Saudação de Sérgio Adorno (em nome do Conselho Universitário) à nova Reitoria — 25 de janeiro de 2014
Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo, Dr. Geraldo Alckmin;
Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo, Dr. Alberto Goldman;
Excelentíssimo Senhor Secretário Adjunto de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Dr. Nelson Baeta Neves Filho;
Excelentíssimo Senhor Ministro de Ciência e Tecnologia, Prof. Dr. Marco Antonio Raupp, em nome de quem cumprimento os Ministros, Deputados, Secretários de Estado e membros da classe política presentes nesta cerimônia;
Excelentíssimo Senhor Prefeito do Município de São Paulo, Prof. Dr. Fernando Haddad;
Excelentíssimo Senhor Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Prof. Dr. Celso Lafer, em nome de quem cumprimento os dirigentes de todas as agências de fomento, os Reitores das Universidades presentes nesta cerimônia, os Ex-Reitores e todos os Professores Eméritos da Universidade de São Paulo;
Excelentíssimo Professor Hélio Nogueira da Cruz, Vice-Reitor em exercício da Universidade de São Paulo;
Excelentíssimo Professor Dr. Marco Antonio Zago, Reitor da Universidade de São Paulo;
Excelentíssimo Professor Dr. Vahan Agopyan, Vice-Reitor da Universidade de São Paulo;
Excelentíssimos senhores e senhoras, membros do Conselho Universitário da USP;
Estimados docentes, alunos, funcionários, familiares, amigos e todos os que comparecem a esta cerimônia,
Venho saudar, em nome do Conselho Universitário, a nova Reitoria eleita e designada pelo Governador do Estado para o quadriênio de 2014-2018, em um momento muito singular. A posse de novos dirigentes universitários é sempre um momento de inflexão. Cuida-se é certo de refletir a respeito dos avanços conquistados, dos desafios enfrentados, das promessas que ainda não puderam ser cumpridas. Mas, é igualmente a oportunidade para que expectativas sejam renovadas e reafirmadas. Este é, antes de tudo, um momento verdadeiramente singular pois a nova Reitoria toma posse justamente quando a USP completa 80 anos de existência e a cidade de São Paulo 460 anos. Comparada com outras Universidades europeias e da América do Norte, a USP é ainda muito jovem. Tem muitas tarefas e desafios pela frente.
A USP foi criada, em 1934, como um projeto de ensino superior formulado pelas elites econômicas e políticas. Sob forte inspiração iluminista, cuidou de fixar os fundamentos para uma formação intelectual e profissional renovada e inovadora que conferisse à ciência e à cultura a missão de transformar os hábitos políticos vigentes àquela época. Esse propósito contemplava um conjunto de objetivos voltados para: a) incentivar o desenvolvimento econômico-social e aprofundar a democracia liberal nesta sociedade; b) mudar mentalidades ancoradas na tradição e no personalismo das relações sociais; c) formar classes sociais dirigentes capazes de modernizar o país, afetar a consciência social bem como propor planos de ação voltados para a resolução dos problemas da nacionalidade; d) preparar estudantes para o exercício de todas as profissões de forma a ampliar mercados e fornecer quadros competentes para a burocracia estatal; e) ampliar os horizontes intelectuais e científicos mediante estímulo ao intercâmbio com o que de mais avançado havia nas universidades, centros de pesquisa e centros de produção da cultura existentes no exterior; f) estimular – como se dizia àquela época – os altos estudos nos mais diferentes campos do conhecimento, da ciência experimental às humanidades, das tecnologias às artes.
Na memória de ex-docentes, ex-alunos e ex-funcionários, é frequente a menção às rigorosas exigências de que se revestiam as atividades acadêmicas. As aulas requeriam horas e horas de copiosas preparações fundamentadas em consulta a livros e referências bibliográficas, não raro em bibliotecas próprias dos docentes. Por sua vez, não menos exigente, o aprendizado quase enciclopédico de conteúdos determinados requeria dos estudantes horas de concentração e estudo muitas vezes solitário. A ciência produzida no interior dos laboratórios e instalações que se estavam constituindo dependia menos dos recursos existentes e mais do gênio criador e inovador. Ciência desinteressada, pouco influenciada por fatores externos, proviessem do mercado, da política ou dos movimentos sociais.
Ciência e manifestações culturais caminhavam de mãos dadas. O cientista completo ocupava-se não apenas de ciência tout court, mas também versava sobre literatura, artes plásticas, artes cênicas, música, iconografia. Entre físicos, químicos, biólogos, tecnólogos, historiadores, cientistas sociais encontram-se bons memorialistas, filósofos, contistas, cronistas, compositores, pintores. Bastaria uma visita à biblioteca dos velhos mestres para constatar o quanto ciência e cultura, verdade e filosofia se afiguravam indissociáveis.
A administração da universidade, considerada um meio e não um fim, não se resumia à gestão de recursos materiais e humanos. Estava a serviço de um projeto universitário capaz de enfrentar dilemas e desafios contemporâneos da sociedade brasileira, mas também capaz de projetar a ciência, a cultura e as artes para as futuras gerações e para as próximas décadas. Nisto residia o papel político das lideranças acadêmicas: o de decidir bem, com sabedoria e com a ousadia de mesclar imaginação, utopia e experiências acumuladas em trajetórias acadêmicas exemplares.
Certamente, esses primeiros anos não teriam apontado para um futuro promissor caso para ele não tivessem concorrido as missões estrangeiras que nos puseram em contato com experimentados e jovens pesquisadores. As missões tiveram, por assim dizer, uma espécie de papel socializador dos hábitos vigentes na comunidade científica internacional.
Contribuíram para enraizar na comunidade uspiana a indivisibilidade entre investigação científica, conduzida segundo rigorosos padrões metodológicos, ensino, aprendizado e difusão do conhecimento. Não menos importante foi a dedicação de jovens docentes, entre os quais as primeiras mulheres que se destacaram em todos os campos do saber que enfrentaram os desafios da construção institucional da Universidade de São Paulo. A USP foi pensada 50 anos à frente de seu tempo.
É difícil aquilatar o quanto essa nostalgia corresponde aos fatos. Justamente por ser nostalgia, ela é parte da memória coletiva e da construção seletiva da história. A despeito das virtudes subjacentes à narrativa desses primeiros acontecimentos, é forçoso reconhecer seus limites: tratava-se de um modelo elitista quase aristocrático, sob o férreo controle das cátedras, fundado em concepções hegemônicas da ciência e quiçá mesmo de cultura e das artes.
Esses limites levaram, ao longo da história da USP, ao acúmulo de tensões e conflitos, estimulando mesmo a radicalização de divergências, agravadas pelo advento da ditadura militar que impôs, pela violência, silêncio às vozes dissonantes e afastou, pela aposentadoria compulsória e por força da perseguição política, importantes lideranças acadêmico-científicas. Ainda assim, entre os que puderam permanecer e resistiram ao projeto modernizador do governo autoritário, foi possível manter tradições e firmar os princípios fundamentais que estão no DNA, por assim dizer, desta comunidade acadêmica: liberdade e autonomia. O que nos singulariza é o exercício irrefutável da liberdade de criação intelectual e a autonomia da pesquisa, do ensino e da difusão do conhecimento.
Liberdade no sentido da ausência de constrangimentos ao pensamento e às suas formas de manifestação, respeitados aqueles determinados pela ética científica e profissional. Autonomia no sentido da capacidade de agir independentemente dos interesses privados de qualquer ordem, estranhos aos propósitos e à missão da universidade. É a preservação desses princípios que faz com que a USP exerça com propriedade o paradoxo que lhe é inerente: o de ser parte da sociedade e ao mesmo tempo espaço de sua crítica construtiva e criativa; o de ser espaço institucional de escuta permanente dos problemas e demandas da sociedade, mas também de ser uma comunidade capaz de pensar diferentemente da sociedade mais ampla, de oferecer respostas competentes para problemas complexos.
Neste momento, em que se mesclam o aniversário da USP, o aniversário da cidade e a posse de um novo Reitor, o Conselho Universitário quer desejar ao novo dirigente votos de profícua gestão, em que se combinem de modo harmônico e equilibrado prudência e ousadia; o respeito à tradição porém enfrentamento das resistências às mudanças; a escuta das vozes dissonantes à busca de consensos possíveis, transitórios que sejam, em todos os campos de intervenção: pesquisa, ensino, cultura e extensão, intercâmbios acadêmicos, gestão de recursos materiais e humanos, relações com as agências externas de fomento às suas atividades-fim; o diálogo permanente com a sociedade civil organizada e com os formadores de correntes de opinião pública além do desafio de fundar novas bases para o relacionamento entre os três corpos universitários – docentes, discentes e funcionários.
Todos sabemos que Vossa Magnificência reúne todas as qualidades intelectuais para enfrentar os imensos desafios que se encontram à frente. Conhecemos também sua exitosa experiência como gestor acadêmico demonstrada nos cargos que ocupou. A confirmação nas urnas acadêmicas e seu reconhecimento pela maior autoridade do Estado de São Paulo são expressões inquestionáveis de seu prestígio e aceitação tanto no interior quanto no exterior da comunidade uspiana. Ao mesmo tempo, esses méritos colocam sob suas mãos o desafio de governar a USP em uma era de profundas transformações e adversidades. O Conselho Universitário deseja a Vossa Magnificência a energia e firmeza para cumprir seu programa de gestão e governabilidade da USP.
* Esta saudação tem por referência ideias argumentos e formulações que desenvolvi anteriormente em: Adorno, S. ‘Universidade em crise’. Le Monde diplomatique. Brasil. Ano I, no. 4, novembro de 2007, pp. 34-35.