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Gestão Urbana pode se beneficiar com o espantoso volume de dados?

por Mauro Bellesa - publicado 17/05/2023 11:30 - última modificação 11/12/2023 10:54

Por Luciana Fukimoto Itikawa, Marcelo Batista Nery, Lincoln Suesdek, Vinicius Perez Dictoro

Por Luciana Fukimoto Itikawa, Marcelo Batista Nery,
Lincoln Suesdek, Vinicius Perez Dictoro

Seminário na USP apresenta os vários potenciais da Ciência de Dados, alertando sobre a mistificação de soluções com BigData, simultaneamente à precaução com segurança e ética nesta frente de pesquisa e gestão.

No dia 29 de Setembro de 2022, professores e pesquisadores em Ciência de Dados estiveram presentes no Seminário Urbansus: Ciência de Dados e Geoinformação em Modelos de Análise e Gestão Urbanas, organizado pelos pesquisadores Luciana Fukimoto Itikawa e Marcelo Batista Nery do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP. Os palestrantes, provenientes da Universidade de São Paulo, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reuniram-se para mostrar suas reflexões e pesquisas, bem como apontar caminhos e desafios para o futuro da gestão das cidades. Entre os vários apontamentos apresentados, existe um consenso de que a velocidade das transformações na área de Ciência de Dados é acompanhada simultaneamente de vários dilemas e paradoxos. A começar por um deles: se por um lado, o grande volume de dados (BigData) poderia ser de enorme utilidade aos gestores públicos para um planejamento inteligente dos seus vários sistemas; por outro, coloca vários desafios éticos, científicos e tecnológicos.

O prof. Virgílio Almeida, titular da Cátedra Oscar Sala do IEA-USP e do Curso de Ciências da Computação da UFMG, inicia separando os falsos dos verdadeiros dilemas em torno de BigData e Inteligência Artificial (IA). Para Almeida, existe um temor no senso comum acreditando que a IA domine o ser humano. Entretanto, somos nós que precisamos ter controle sobre a IA a partir de regramentos e uso da tecnologia com responsabilidade, sobretudo nas cidades, para não reproduzir exclusões e reforçar desigualdades já existentes. Os algoritmos de IA não são vilões: são engrenagens muito bem-vindas para interpretar, classificar e identificar padrões para poupar tempo e trabalho humano. A grande quantidade de dados disponíveis - imagens de pessoas, dados de suas atividades comerciais, opiniões éticas e estéticas, relacionamentos, etc., acima de tudo, enriquecem e viabilizam diversas iniciativas de automatização de diagnósticos.

Entretanto, na visão do professor, ainda falta aprimoramento na governança dos dados gerados acerca da população na gestão de cidades inteligentes. Segundo ele, alguns governos querem implantar inovações tecnológicas para melhorar a vida nas cidades, mas não têm necessariamente pessoas adequadamente treinadas para implantá-las. Além disso, não há regramento adequado para o uso dos dados, principalmente no que diz respeito aos critérios de seleção e exclusão, bem como proteção de dados pessoais.

O professor deu ainda exemplos com efeitos deletérios na gestão dos dados, a despeito de terem sido implantados para auxiliar a sociedade. Por exemplo, o algoritmo moderador de uma rede social não foi capaz de bloquear conteúdos pró-genocídio no Quênia. Na Holanda, um mecanismo de IA usado para detectar fraudes em serviços sociais acabou tendo viés racista e xenófobo por imputar pessoas com base em supostos padrões de fraudes. Da mesma forma, a proposta de uma polícia preditiva baseada em IA se mostrou potencialmente discriminatória. Há portanto uma necessidade de se usar conhecimentos de ciências sociais para corrigir esses vieses da classificação automática.

Por essa razão, o prof. Virgílio compreende que essas fronteiras entre ciências humanas e ciências exatas não fazem mais sentido porque cada vez mais é necessário ir além de cidades meramente inteligentes. Segundo ele, precisamos de cidades humanamente inteligentes. Para isso, a gestão urbana precisa ter controle sobre o fluxo desses dados por meio de órgãos multissetoriais que permitam o governo monitorar acordos de cessão de uso e disseminação dos dados/serviços tecnológicos.

Outra questão levantada é o “vigilantismo”, ou seja, um estado de vigilância exacerbada e com finalidade deturpada. Diante da atual demanda social por maior segurança urbana, câmeras de vigilância têm se proliferado. Entretanto, ainda falta certo controle ou governança acerca do uso dessas imagens. Órgãos e empresas usam tais dados, mas em diversos casos esse uso não é normatizado e pode acabar favorecendo certos partidos e setores, ao invés de favorecerem a sociedade como um todo. Até mesmo aplicativos pessoais que buscam resultados por comando de voz, usados para fins particulares e comerciais, podem também fomentar o vigilantismo. Ele enfatizou o pensamento de que o vigilantismo é antagônico à democracia.

Prof. Virgílio também alertou também que diversas manifestações comportamentais da sociedade, como as discussões políticas, ocorrem em ambientes de chats privados e poderiam, em princípio, ser usadas pelos detentores dos dados para favorecer uns em detrimento de outros.

Em suma, para o professor, para se resolver esses possíveis efeitos adversos da IA há que se desenvolver mecanismos de proteção à sociedade. Cidades inteligentes também devem avançar para evitar exclusão e maximizar a inclusão. Há necessidade de iniciativas multidisciplinares que conectem ciências sociais e computação com o objetivo de resolver esses impasses. A solução passa também pela elaboração de políticas públicas, regulação e governança.

 

Em sua apresentação no seminário, o pesquisador do INPE, Gilberto Câmara, enfatizou os desafios científicos e tecnológicos dos dados sobre o planeta Terra para subsidiar políticas públicas que visem a melhoria da vida humana.

Segundo o pesquisador, existe vasta tecnologia de captação e tratamento de dados que permite automação e grande processamento, bem como refinamento da resolução dos instrumentos satelitais. Esse conjunto de condições permite o estudo e acompanhamento de mudanças terrestres ocorridas em curtos períodos de tempo. Por exemplo, há satélites com alta frequência de ciclos de passagem sobre a Terra, como é o caso do brasileiro CBERS-04A. Áreas inacessíveis do planeta, antes pobremente documentadas, tendem a ser melhor conhecidas com essas novas tecnologias.

A evolução na integração de dados e o processamento mediante machine learning também é uma realidade. Neste contexto, foi citado o aplicativo de telefonia móvel Waze que atinge atinge milhões de usuários que se beneficiam e retroalimentam o BigData disponível. Essas tecnologias estão ficando cada vez mais acessíveis.

Entretanto, Câmara alerta que falta um estudo integrativo dos dados terrestres. A própria natureza multidisciplinar exige o envolvimento de especialistas em diversas áreas. A disponibilidade de recursos automatizados de classificação de imagens é positiva mas deve ser usada com cautela pois há muitas peculiaridades que devem ser consideradas. Como exemplo de peculiaridade, citou a comparação entre Savana africana (hoje habitada por megafauna de mamíferos) e Biomas brasileiros (que outrora abrigaram megafauna). Métodos automatizados de interpretação de desmatamento padronizados para a Savana não necessariamente servem para biomas brasileiros, por mais análogos que estes ambientes pareçam do ponto de vista ecológico e histórico. Os métodos de classificação automatizada de padrões de imagens satelitais requerem aprimoramento ainda, que passa por desenvolvimento computacional e tomada de decisões funcionais.

Foi citado também como desafio a interpretação de dados de grande heterogeneidade. Por exemplo, setores censitários de municípios que apresentam área rural e urbana próximas uma da outra, necessitam de delineamento claro para diferenciar uma da outra em seus padrões de ocupação que ele denominou como populational grids. Ou seja, é necessário sempre ter cautela com generalizações. As tecnologias computacionais e de resolução de imagens devem auxiliar a dirimir possíveis vieses derivados de generalizações.

Outro fator limitante reside no fato de que muitas bases de dados são privadas, como é o caso do melhor banco de dados satelitais terrestres. Felizmente existem também dados de resolução satisfatória cujo acesso é público e que permite diversos trabalhos.

Por fim, foi falado que a população deve ter acesso aos dados geográficos pois eles têm importância para diversos setores da sociedade e têm grande potencial de melhorar as condições de vida das pessoas. Segundo o Dr. Câmara, a população está se tornando gradativamente mais escolarizada, o que sugere que ela demandará informações de melhor qualidade e confiabilidade. Segundo o pesquisador, este tipo de acesso público de dados confiáveis e potencialmente transformadores pode ser melhor atingido dentro do paradigma da Open Science.

 

A Dra.Luisa Paseto, coordenadorada Rede IARA, que é um Centro de Pesquisa em Cidades Inteligentes e Sustentáveis do Instituto de Matemática e Ciências da Computação da USP de São Carlos (ICMC-USP), apresentou a plataforma “Inteli.gente”, produzida por solicitação do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) em 2022. A plataforma foi criada com o objetivo de diagnosticar quão bem uma cidade atende aos requisitos de uma cidade inteligente e sustentável, além de ajudar os gestores a proporem diretrizes e eixos de atuação para políticas públicas.

Dessa forma, os municípios são qualificados segundo as dimensões econômica, ambiental, sociocultural, capacidade institucional e classificados segundo um nível de maturidade e desempenho em benefício da população. A plataforma captou em um primeiro momento dados sobre 12 cidades brasileiras como um estudo piloto e pretende expandir futuramente. A plataforma trabalha com a metodologia multicritérios para apoio à tomada de decisão do gestor em um sistema de hierarquização, de forma a selecionar as prioridades e os principais problemas para a população. Os algoritmos foram formatados para lidar simultaneamente com desempenho e expectativa. Por esse motivo, há ainda que aprimorar os mecanismos de análise da plataforma em contextos de grande diversidade e desigualdade, sobretudo quando há a presença de populações vulnerabilizadas econômica e socialmente.

Segundo Paseto, apesar de as cidades brasileiras, do ponto de vista tecnológico, apresentarem razoável conectividade, ainda possuem problemas graves nas infraestruturas primordiais como saneamento básico e resíduos sólidos. Outro desafio apontado pela pesquisadora é a necessidade de capacitar a população e o gestor público para as ferramentas e análise dos dados.

O professor André Ponce de Leon Ferreira de Carvalho do ICMC-USP, também da Rede IARA, ressaltou a importância da plataforma contribuir para um planejamento a longo prazo na medida em que exige um protocolo do gestor que vai do estabelecimento inicial de metas e entregáveis; em seguida, coleta, monitoramento e análise dos dados para finalmente entrar como subsídio na tomada de decisões. Para isso, é imprescindível que se estabeleça indicadores-chave de desempenho que sejam simples e coerentes, facilmente mensuráveis e aptos para capturar o progresso ao longo de um determinado tempo, confirmando tendências de médio a longo prazo.

Os indicadores podem ser coletados por meio de plataformas pagas ou gratuitas. Uma referência de plataforma gratuita como a Inteli.gente é a U4SSC - United For Smart Sustainable Cities, uma iniciativa da ONU para cidades inteligentes. Essa plataforma da ONU foi criada para atingir o 11º ODS – Cidades e Comunidades Sustentáveis, propondo um conjunto de 91 indicadores divididos em 3 dimensões principais: economia, meio ambiente, sociedade & cultura. Cada uma dessas dimensões possui subdivisões específicas.

A plataforma Inteli.gente permite, portanto, que o gestor possa mensurar o quão inteligente e sustentável é a cidade a partir de uma visão do todo em uma série histórica. Por meio da análise integrada dos dados, o gestor poderá identificar os problemas a partir da análise transdisciplinar, considerando que muitos dos desafios tão complexos nas cidades permanecem impasses e insolúveis porque têm correlações em diferentes áreas.