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Mobilidade Urbana e Poluição do Ar - Sinergias e Cobenefícios

por admin - publicado 28/08/2019 15:45 - última modificação 28/08/2019 16:42

Por Júlio B. Chiquetto, com supervisão de Marcos Buckeridge

Por Júlio B. Chiquetto, com supervisão de Wagner Ribeiro

Quanto tempo você gasta nos seus deslocamentos cotidianos? Quantas horas perdemos coletivamente, e quanto isso custa para a sociedade? Todos têm algo a dizer sobre o trânsito. Os paulistanos, por exemplo perdem, em média, mais de 2 horas por dia nos deslocamentos. Morar próximo do trabalho é um luxo do qual poucos podem desfrutar.

O trânsito consome uma parte significativa do nosso dia e impacta a rotina da população, de forma implacável. Congestionamentos estão associados a diversos problemas metropolitanos, como o stress, tempo perdido, poluição do ar e sonora, acidentes, entre outros. Em um estudo global sobre mobilidade urbana, a cidade de São Paulo foi avaliada como a 4º pior condição de trânsito no mundo, com 86 horas perdidas no congestionamento por ano nos horários de pico e uma taxa de congestionamento de 22% – atrás apenas de Los Angeles, Moscou e Nova York (COOKSON e PISHUE, 2017). A mesma análise aponta que as perdas econômicas anuais devido aos congestionamentos em Nova York são da ordem de US$33,7 bilhões – portanto, os valores para São Paulo podem ser próximos.

A invenção do automóvel data do início do século passado, e desde então, os veículos orientaram o transporte urbano. Inúmeros aprimoramentos tecnológicos transformaram significativamente os veículos ao longo do tempo. No entanto, o modelo de transporte focado no rodoviarismo não sofreu o mesmo grau de transformação. Ao longo deste período, a população urbana cresceu de forma impressionante, mas nas megacidades, a taxa de crescimento do número de automóveis superou e muito o da população, particularmente na segunda metade do século XX. Na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), por exemplo, a população cresceu 32% de 1980 a 2017, enquanto a frota veicular quadruplicou neste mesmo período (de dois para quase oito milhões em 2018, de acordo com a CET).

A infraestrutura de transporte coletivo implementada em São Paulo não fornece uma rede capaz de absorver o incremento populacional e balancear o crescimento da frota automotiva, tampouco se adaptar às constantes mudanças espaciais nas dinâmicas populacionais e econômicas. Os problemas associados à mobilidade urbana se tornam questões multidimensionais, pois não apenas interferem com o acesso da população à bens e serviços, mas nas conexões das pessoas entre si e com a cidade, além de causar impactos ambientais. A competição pelos espaços urbanos, cada vez mais escassos, se torna complexa, ao passo que a cidade acaba sendo dividida em setores de acordo com sua função ou padrão socioeconômico, interferindo com a circulação de pessoas, bens e serviços devido à conflitos de interesses de grupos dominantes. A configuração espacial das cidades não reflete a homogeneidade necessária ao acesso igualitário aos espaços urbanos para todos os setores populacionais ((YAMAWAKI e SALVI, 2013). Esta lógica se torna antidemocrática, uma vez que os carros ocupam 60% dos espaços viários no Brasil, mas transportam apenas 20% da população, ao passo que os ônibus ocupam apenas 25% dos espaços viários e transportam 70% da população (LACERDA, 2006). Em São Paulo, de acordo com dados recentes da pesquisa Origem-Destino de 2017, a região da Berrini atrai cerca de 8000 viagens (por razões de trabalho) por dia a mais do que produz, em contraste com regiões periféricas como Artur Alvim, em que não se nota diferença nestes valores. Condições adversas de mobilidade urbana acabam por isolar as pessoas do contato com a sua vizinhança e enfraquecendo a relação do indivíduo com a comunidade. Claramente, os sistemas de transporte dos quais nós dependemos cotidianamente funcionam sob uma lógica de segregação, que não prioriza os aspectos sociais.

Em igual grau de importância, existem as questões ambientais. Os veículos constituem uma das principais fontes de emissão dos poluentes atmosféricos nas megacidades. Embora diversas melhorias tecnológicas tenham reduzido as emissões veiculares ao longo das décadas, a poluição do ar nas grandes metrópoles ainda constitui fator de significativa deterioração do bem-estar e saúde de suas populações. Esta situação é agravada nos países em desenvolvimento onde, devido à escassez de investimentos e falta de planejamento urbano, as condições ambientais e de infraestrutura são em geral insuficientes para atender as demandas e oferecer boa qualidade de vida a uma população cada vez mais concentrada nas maiores cidades, saturadas com milhões de habitantes. Estima-se que 3,7 milhões de mortes tenham sido causadas em 2012 pela poluição do ar no mundo, a maior parte delas em países em desenvolvimento, como o Brasil (OMS, 2014).

Segundo o inventário de fontes da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), os veículos leves e pesados são as principais fontes de poluição na RMSP, responsáveis por aproximadamente 67% da emissão dos óxidos de nitrogênio (NOx), mais de 80% do monóxido de carbono e 40% do material particulado inalável, que são partículas sólidas ou líquidas em suspensão na atmosfera (CETESB, 2016). Os NOx, juntamente com outros poluentes, reagem com a luz solar e formam o ozônio (O3). Embora este tenha um papel importante na estratosfera, ao evitar o contato da radiação solar danosa com os seres vivos (conhecida como a “camada de ozônio”), na troposfera, camada baixa da atmosfera onde se encontra a vida, o ozônio tem características oxidantes, é nocivo ao sistema respiratório e causa queimaduras nas folhas das plantas. Em 2015, ocorreram 36 ultrapassagens do Padrão de Qualidade do Ar estadual de ozônio na RMSP, sendo que em quatro dias atingiu-se o estado de atenção (CETESB, 2016). Para o material particulado fino (MP2,5), que pode penetrar até os alvéolos pulmonares e causar uma série de problemas incluindo o câncer de pulmão, ocorreram cinco dias de ultrapassagens do padrão. No entanto, muito mais ultrapassagens seriam observadas caso se adotassem os limites recomendados pela Organização Mundial da Saúde, que são mais restritivos do que os que vigoram no estado de São Paulo atualmente e representam condições mais próximas das ideais. Em 2017, o padrão de qualidade estadual de ozônio foi excedido em 22 das 23 estações de monitoramento na RMSP, demonstrando o alcance regional da contaminação atmosférica por este poluente. Além disso, as emissões do setor de transportes correspondem a cerca de 20% da emissão global de gases do efeito estufa (WORLD BANK, 2010), e contribuem para o agravamento da ilha de calor urbana.

Os impactos a saúde causados pelos poluentes do ar são intermediados não só pelas condições atmosféricas, mas também pela exposição da população. As mais de 2 horas por dia que os paulistanos perdem no trânsito, além do stress gerado, faz com que eles respirem diretamente os poluentes emitidos pelos veículos no trânsito. Estudos demonstram que a exposição pessoal à poluição do ar é maior para a população que utiliza ônibus, devido à 1) viagens potencialmente mais demoradas, 2) menor vedação em relação ao ambiente externo, em comparação aos carros, e 3) ao tempo em que é gasto esperando nos pontos de ônibus, respirando o ar contaminado das avenidas (CARVALHO et al., 2018). O uso de ônibus tende a predominar nas camadas mais vulneráveis da população, que não têm recursos para adquirir um veículo particular. Isto demonstra uma sobreposição das vulnerabilidades sociais e ambientais. A maior exposição a condições ambientais adversas, oriunda de diferenças socioeconômicas é um claro sinal do que se chama de injustiça ambiental.

Diversas estratégias têm sido adotadas mundialmente na busca por soluções aos problemas de mobilidade urbana e da emissão de poluentes, tais como o rodízio na cidade do México (DAVIS, 2008), o pedágio urbano em Londres (KELLY et al., 2011), a redução de velocidades em Manchester (OWEN, 2005) o planejamento urbano em Bogotá (MONTEZUMA, 2005), e até mesmo a interrupção de diversas atividades poluentes em Pequim (WANG et al., 2009), bem como o incentivo para veículos elétricos no Japão (AHMAN, 2006). O pedágio urbano em Londres, por exemplo, levou à diminuição de 5 µg/m3 de material particulado inalável (média de dois anos), dentro e fora da área de restrição. As restrições das atividades poluidoras durante as Olimpíadas de Pequim em 2008 levaram à diminuição de 25% dos níveis de CO e do O3. Os impactos destas políticas são variados, mas em geral tendem diminuir os desequilíbrios sociais e ambientais dos grandes centros urbanos. Para se adotar as melhores estratégias de mitigação, no entanto, são necessários estudos aprofundados para se conhecer tanto as experiências internacionais de sucesso, quanto se aprofundar nas realidades locais.

Em São Paulo, a Lei do Plano Diretor Estratégico do município, aprovada em 2014 e com validade até 2030, constitui-se como uma série de diretrizes que guiam a organização do território, incentivando a produção de uma cidade mais humana e eficiente. No eixo de mobilidade urbana, o plano incentiva a expansão dos modais de transporte coletivo e a desconcentração econômica focada em áreas periféricas, caracterizadas por alta densidade populacional e pouca disponibilidade de empregos. Em essência, ao aproximar emprego e moradia, atua reorganizando as dinâmicas e atenuando os desequilíbrios metropolitanos.

É necessário otimizar e ampliar a infraestrutura urbana, bem como regular o mercado imobiliário de acordo com os interesses coletivos, combatendo a especulação. Os aplicativos de car sharing e navegação ampliam as possibilidades de reorganização dos deslocamentos e movimentos pendulares, combinando-se com novas tecnologias e políticas públicas na construção de cidades mais inteligentes, humanas e eficientes. A combinação estratégica de modais de transporte, incluindo os não-motorizados, deve ser priorizada, juntamente com a melhor acessibilidade e inclusão.

A reorganização da mobilidade urbana precisa ser orientada de acordo com as melhores práticas, que combina estrategicamente as vantagens do adensamento urbano nas áreas já bem servidas pelo transporte e infraestrutura com a requalificação e dinamização de áreas carentes e periféricas, dentro da perspectiva do desenvolvimento sustentável. Ao se promover os modais coletivos (preferencialmente com o uso de combustíveis limpos), e diminuir o número de veículos particulares em circulação, obtêm-se diretamente melhor qualidade de vida, devido à menos horas gastas no trânsito pela população. Ao se aproximar emprego e moradia, com viagens mais curtas, também se diminui a exposição direta da população em trânsito à poluição emitida pelos veículos – que, em menor quantidade, significam também menores emissões totais de poluentes, o que beneficia a região inteira. Desta forma, o gerenciamento da mobilidade urbana adquire papel central na concepção de estratégias que possam enfrentar estes desafios e gerar cobenefícios para a justiça social e ambiental, e promovam proteção à saúde pública, redemocratização dos espaços urbanos e melhor qualidade de vida.

Os caminhos futuros para a solução de problemas urbanos complexos passam inevitavelmente por uma visão integrada e interdisciplinar do funcionamento das cidades, atuando de forma cada vez mais transversal. Neste âmbito, ampliar o debate sobre a governança ambiental se faz urgente, articulando diversos setores como a academia, as diferentes esferas de governo, o setor privado, a população, as ONGs, entre outros na busca do alinhamento de interesses e de respostas eficientes aos problemas atuais. Para que o trânsito e a poluição deixem de ser problemas que vivenciamos todos os dias. E que tenhamos melhores histórias para contar, individual e coletivamente, ao refletirmos sobre os nossos deslocamentos e a nossa saúde nas grandes cidades.

 

 


Pesquisador em nível de pós-doutorado no IEA-USP, pesquisa sobre a interação entre mobilidade urbana e poluição do ar, com colaborações dos deptos de gestão ambiental e de meteorologia da USP. Participa de atividades nos Laboratórios de Climatologia e Biogeografia e de Geografia Política do Depto. de Geografia/USP. Doutorado (2016) em Geografia Física pela USP (em colaboração com o IAG/USP), recebeu menção honrosa do Prêmio Capes de Tese 2017. Mestrado (2005-2008) e Graduação (2000-2005) em Geografia na Universidade de São Paulo. Atua nas áreas de poluição atmosférica, clima urbano, modelagem atmosférica, gestão ambiental, planejamento urbano, modelagem de qualidade do ar, exposição à poluição do ar.


 

Referências bibliográficas:

COOKSON G., PISHUE B. Inrix global traffic scorecard. INRIX Research, February, 2017.

AHMAN, M. Government policy and the development of electric vehicles in Japan. Energy Policy, 34(4), 433-443, 2006.

Companhia Ambiental do estado de São Paulo CETESB, Relatório Anual da Qualidade do Ar do Estado de São Paulo, 2015. Divisão de análise de Dados, São Paulo, 2016.

DAVIS, L. W. The effect of driving restrictions on air quality in Mexico City. Journal of Political Economy, 116(1), 38-81, 2008.

KELLY F., ANDERSON HR., ARMSTRONG B., ATKINSON R., BARRATT B., BEEVERS S., DERWENT D., GREEN D., MUDWAY I. e WILKINSON P. Part 1. Emissions modeling and analysis of air pollution measurements. In: The Impact of the Congestion Charging Scheme on Air Quality in London. Research Report 155. Health Effects Institute, Boston, MA, 2011.

MONTEZUMA, R. The transformation of Bogota, Colombia, 1995–2000: Investing in citizenship and urban mobility. Global Urban Development, 1(1), 1-10, 2005.

OWEN, B. Air quality impacts of speed-restriction zones for road traffic. Science of The Total Environment, 340(1), 13-22, 2005.

LACERDA, S.M. Precificação de congestionamento e transporte coletivo urbano. BNDS Setorial, Rio de Janeiro, n. 23, p. 85-100, mar 2006. Disponível em https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/2439

YAMAWAKI, Y., SALVI, L. T., Introdução à gestão do meio urbano. Curitiba: InterSaberes, 2013.

WANG, Y., HAO, J., MCELROY, M. B., MUNGER, J. W., MA, H., CHEN, D., e NIELSEN, C. P. Ozone air quality during the 2008 Beijing Olympics: effectiveness of emission restrictions. Atmospheric Chemistry and Physics, no. 9(14), p. 5237-5251., 2009.

CARVALHO A.M., KRECL P., TARGINO A.C. Variations in individuals’ exposure to black carbon particles during their daily activities: a screening study in Brazil. Environmental Science and Pollution Research. Apr 25:1-2, 2018.

OMS. 2014. 7 Million Premature Deaths Annually Linked to Air Pollution. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/news/releases/2014/air-pollution/en/

BANCO MUNDIAL. 2010. World Development Report 2010. Washington, DC: World Bank. Disponível em:

http://siteresources.worldbank.org/INTWDR2010/Resources/5287678-1226014527953/Overview.pdf

SÃO PAULO (SP). LEI Nº 16.050, DE 31 DE JULHO DE 2014. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e revoga a Lei nº 13.430/2002. Secretaria do Governo Municipal, São Paulo (SP), 2014. Disponível em:

https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/