Iniciativas sustentáveis e criativas com resíduos sólidos urbanos para a produção artesanal sob a luz da economia circular e economia criativa
Marcela Barbosa de Moraes[I] e Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo[II]
A partir do segundo semestre de 2021, foi notável o retorno progressivo das atividades aos formatos que existiam antes da pandemia, o que acarretou em mudanças significativas no consumo e no descarte de resíduos sólidos pela população. Com a retomada das atividades presenciais no trabalho e no estudo, e a introdução de modelos híbridos nas interações sociais, houve uma reorganização nos locais nos quais os resíduos são gerados.
Em 2022, de acordo com o relatório ‘Panorama dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil’ elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), observou-se que o Brasil produziu 81,8 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU), o que corresponde a 224 mil toneladas diárias. Esse valor corresponde a uma geração per capita de 391 kg/ano, ou seja, uma média de 1,043 kg/dia (ABRELPE, 2022).
No Brasil, a região que mais gera RSU é a Sudeste, com aproximadamente 111 mil toneladas por dia, o que equivale à metade de todo o RSU gerado no país, com uma média per capita de 450 kg/hab.ano. Já a região Centro-Oeste responde por pouco mais de 7% do RSU produzido no país, totalizando cerca de 6 milhões de toneladas por ano, sendo a menor quantidade entre todas as regiões brasileiras. Ao analisar a produção diária de RSU por habitante, percebe-se grandes variações regionais, com a região Sudeste liderando com uma média de 1,234 kg/hab.dia, enquanto a região Sul fica na lanterna, com uma média de 0,776 kg/hab.dia (ABRELPE, 2022).
Adicionalmente, o ano de 2022 foi marcado pela criação do Decreto nº 10.936/2022, que estabeleceu novas diretrizes para a Lei nº 12.305/2010, a qual instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), assim como do Decreto nº 11.043/2022, que implementou o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares). Esse plano tem o intuito de definir obrigações, metas e normas para os responsáveis por atividades geradoras de RSU; e promover, diretamente, a adoção de novas práticas e processos sustentáveis para os próximos 20 anos.
Ambos os documentos legais reforçam os princípios e definições da PNRS em vigor há mais de dez anos e fornecem mais clareza e precisão em sua implementação, com o objetivo de facilitar a transição de um sistema de gestão de resíduos ainda linear, para uma gestão com maior ênfase na circularidade, na reutilização dos resíduos como um recurso significativo, capaz de garantir a preservação do meio ambiente e melhores condições de saúde, com potencial para atrair mais investimentos para impulsionar a economia e fomentar a criação de empregos e renda em todas as regiões do país, além de fornecer uma valiosa contribuição para a agenda climática.
Reconfigurar completamente e repensar as formas de produção são alguns dos grandes desafios para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (UNITED NATIONS, 2015). O modo de vida nas cidades, que inclui as decisões pessoais, escolhas de consumo, formas de deslocamento, manejo dos resíduos e, consequentemente, seus efeitos sobre o ambiente e a saúde da população, pode influenciar positiva ou negativamente o avanço em direção ao desenvolvimento sustentável.
Pelo lado dos processos produtivos, a conscientização ambiental requer que a empresa adote estratégias e métodos mais sustentáveis. A Economia Circular, como um conceito amplo que engloba várias ideias e práticas sustentáveis, funciona como um ponto unificador, conectando e interligando diferentes conceitos, ideias e práticas, tanto novas quanto já existentes, com o propósito de criar um sistema econômico de ciclo fechado focado na reutilização, reciclagem e valorização de materiais e energia. Assim, a principal característica da Economia Circular é o aproveitamento total dos materiais, servindo os resíduos como insumos para a produção de novos produtos ou energia, pela valorização energética.
A ideia central do conceito de economia circular propõe a manutenção do valor dos recursos extraídos e produzidos em circulação por meio de cadeias produtivas integradas. O destino de um material deixa de ser uma questão de gerenciamento de resíduos, mas parte do processo de design de produtos e sistemas, com o objetivo de aumentar a eficiência do uso de recursos, para alcançar um melhor equilíbrio e harmonia entre economia, ambiente e sociedade.
Em complemento à Economia Circular, a Economia Criativa é um modelo de negócio ou gestão que se origina em atividades, produtos ou serviços desenvolvidos a partir do conhecimento, criatividade ou capital intelectual de indivíduos com vista à geração de emprego e renda. O conceito principal da economia criativa consiste em incorporar procedimentos, conceitos e iniciativas que se utilizam da criatividade como ponto central para o desenvolvimento de um bem.
Com o objetivo de concentrar esforços e elaborar planos específicos, foram estabelecidos 20 segmentos na área da economia criativa. São eles: artes cênicas, música, artes visuais, literatura e mercado editorial, audiovisual, animação, games, softwares aplicados à economia criativa, publicidade, rádio, TV, moda, arquitetura, design, gastronomia, cultura popular, artesanato, entretenimento, eventos e turismo cultural.
Frente à escassez de ideias inovadoras na Economia Circular e às preocupações sociais destacadas por Korhonen, Honkasalo e Seppälä (2018), a redefinição da Economia Circular como um processo social de "baixo para cima" poderia abrir caminho para uma Economia Criativa. A capacidade criativa das pessoas consiste em gerar algo completamente novo, produzindo ideias e invenções pessoais, originais e significativas. Trata-se de um talento, uma habilidade que surge sempre que alguém cria algo a partir do nada, conferindo nova perspectiva a algo já existente.
Diante do exposto, este ensaio digital tem o intuito de apresentar algumas iniciativas sustentáveis e criativas com resíduos sólidos urbanos para a produção artesanal, sob a luz da economia circular e economia criativa.
Por meio da prática da suprarreciclagem, surgiu uma forma de expressão artística denominada arte reciclada ou upcycled art ou upcycling art, em inglês, que tem inspirado inúmeros artistas em todo o mundo com sua crítica ao consumismo desenfreado e à degradação ambiental. Essa modalidade artística se dedica a transformar materiais recicláveis como papel, papelão, madeira, vidro, plásticos, metais e borracha em peças de arte. Dessa forma, vai além da simples reciclagem, criando objetos que transcendem o valor econômico, cultural e social do material original.
Uma das características mais marcantes desse tipo de expressão artística é sua abrangência em diversas áreas, não se restringindo a uma disciplina específica. A arte reciclada pode ser encontrada em pinturas, esculturas, moda de luxo e até mesmo na decoração de interiores. Além disso, é importante ressaltar que, nesse contexto, a preocupação com questões ambientais, como reciclagem e reutilização de materiais, possui tanta importância quanto a obra em si.
Para exemplificar arte reciclada, uma artesã do município de Caraguatatuba, localizada na Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte do Estado de São Paulo, produz bolsas e acessórios com fibra descartada de pneu. Conforme visualizado na Figura 1, as peças são elegantes, douradas e em tom de cobre e são produzidas com utilização de técnica desenvolvida e patenteada pela própria artesã.A fibra de pneu é um tipo de material sintético feito de nylon e obtido a partir do petróleo. Esse material é empregado na fabricação do pneu, porém não é passível de reciclagem e leva um tempo indefinido para se decompor na natureza, podendo demorar várias décadas. Para confeccionar suas peças, a artesã entrelaça os fios - cada um capaz de suportar aproximadamente 15 quilos - criando bolsas e até mesmo colares.
Entre os aspectos ambientais positivos da arte feita com materiais reciclados, pode-se destacar a capacidade de reutilizar e prolongar a vida útil dos materiais, o que resulta na redução da quantidade de resíduos gerados. Porém, é preciso ter criatividade e habilidade para lidar com esses materiais. Além disso, os artistas que optam por trabalhar com a valorização desses materiais devem se questionar sobre o consumo de energia envolvido na criação da obra, se os materiais realmente são recicláveis, qual a porcentagem de materiais reciclados utilizados na obra, e se ela terá algum impacto positivo para o ambiente e a sociedade.
O comprador desse estilo de arte terá acesso a obras cativantes não apenas por seu valor estético, mas também terá a satisfação de ter colaborado para a preservação do planeta, ao dar um novo propósito a um material que seria descartado. Essa iniciativa também se mostra como poderosa ferramenta educacional para conscientizar a população, especialmente os jovens, sobre os impactos de nossas ações no ambiente e a relevância da reciclagem.
Por fim, com o objetivo de criar uma indústria da arte mais sustentável, evidencia-se que o processo criativo deve incorporar a essência das áreas da sustentabilidade, do desenvolvimento sustentável, da economia criativa e da economia circular em sua conduta e processo produtivo, no direcionamento para uma mudança sistêmica que leve a práticas e processos em consonância com os pilares econômicos, sociais e ambientais, considerando-se o princípio da sustentabilidade.
Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS (ABRELPE). Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil. 2022. Disponível em: <https://abrelpe.org.br/panorama/> Acesso em: 10 mar. 2024
KORHONEN, J.; HONKASALO, A.; SEPPÄLÄ, J. Circular economy: the concept and its limitations. Ecological economics, v. 143, p. 37-46, 2018.
ORDONIS ATELIE. Ordonis em todos estilos. Instagram, 27 de fevereiro de 2024. @ordonis.atelie Disponível em: <https://www.instagram.com/ordonis.atelie/> Acesso em: 20 mar. 2024.
UNITED NATIONS. Transforming our world: The 2030 agenda for sustainable development. Resolution adopted by the General Assembly, 2015. Disponível em: <https://sustainabledevelopment.un.org/post2015/transformingourworld> Acesso em: 10 mar. 2024.
ODS relacionados
6 - Água potável e saneamento
8 – Trabalho descente e Crescimento econômico
9 – Indústria, Inovação e Infraestrutura
11 - Cidades e Comunidades Sustentáveis
12 - Consumo e Produção Sustentáveis
13 – Ação contra a Mudança Global do Clima
[I] - Pós-doutoranda no Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados IEA – USP. Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional na Universidade de Taubaté e Diretora Executiva da Empresa de Pesquisa, Tecnologia e Serviço da Universidade de Taubaté.
[II] - Professora do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo; supervisora de pós-doutorado no Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.