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Estudos Avançados na Universidade

por Marilda Gifalli - publicado 08/02/2013 17:45 - última modificação 29/08/2014 13:53

Jacques Marcovitch

 

Um núcleo de altos estudos é a síntese possível de uma grande Universidade. Nele se refletem, com maior clareza, o pluralismo, traço mais forte da instituição acadêmica, e também as forças vivas de sua interdisci plinaridade. Dialogam, no espaço institucional desse núcleo, todos os saberes e competências que circulam no campus em espaços próprios. Por mais útil que seja o convívio entre pares nos colegiados organizacionais, a convergência exclusivamente intelectual, praticada nesse fórum, tem uma força inestimável. Nele, todos aprendem com todos, compartilhando suas aquisições de estudo com a sociedade.

Em recente simpósio na Unicamp,1 foi debatido um modelo para a implantação ou consolidação de um núcleo de estudos avançados na Universidade brasileira. Juntamente com o professor César Ades, diretor do IEA da USP, o autor destas notas participou da mesa e resume, nas linhas a seguir, a essência de sua intervenção. Foram incorporadas, como partes do roteiro, algumas questões formuladas pelos organizadores do evento.

A primeira questão não poderia ser mais direta: quais os principais desafios a se criar um IEA? Há muitos, foi a resposta. O principal deles é mobilizar o quadro interdisciplinar de especialistas capaz de cumprir uma agenda voltada para o debate dos grandes temas nacionais e globais. Por mais qualificada que seja, uma Universidade não pode avaliar, em salas de aula, os desafios que se agigantam na sociedade moderna. Docentes de centenas de cursos, mesmo que se empenhem na difusão de valores ou formulem análises de ordem geral, não podem se distanciar de matérias estritamente curriculares sob sua responsabilidade. Diante disso, impõe-se o surgimento no corpo acadêmico de Institutos com um perfil eclético e plenamente apto a debater grandes temas nas áreas da Ciência, da Cultura, da Política e da Economia, por exemplo. O Instituto de Estudos Avançados é uma Universidade dentro da Universidade. Para complementá-la e enriquecer a sua missão.

O que deveríamos evitar em um projeto acadêmico voltado para essa finalidade? No âmbito de um Instituto de Estudos Avançados, é necessário evitar a rigidez de certos procedimentos burocráticos incompatíveis com a agilidade que dele se espera. Para ser mais preciso: sabe-se que se um Prêmio Nobel de qualquer área tentasse, por decisão própria, ensinar numa grande Universidade pública brasileira, teria que prestar concurso, a despeito de todos os seus títulos acumulados e conhecimentos universalmente reconhecidos. Num Instituto de Estudos Avançados, o seu ingresso não suscitaria nenhum embaraço dessa natureza, uma vez que ali se privilegia também a excelência pública e notória. Não se faz aqui uma crítica, e sim uma distinção entre dois critérios seletivos.

A burocracia acadêmica é uma espécie de mal necessário. Apesar do inconveniente apresentado nesse exemplo, ela muitas vezes ajuda a preservar sua excelência no ensino e na pesquisa. Cabe ao gestor de um Instituto de Estudos Avançados aproveitar, com discernimento, apenas o lado bom das normas restritivas que, em síntese, traduz um grande zelo pela impessoalidade nas decisões acadêmicas.

Um Instituto dessa natureza não deve agir como se fosse um clube de amigos. O seu dirigente, com toda a força do cargo, precisa evitar a tentação humana de engrandecer-se perante colegas próximos em detrimento da excelência de sua instituição. O seu papel é recrutar os colegas mais habilitados e talentosos, mesmo que não gozem de suas simpatias pessoais.

Quais as principais sugestões em relação à administração especial, quando de sua constituição? O modelo de gestão em qualquer unidade acadêmica é determinado pelo objetivo que se pretende atingir. Não deve incorporar sugestões em abstrato, por mais bem formuladas que sejam. Como ex-gestor do Instituto de Estudos Avançados e da própria USP em seu todo, poderia relatar experiências vividas no campo administrativo. Mas isso seria apenas um exercício de memória, sem a força do exemplo, porque cada Universidade tem sua própria cultura e parâmetros ditados por uma realidade específica.

Sobre a constituição do IEA na USP, no que diz respeito à sua gênese, vejo duas motivações a rememorar. A primeira remete ao fato de que o conceito de estudos avançados já era uma experiência exitosa nos campi europeus e norte-americanos. Isso, naturalmente, levou a USP a adaptar o seu projeto às especificidades de uma Universidade pública e brasileira. A segunda motivação teve características políticas a serem vistas em sua devida perspectiva histórica. O Brasil estava então submetido a uma ditadura militar, a qual aposentava compulsoriamente grandes professores e cientistas que se opunham aos seus desígnios. Os atingidos eram indivíduos jovens, em pleno uso de suas competências, e passavam, de repente, a uma inatividade que seria danosa não apenas para eles, mas para o Brasil. Tratou-se, então, de criar, no âmbito do IEA, uma espécie de voluntariado que garantisse um meio para o exercício dos seus saberes. Essa foi uma iniciativa generosa e sábia, que honra a história do nosso Instituto de Estudos Avançados na Universidade de São Paulo.

Como garantir que as atividades de um IEA beneficiem tanto a academia quanto a sociedade em geral? Essa pergunta permite esclarecer que não tratamos de um produto a exigir certificado de garantia, e sim de uma instituição cujos procedimentos restringem ao máximo espaços para a inércia. O verbo beneficiar deve ser relativizado para não conduzir a equívocos. No mundo do conhecimento, muitas vezes o olhar crítico da academia não gera benefícios imediatos à sociedade em geral, mas a outros grupos de estudos envolvidos com o mesmo tema. Não descolamos, em nenhuma hipótese, a academia da realidade e das demandas sociais. Pelo contrário, citamos aqui exemplos do acoplamento entre um IEA e o interesse social. Mas é importante sublinhar que, em seu campo de trabalho, o IEA não é um órgão operacional e muito menos uma usina de propostas. É um centro de diálogo entre cientistas, e quando muito uma fonte de contribuições potencialmente geradoras de políticas públicas em outras instâncias.

Cabe também, no corpo deste artigo, uma digressão mais livre sobre o Instituto de Estudos Avançados da USP e a importância que hoje tem para a cultura e o conhecimento científico em nosso país. Nesse sentido, torna-se necessária uma defesa contundente da ideia de estender a todas as nossas unidades de ensino a experiência bem-sucedida no IEA com os nossos professores aposentados.

Por um desses equívocos imperdoáveis da legislação, aplica-se ao professor universitário no Brasil o afastamento compulsório aos setenta anos – exatamente quando ele ou ela está no auge de sua capacidade de orientação.  Contrariamente ao que acontece nas Universidades inglesas, por exemplo, onde se aproveita ao máximo a competência e o discernimento dos sábios, aqui se proíbe, por força de lei, um contato mais próximo desses extraordinários talentos com os professores mais novos e com os alunos. Era o nosso propósito na reitoria encontrar um meio legal de recuperar esse vínculo. Em 18 de fevereiro de 1998 foi promulgada, pelo presidente da República, a Lei n.9.608, dispondo sobre o serviço voluntário, o que não deixou de ser um passo nessa direção, embora precisando de aperfeiçoamentos.

Outra ideia-força seria a criação de um novo tipo de tutoria nas unidades de ensino. Poder-se-iam, na abertura e no fechamento de cada semestre letivo, realizar encontros de professores aposentados com alunos, para delineamento de um projeto de estudos ou realização de um balanço das atividades desenvolvidas. É inconcebível que uma tão grande reserva de talentos se mantenha ausente da Universidade. Queremos mais do que os seus livros e suas eventuais conferências. Queremos a sua presença em nossas salas de aula e laboratórios. Como fazer isso? É uma pergunta formulada aos participantes desse simpósio.

A missão do Instituto de Estudos Avançados é uma das mais nobres da academia. Fórum de debates das questões fundamentais da ciência e da cultura, e núcleo integrador entre diferentes unidades, este órgão vem se impondo igualmente como canal de comunicação entre a academia e a sociedade brasileira. Contabilizam-se, na USP, ao longo de quase dois decênios, mais de mil seminários realizados, grande parte deles abordando temas nacionais e mundiais de excepcional relevância. E, dentre os seus programas, destacam-se alguns que constituem verdadeiras propostas de políticas públicas essenciais ao país.

A inserção do Brasil na agenda global, que se deu a partir da interdependência das economias e de um redesenho geopolítico em larga escala, repercutiu fortemente no IEA da USP. Nele se formou o Grupo de Relações Internacionais, ambiente específico de estudos e debates que, além de dar origem ao Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP (Gacint), se tornou, dentro do Instituto, um ponto de inflexão no debate acadêmico voltado para o multilateralismo e todas as suas variáveis culturais, econômicas e políticas. Cabe o registro que foi nesse grupo que se iniciou a concepção do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Aponto ainda, entre as realizações do IEA durante sua primeira década, o Projeto Floram. Foi uma iniciativa pioneira visando à minimização dos riscos do efeito estufa, muito antes da mobilização global em torno do tema. Tendo equacionado os meios para o reflorestamento de 20 milhões de hectares no Brasil, o Floram foi escolhido entre 1.500 trabalhos científicos de 50 países, para receber o Prêmio concedido pela "International Union of Air Pollution and Environmental Association", em cooperação com a Academia Internacional de Ciências.

É importante rememorar a cooperação do IEA e sua área de Ciências Ambientais para a Rio 92. Em sua profícua gestão como diretor do Instituto, Umberto Cordani privilegiou fortemente, e com absoluto acerto, as temáticas da globalização e da segurança alimentar.

Na década em curso foram estruturados, também no Instituto de Estudos Avançados da USP, projetos temáticos sobre mudanças climáticas, encaminhados à Fundação de Apoio à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), abrangendo, além das Ciências Exatas e Biológicas, a área de Humanidades, com ênfase em Direito Internacional, Economia, Administração e Ciências Sociais. Além do estudo nessas áreas, os projetos incluíram proposições que foram úteis para elaboração de uma política de Mudanças Climáticas no plano estadual e políticas públicas para redução de GEE em outras regiões brasileiras, subsidiando as negociações do país visando ao regime pós-2012.

Outro projeto que obteve resultados concretos na vida nacional foi o Programa Educação para a Cidadania. Centrando as preocupações no problema da repetência escolar, várias de suas diretrizes inspiraram a verdadeira "revolução fiscal" embutida no Fundo de Desenvolvimento de Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef) e hoje consolidada no Fundeb.

No âmbito do Instituto, por iniciativa da reitoria formou-se em 1998 um grupo de trabalho para produzir dossiê em defesa da Universidade pública. O texto final, A presença da Universidade pública, coordenado por Alfredo Bosi, foi discutido com a comunidade universitária e representantes da sociedade e distribuído a todos os formadores de opinião no Brasil. Expôs minucioso contraponto à campanha aberta de parte da mídia e alguns setores políticos contra o nosso modelo institucional de ensino superior, pesquisa e extensão de serviços à comunidade.

A defesa do modelo atual não implica a defesa indiscriminada de todas as Universidades públicas, como se fossem homogêneas – e que certamente não são. Mas tenho insistido que não é destruindo a excelência do nível superior do ensino público que se melhora o desempenho dos níveis primário e secundário; que os alunos ricos estão em minoria absoluta na Universidade pública; e, por último, que o pagamento de anuidades não traria receitas significativas à Universidade pública dedicada à pesquisa, implicando cobrar outra vez da sociedade um serviço já incluído nos impostos. Tais respostas foram aprofundadas nesse documento repleto de informações sobre a contribuição científica e social do sistema público de ensino superior, pesquisa e extensão universitária.

Todos os sofismas correntes foram objeto de respostas pontuais. Não vou aqui detalhar os dados que o texto contém. Apenas afirmo que buscamos colocar a questão em termos serenos e objetivos, evitando responder ao panfleto com o panfleto e à distorção com a distorção.

Relataram-se, em suas páginas, alguns dos grandes feitos da Universidade pública em ciência e tecnologia, bem como serviços que vem prestando regularmente à comunidade em áreas especiais como Saúde, Meio Ambiente e Educação. Nesses itens, o papel de um IEA no corpo acadêmico em geral, e particularmente na USP, pode ser decisivo para o estabelecimento de políticas públicas.

Entendo que os exemplos aqui referidos marcam fortemente a história do Instituto de Estudos Avançados. Devemos citar a revista estudos avançados e seus periódicos dossiês sobre os principais desafios brasileiros e globais. Em suas versões digital e impressa, tais conteúdos formam verdadeiras antologias do saber acadêmico em nosso país. Há possivelmente muito o que dialogar entre a USP e a Unicamp sobre o modelo de cátedras adotado pelo nosso IEA. Destaco especialmente a cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, como um ponto a ser examinado.

O depoimento que acabo de resumir fundamentou-se numa experiência pessoal, vivida na direção do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e, depois, no exercício do cargo de reitor. Naturalmente, a palestra que se seguiu, proferida pelo professor César Ades, por ser mais recente e mais atualizada, trouxe novas luzes sobre o tema, elucidando as questões sobre o programa de sua profícua gestão em andamento.

 

Nota

1 "Desafios de um Instituto de Estudos Avançados na Universidade Brasileira", simpósio organizado pelo Centro de Estudos Avançados (CEAv) da Unicamp e realizado no dia 15 de outubro de 2010 na Cidade Universitária Zeferino Vaz, em Campinas, Estado de São Paulo.

 

Jacques Marcovitch foi reitor da USP (1997 a 2001) e diretor do IEA (1988 a 1993). É  autor, entre outras obras, de Universidade viva e A Universidade (im)possível. @ –  jmarcovi@usp.br

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Texto publicado em:

Estudos Avançados - versão impressa ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.25 no.73 São Paulo  2011