões de temperatura da superfície do mar, alterações no regime dos ventos, modificações no padrão de formação das ondas sobre o nível do mar, entre outros fatores (PBMC, 2016 - p. 36). Essas tempestades, que antes se formavam sobre o oceano Atlântico, têm se deslocado para a faixa costeira do sul do Brasil, atingindo o continente sobretudo em áreas localizadas nos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A alta probabilidade de ocorrência de desastres em razão de tornados e ciclones na cidade de Florianópolis foi expressamente apontada no Estudo sobre Vulnerabilidade e Riscos Ambientais integrante do Programa Florianópolis Sustentável, resultado da cooperação entre o Município e o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID na Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis - ICES[4].

Segundo o Estudo, devido à sua localização, o Estado de Santa Catarina é regularmente acometido por desastres naturais relacionados com questões climáticas e geomorfológicas, exigindo assim “um preparo diferenciado, tanto na prevenção quanto na resposta dada à população atingida” (p. 13).

O Estado de Santa Catarina já foi, inclusive, atingido por um típico furacão, denominado  “Catarina”, em março de 2004. Esse evento climático, sem precedentes no país, originou-se de um ciclone extratropical no Atlântico Sul, a cerca de 1.000km da costa brasileira e atingiu o litoral catarinense com características típicas de um furacão, com a presença de um “olho” definido e ventos de altíssima intensidade, causando graves impactos e danos materiais severos em 21 municípios localizados na porção sul do Estado (Marcelino et al, 2008).

Especificamente para a cidade de Florianópolis, a Avaliação de Risco e Vulnerabilidade aponta (p. 14) como tipologias de desastres mais frequentes as inundações bruscas, movimento de massas, erosão marinha e tornados.

Os tornados, segundo o Estudo (p. 16), são tempestades caracterizadas por “nuvens escuras de formato afunilado” que “tocam a superfície com grande velocidade de rotação e forte sucção”, formadas pela chegada de uma frente fria a localidades continentais de ar quente e instável, sendo portanto mais frequentes nos meses de setembro a fevereiro, que apresentam índices pluviométricos mais altos.

Já os ciclones extratropicais - modalidade a que se integra o ciclone-bomba observado em 30/06/2020 - foram apontados pelo Estudo como sendo uma das causas principais de erosão costeira mas não de danos significativos no território urbano. Segundo aponta o Estudo (p. 18), os ciclones extratropicais ocorrem entre maio e novembro e se caracterizam por rajadas de vento de até 100 km/h em alto mar, provocando alterações no mar e na costa, através de ondas com 2 ou 3 metros de altura. Não obstante, as características desse fenômeno climático têm se alterado ao longo do tempo: os ciclones não só têm se formado em áreas cada vez mais próximas da zona costeira como também têm aumentado em intensidade, contribuindo não só para a erosão costeira, como também para a produção de ressacas violentas e até mesmo, eventualmente, a formação de furacões.

O Atlas de Desastres Naturais do Estado de Santa Catarina (Hermann, 2014 - p. 91) destaca duas ocorrências importantes de marés de tempestade, ou ressacas, produzidas por ciclones extratropicais: um evento em 2001, que atingiu 12 municípios na região de Balneário Camboriú, com 52 desabrigados, 219 desalojados e prejuízos de R$ 11.355.632,00, e outro em 2010, que causou danos materiais significativos em Florianópolis, com 170 desalojados, 2.788 afetados em prejuízo estimado de R$20.874.522,00, em  Navegantes, com 2000 afetados e prejuízo de R$1.749.500,00 e dez outros municípios próximos.

Em que pese a Avaliação de Vulnerabilidade e Riscos Naturais de Florianópolis tenha levado em consideração fatores de risco associados às mudanças climáticas, não computou as tendências de avanço dos ciclones extratropicais sobre o continente, detectada por estudos climatológicos mais recentes.

Ainda, a valoração dos riscos naturais empreendida pelo Estudo não abrangeu os tornados, tão pouco os ciclones extratropicais em si mesmo considerados, debruçando-se apenas sobre as inundações fluviais e marinhas e movimentos de massa. Assim, deixou de apontar medidas específicas de mitigação para tornados e ciclones extratropicais, o que representa uma lacuna importante na proposta de estratégias de adaptação e resiliência trazidas pelo Plano Florianópolis Sustentável.

O Plano Diretor de Florianópolis reconheceu expressamente, em seu artigo 4º, inciso I, como princípio orientador do ordenamento territorial do Município, que os riscos decorrentes de alterações climáticas são elementos limitadores do crescimento urbano. Coerentemente, o Plano traçou uma série de medidas limitadoras da ocupação do solo para a orla marítima e para as áreas consideradas de risco geológico, em consonância com as medidas de prevenção e remediação de desastres compreendidas em seu Plano Municipal de Redução de Riscos, com foco em inundações, escorregamentos e erosão marítima. Entretanto, não há protocolos específicos para a prevenção, remediação e mitigação dos impactos e danos causados sobre ciclones extratropicais que venham a atingir o continente. Trata-se, assim, de uma importante lacuna a ser suprida pelo sistema de planejamento urbano de Florianópolis.

Diante da conformação geográfica da costa sul do Brasil e considerando a influência dos fluxos marinhos, os impactos da intempérie climática sobre a cidade de Florianópolis evidenciam a necessidade de estabelecer protocolos estratégicos de curto prazo para a preparação do território.

Seguindo a Metodologia de Estratégias Projetuais - MEP (Hernández Arriagada, 2012), é possível desenhar tais protocolos a partir das reflexões ensejadas pelas seguintes questões norteadoras:

“Que estratégias de mitigação de contenção de intempéries oriundas de zonas marítimas permitem alavancar a sobrevivência de uma população costeira na atual situação geográfica brasileira?”

“Quais são as políticas públicas necessárias para a preparação do território para a ocorrência de tormentas de grande impacto?”

“Quais são as estratégias necessárias ao fomento de infraestruturas que sejam capazes de controlar e prevenir danos materiais e humanos em territórios impactados por tormentas, considerando os problemas delas decorrentes, como o rompimento de cadeias de sobrevivência, tais como água, energia e insumos?”

Com essas reflexões, e em torno dos elementos essenciais “Desastre”, “Endemia” e “Resiliência”, desdobram-se estratégias, permitindo o  estabelecimento de protocolos emergenciais.

O objetivo desses protocolos é promover a contenção dos tipos possíveis de desastres, considerando as condicionantes naturais e geográficas do território e as repercussões adicionais à saúde pública que se associam à falência das infraestruturas impactadas, promovendo a recuperação, identificação de melhorias e suporte à vida por meio de ações de resiliência aplicadas sobre a zona impactada. (Fig.1.0)

Propõem-se, portanto, as seguintes Estratégias de Desastres;

  1. Ciclones, Tornados e Furacões: esta estratégia objetiva estruturar e preparar o território para essas ocorrências por meio de: a. Zonas Vegetadas de Amortecimento; b. Estruturas de Proteção; c. Zoneamento de Áreas; d. Zonas Emergenciais para a População; e. Módulo Avançado de Apoio Médico; f. Mapeamento e Sistema de Monitoramento; g. Sistema de Aviso/Alarme; h. Mapeamento Pós-Desastre.

Considerando os efeitos decorrentes sobre as águas, com a produção de enchentes, contaminação das fontes de água potável e impactos sobre as bacias dos rios, é necessário abarcar, ainda, as seguintes estratégias complementares:

2. Enchentes: Fenômeno caracterizado pela grande abundância ou fluidez no volume de águas, devido a excesso de chuvas ou subida de marés. Estabelecem-se as seguintes estratégias: a. Reservatórios de Contenção; b. Agricultura em Zonas Estratégicas; c. Zonas Vegetadas em áreas de Córregos (Zonas Ripárias); d. Zonas Estratégicas de Wetlands; e. Projetos Estratégicos Flutuantes; f. Ação de Atividades Cooperativas; g. Planejamento de Bacias Hidrográficas; h. Política de Gestão de Águas; i. Mapeamento de Sistemas Hidrológicos; j. Retirada de Moradores em Zonas de Risco.

O impacto natural de ciclones, tornados ou furacões sobre o meio habitado produz desequilíbrios e fragilidades pelos danos causados à infraestrutura instalada, favorecendo a incidência ou o recrudescimento de doenças infecciosas endêmicas, aspecto este notavelmente destacado pelo COVID-19, demandado o estabelecimento de Estratégias de Contenção de Endemias para a promoção de Resiliência Pós-Desastre, a seguir enumeradas:

a. Mapeamento Pós Desastre; b.Suprimentos Emergenciais; c. Habitações Emergenciais para Desabrigados; d. Sistema de Aviso para Obtenção de Auxílio Diverso; e. Sistema de Logística Otimizado durante e Pós-Desastre, Garantindo Máxima Sobrevivência; f. Mobilização Social em Prol da Sobrevivência; g. Apoio Psicológico para População (Casos de Perdas); h. Projetos de Recuperação; i. Realocação da população; j. Sistema de Monitoramento; k. Módulos Avançados de Apoio Médico, l. Tratamento a Queimados e Desintoxicação; m. Sistema de Aviso / Alarme que Funcione mesmo na Ausência de Energia Elétrica; n. Fontes Alternativas de Recursos (Água e Alimento); o. Ações de Médicos sem Fronteiras; p. Remodelação Populacional, Relocação Emergencial.

Desta maneira, incorporadas ao território as estratégias de Desastres e Controle de Endemias, é possível desenvolver estratégias, ou protocolos complementares, focados na promoção de Resiliência em face de Tormentas, abrangendo: a. Política de Gestão de Água; b. Módulo Avançado de Apoio Médico; c. Zonas de Vegetação em Áreas de Córrego.

Mapa ciclone

Figura 1. Estratégias de Contenção de Intempéries Climáticas, 2020. Elaboração: Lab-Strategy, Universidade Presbiteriana Mackenzie.

As estratégias mitigadoras aqui propostas visam promover, essencialmente, a reorganização territorial e remodelagem de zonas de ocupação litorânea na costa brasileira frente a intempéries climáticas, pautando-se, portanto, na elaboração de políticas públicas preventivas, com ações emergenciais estruturadas e criação de zonas de contenção de desastres, inclusive mediante a elaboração de cartilhas preventivas e desenvolvimento de parcerias público-privadas.

Diante dos impactos causados sobre a cidade de Florianópolis pelo ciclone-bomba no último dia 30 de junho, é importante ressaltar a urgente necessidade de que os governos criem protocolos para os eventos climáticos extremos, focados em prevenção, mitigação e remediação, uma vez que não basta investir em equipamentos e tecnologia capazes de prever antecipadamente o fenômeno e não comunicar devidamente a população que será atingida nem orientá-la sobre o que fazer e para onde ir. Priorizar a minimização do risco de intempéries em territórios frágeis é fundamental.

Referências Bibliográficas

Bitencourt, D.; Fuentes, M. & Cardoso, C. Climatologia de ciclones explosivos para a área ciclogenética da América do Sul . Rev. bras. meteorol. [online]. 2013, vol.28, n.1, pp.43-56. ISSN 0102-7786. https://doi.org/10.1590/S0102-77862013000100005.

Hernández, A., C.A. Estratégias Projetuais no Território do Porto de Santos. (2012). 279 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

Herrmann, M. (org.). Atlas de Desastres Naturais do Estado de Santa Catarina: período de 1980 a 2010. 2. ed. atual. e rev.– Florianópolis: IHGSC/Cadernos Geográficos, 2014. 219 p.: il., grafs., tabs., mapas. ISBN 978-85-67768-00-7. p. 91.

Marcelino, E. V., Rudorff, F. M., Goerl, R. F., & Haas, R. (2008). Observações" in loco" realizadas durante a passagem do furacão Catarina. Caminhos de Geografia, 9(25).

Prefeitura de Florianópolis; BID. Relatório Final. Estudo 2 Vulnerabilidade e Riscos Ambientais Florianópolis. Disponível em:  [http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/26_07_2017_17.23.03.a0d07cb3574175a46ec1ddcf0ca8336b.pdf]. Acesso em 06/07/2020.

PBMC. Impacto, vulnerabilidade e adaptação das cidades costeiras brasileiras às mudanças climáticas: Relatório Especial do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas [Marengo, J.A.; Scarano, F.R. (Eds.)]. PBMC, COPPE-UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil, 2016. 184p.