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A extinção dos colegiados de políticas públicas: o caso da Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil e do Consórcio ZEE Brasil

por Fernanda Rezende - publicado 21/11/2022 18:03 - última modificação 21/11/2022 18:03

por Marcia Renata Itani e Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo

por Marcia Renata Itani e Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo

Diariamente somos alertados, pelo noticiário e pela pesquisa científica, sobre a evidente perda da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, a depleção dos recursos naturais e o aumento das vulnerabilidades socioeconômicas e ambientais, amplificados pelas mudanças climáticas. No Brasil essa crise é agravada pela pobreza, racismo e iniquidades históricos, e por um processo de desmonte da estrutura do Estado, que dificulta o atendimento das necessidades básicas da população e não logra construir uma trajetória de desenvolvimento sustentável. A integração entre as esferas administrativas e entre as políticas públicas constituem avanços necessários para enfrentar esses desafios e é cada vez maior o reconhecimento do papel de instrumentos de planejamento territorial com abrangência regional ou macrorregional para essa integração.

Um desses instrumentos é o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), previsto na Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) de 1981 com a denominação “zoneamento ambiental” e regulamentado em 2002 pelo Decreto Federal 4.297. O ZEE objetiva orientar políticas públicas e investimentos privados para o processo de desenvolvimento sustentável. Para tanto delimita porções do território, denominadas zonas ecológico-econômicas, que se assemelham quanto às vulnerabilidades e potencialidades sociais, econômicas e ambientais, e estabelece diretrizes para a conservação ambiental e a sustentabilidade na ocupação do território e no uso dos recursos naturais. O instrumento contribui, nesse sentido, para a convergência das políticas públicas e dos investimentos privados aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela Organização das Nações Unidas para o ano 2030.

Apesar da importância atribuída ao instrumento, no ano de 2019 foram revogadas as atribuições de dois colegiados fundamentais para a implementação do ZEE no país, a Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Território Nacional (CCZEE) e o Consórcio ZEE Brasil, medida que faz parte da extinção ou reestruturação de diversos colegiados de políticas públicas pelo governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro (BRASIL, 2019a; 2019b).

A CCZEE existia há pelo menos 30 anos e sua criação em 1990 (BRASIL, 1990b) ocorre no momento em que diversos projetos de zoneamento eram desenvolvidos nos estados da Amazônia Legal com o objetivo de controlar e diminuir o desmatamento ilegal, a grilagem de terras e os impactos negativos das obras de infraestrutura econômica implantadas pelo Estado. A Comissão, formada por ministérios, tinha o papel de planejar, coordenar, acompanhar e avaliar a execução do ZEE no país e, na região da Amazônia, foi apoiada pelo Grupo de Trabalho responsável pelo Programa de Zoneamento Ecológico-Econômico para a Amazônia Legal estabelecido no mesmo ano (BRASIL, 1990a). Os trabalhos dos dois colegiados e as experiências em curso resultaram na elaboração, em 1997, do “Detalhamento da Metodologia para Execução do Zoneamento Ecológico-Econômico pelos Estados da Amazônia Legal” (SAE/PR; MMA, 1997), documento de referência para orientar a formulação e a implementação do ZEE na região, dada a diversidade das experiências quanto a método, técnica, escala, conceito e articulação institucional.

O Consórcio ZEE Brasil existia desde 2001 e foi criado como um grupo de trabalho formado por ministérios, órgãos e empresas estatais com o objetivo de assessorar a CCZEE, executar o ZEE na escala da União, elaborar as linhas metodológicas do zoneamento e prestar apoio técnico aos estados (BRASIL, 2001).

No momento da criação da CCZEE, a coordenação dos trabalhos desta comissão cabia à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR), o que evidencia a importância atribuída ao instrumento para o ordenamento de um território como a Amazônia. Ao longo dos anos, as experiências de ZEE na Amazônia e em outras regiões do país, como a zona costeira, passam a constituir, depois do zoneamento urbano e do zoneamento agrícola, uma terceira “tradição” do zoneamento, voltada à questão ambiental (SCHUBART, 1995) e com uma abordagem territorial mais abrangente do que a definição de atividades no perímero urbano ou da indicação do uso do solo agrícola (FIGUEIREDO, 2006).

No final dessa mesma década, no entanto, os esforços para que o ZEE constituísse um instrumento de ordenamento territorial para a sustentabilidade tiveram um contraponto que foi a extinção da SAE/PR e a transferência das atribuições relativas ao ZEE para o Ministério do Meio Ambiente e do ordenamento territorial para o Ministério da Integração Nacional (BRASIL, 1999). Essas medidas contribuem para uma mudança do papel do ZEE, que passa de um instrumento de ordenamento territorial estratégico da Presidência da República para um instrumento de política ambiental de um Ministério.

A criação do Consórcio ZEE Brasil ocorre nesse momento de mudança das atribuições relativas ao ZEE, com iniciativas na esfera federal para orientar e promover a formulação e a implementação do instrumento no território nacional: o restabelecimento da CCZEE depois da extinção da SAE/PR; a criação do Programa Zoneamento Ecológico-Econômico no Plano Plurianual ciclo 2000-2003; a consolidação, em 2001, da metodologia de ZEE para o país, materializada no documento “Diretrizes Metodológicas para o ZEE do Território Nacional” (MMA, 2001; 2006); e a sanção, em 2002, do Decreto Federal 4.297, que regulamenta o zoneamento ambiental previsto na PNMA como ZEE e institui, legalmente, as diretrizes metodológicas.

Após 40 anos da aprovação da PNMA e 20 anos do estabelecimento das diretrizes metodológicas pelo Decreto 4.297/2002, os avanços são evidentes, considerando que todos os estados da federação apresentam ao menos uma experiência de ZEE subregional, costeiro, estadual ou macrorregional desenvolvida e o número de experiências no país, instituídas ou não por norma legal, são cerca de 66, segundo dados do MMA (2016) e ITANI (2018) atualizados. Dessas experiências, cinco são macrorregionais, cuja instância de governança constitui a CCZEE com apoio do Consórcio ZEE Brasil ou dos seus órgãos: ZEE do Baixo Rio Parnaíba, MacroZEE da Amazôna Legal, MacroZEE do Bioma Cerrado, MacroZEE da Bacia do Rio São Francisco e ZEE da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e do entorno.

A institucionalização da governança nos estados, a partir das Comissões Estaduais de ZEE, conforme previsto no Decreto Federal 4.297/2002, também apresenta avanços: até o ano de 2017, 22 estados possuíam Comissões Estaduais instituídas (figura 1).

Tabela comissões estaduais

Apesar da instituição da CCZEE e das Comissões Estaduais constituírem avanços do ZEE no país, há o desafio de manter a atuação continuada desses colegiados. Auditoria do Tribunal de Contas da União elaborado em 2009 sobre o papel do ZEE para o planejamento territorial nos estados da Amazônia Legal apontava a falta de articulação dos órgãos da CCZEE naquele momento como um dos fatores que poderia prejudicar a consecução do Programa ZEE Brasil (TCU, 2009).

A revogação das atribuições da CCZEE e do Consórcio ZEE Brasil em 2019 desestrutura o arranjo político-institucional e técnico para a formulação e a implementação do ZEE na esfera federal, o apoio e a validação da União para os ZEE estaduais e a avaliação e o aprimoramento das diretrizes metodológicas do instrumento que não são atualizadas desde 2006. Deve-se destacar ainda a diminuição da importância conferida ao instrumento nos Planos Plurianuais (PPA):  de programa nos PPA 2000-2003, 2004-2007 e 2008-2011, passou a objetivo no PPA 2012-2015, meta e iniciativas no PPA 2016-2019 e nenhuma referência no PPA 2020-2023. Esses fatos têm levado ao comprometimento da formulação e da implementação do ZEE no país e constituem mais um dos muitos retrocessos recentes na política ambiental (MELLO-THÉRY, 2019; IMAFLORA; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL; ARTICLE 19, 2020).

Candidatos ao governo federal ou estadual para o mandato 2023-2026 têm apresentado o ZEE em suas falas ou em seus planos de governo, reconhecendo o papel do instrumento para orientar as políticas públicas e os investimentos privados na trajetória do desenvolvimento sustentável. Muito se avançou com as experiências de ZEE no país, mas ainda há estados sem a instituição do zoneamento por norma legal (MMA, 2016; ITANI, 2018) e é preciso fortalecer o ZEE como instrumento de planejamento ambiental e territorial atrelado ao arranjo programático-orçamentário do PPA e sua governança com articulação institucional e participação social. O restabelecimento da CCZEE e do Consórcio ZEE Brasil constitui, nesse sentido, um passo fundamental do novo governo que inicia em 2023.

Referências

BRASIL. Decreto Federal 10.087 de 05 de novembro de 2019. Declara a revogação, para os fins do disposto no art. 16 da Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, de decretos normativos. 2019a.

________. Decreto 9.759, de 11 de abril de 2019. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. 2019b.

________. Decreto 4.297, de 10 de julho de 2002. Regulamenta o artigo 9o, inciso II, da Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, estabelecendo critérios para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil – ZEE, e dá outras providências.

________. Decreto de 28 de dezembro de 2001. Dispõe sobre a Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Território Nacional e o Grupo de Trabalho Permanente para a Execução do Zoneamento Ecológico-Econômico, institui o Grupo de Trabalho Permanente para a Execução do Zoneamento Ecológico-Econômico, denominado de Consórcio ZEE - Brasil, e dá outras providências.

________. Decreto 99.193, de 27 de março de 1990. Dispõe sobre as atividades relacionadas ao Zoneamento Ecológico-Econômico, e dá outras providências. 1990a.

________. Decreto 99.540, de 21 de setembro de 1990. Institui a Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Território Nacional e dá outras providências. 1990b.

________. Decreto 96.944, de 12 de outubro de 1988. Cria o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal e dá outras providências.

________. Lei 13.971, de 27 de dezembro de 2019. Institui o Plano Plurianual da União para o período de 2020 a 2023.

________. Lei 13.249, de 13 de janeiro de 2016. Institui o Plano Plurianual da União para o período de 2016 a 2019.

________. Lei 11.653, de 7 abril de 2008. Dispõe sobre o Plano Plurianual para o período 2008/2011.

________. Lei 10.933, de 11 de agosto de 2004. Dispõe sobre o Plano Plurianual para o período 2004/2007.

________. Lei 9.989, de 21 de julho de 2000. Dispõe sobre o Plano Plurianual para o período de 2000/2003.

________. Lei 7.661, de 16 de maio de 1988. Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e dá outras providências.

________. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.

________. Medida Provisória 1.911-8, de 29/07/1999. Altera dispositivos da Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências.

BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Relatório anual de avaliação do PPA 2012-2015: ano-base 2014. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria de Planejamento e Investimento Estratégicos. Brasília: MP, 2015.

FIGUEIREDO, A. H. de. Proposta de atualização da legislação sobre Zoneamento Ecológico-Econômico. In: Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. Programa Zoneamento Ecológico-Econômico.  Subprograma de Políticas de Recursos Naturais. Caderno de Referência. Subsídios ao Debate. Brasília: MMA, 2006. p. 35-49.

IMAFLORA; INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL; ARTICLE 19. Mapeamento dos retrocessos de transparência e participação social na política ambiental brasileira – 2019 e 2020. 2020.

ITANI, M. R. Zoneamento Ecológico-Econômico e territorialidades: estudo de caso no Litoral Norte paulista. 2018. 350 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

MELLO-THÉRY, N. A. de. Perspectivas ambientais 2019: retrocessos na política governamental.  Confins, 501, 2019. Disponível em: <http://journals.openedition.org/confins/21182>. Acesso em: ago. 2022.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE – MMA. Tabela sobre situação do ZEE no Brasil. 2016b. Disponível em: http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80253/Estados/Informacoes%20ZEE%202017.pdf. Acesso em:  janeiro de 2016.

________. Diretrizes Metodológicas para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil. Brasília: MMA, 2006.

________. Programa Zoneamento Ecológico-Econômico: diretrizes metodológicas para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil. Brasília: MMA/SDS, 2001.

SCHUBART, H. A institucionalização do Zoneamento Ecológico-Econômico no Brasil: situação atual e perspectivas. Mimeo. Brasília: Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 1995. 12 p.

SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SAE/PR. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE – MMA. Detalhamento da Metodologia para execução do Zoneamento Ecológico-Econômico pelos Estados da Amazônia Legal. Revisão de texto em 16/06/97 por Herbert Schubart. COGEC/SPP/SAE/PR. Brasília: SAE; MMA, 1997.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Relatório de auditoria de natureza operacional Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) na Amazônia Legal. Texto não publicado. Brasília: TCU, 2009.

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