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“Repressão policial não é política preventiva”, diz Adorno

por Sylvia Miguel - publicado 13/03/2017 11:15 - última modificação 23/03/2017 15:41

Prisão deveria ser usada apenas onde esforços preventivos falharam, diz sociólogo em reunião que mostrou as contribuições do NEV para o entendimento da violência em São Paulo
Ação policial

Políticas de prevenção à violência foi um dos temas discutidos por especialistas do NEV-USP, em reunião do Programa USP Cidades Globais

O sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, propõe uma política preventiva na área da segurança pública baseada no modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), que trabalha a prevenção segundo os níveis primário, secundário e terciário. "A segurança pública deveria construir um modelo semelhante, voltado à prevenção da violência”, defendeu Adorno. Ele participou de uma reunião aberta aos membros do Programa USP Cidades Globais, no dia 23 de fevereiro, acompanhado pelo pesquisador Marcelo Batista Nery, também do NEV, quando apresentaram um panorama da violência no estado de São Paulo.

De acordo com Marcos Buckeridge, presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e coordenador do Programa USP Cidades Globais, os pesquisadores ligados ao programa manterão uma agenda de discussões informais para que apresentem suas atividades de pesquisa, alinhem objetivos e discutam temas comuns estudados em cada grupo. O objetivo do USP Cidades Globais é construir indicadores e propostas que possam contribuir para a melhoria da qualidade de vida na capital e região metropolitana.

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“A área da saúde pública foi a que colocou com maior clareza a questão de pensar a violência do ponto de vista da epidemiologia, construindo indicadores a partir da distribuição dos homicídios e suas características. Isso foi possível devido à experiência consolidada da epidemiologia. Certamente a política de prevenção da violência passa pela saúde pública, e nesse aspecto, gosto muito do modelo de saúde que pensa a prevenção segundo os níveis primário, secundário e terciário”, disse Adorno, durante o encontro “A contribuição do NEV-USP para o entendimento da violência em São Paulo”.

Sérgio Adorno - NEV

Sérgio Adorno defende modelo semelhante ao da saúde coletiva para a prevenção da violência no Brasil

Adorno destacou a diferença entre prevenção e repressão policial. “Certamente, a política que pensa a prevenção por meio da repressão, não é uma política preventiva. Ao contrário, reforço a minha tese de que a violência acentua as desigualdades sociais. Nossa sociedade é muito violenta e acredito que as políticas de segurança que isolam alguns em detrimento de outros acentuam as desigualdades. Não penso em igualdade absoluta, mas num mínimo de convivência em espaço comum em que meu direito à vida é respeitado igualmente ao direito do outro”, disse Adorno.

Para o sociólogo, a prevenção à violência poderia se inspirar em níveis de atenção, conforme a modalidade dos crimes e a natureza da violência. “Poderíamos pensar em pessoas com envolvimento leve com o mundo do crime e que receberiam um tratamento geral. Por exemplo, da mesma forma que os governos adotam a vacinação para todos, já que os custos políticos de não o fazer são muito altos. Já o indivíduo com uma doença mais grave recebe tratamento ambulatorial, com monitoramento. Então pessoas com um grau maior de envolvimento com o crime teriam um outro patamar de acompanhamento. Já os casos mais graves requerem hospital, cirurgia. Então para esses haveriam programas mais específicos de prevenção e controle da violência”, compara Adorno.

A prevenção poderia ser planejada estatisticamente, acredita. Uma política de prevenção poderia estar direcionada a determinada faixa de jovens de 15 a 29 anos de idade que tenha contato fortuito com o mundo da transgressão. Dentre esses, os que tenham um contato mais frequente com o crime poderiam ser alvo de programas integrados com escola, esporte e cultura. Para uma pequena porcentagem que já tenha carreira no crime, poderia haver programas com rotinas mais específicas e acompanhamento escolar. Para a parcela que permanece na criminalidade, a opção seria o encarceramento, avalia.

“O encarceramento não deveria ser uma política de entrada e, sim, uma política final, aquela que é utilizada onde os esforços de prevenção não surtiram efeito. O encarceramento é uma política geral. Precisamos de uma política para situações determinadas. Porque há modalidades de crime. E a violência tem naturezas muito diversas”, defende Adorno.

Mapa encarceramento - NEV

O argumento de Adorno é suportado pela própria evolução das taxas de presos no Brasil, que aumentaram em praticamente todos os estados. No mapa de encarcerados mostrado pelo pesquisador Marcelo Nery, em 2005 os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Acre e Distrito Federal tinham o maior número de encarcerados: entre 300 e 450 presos para cada 100 mil habitantes. Em 2014, praticamente todas as unidades federativas aumentaram suas taxas, sendo que São Paulo, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal continuaram líderes, com um número entre 450 e 469 presos para casa 100 mil habitantes. Poucos estados mantiveram os níveis de 2005: Amazonas e Goiás, com algo entre 110 e 220 presos para cada 100 mil habitantes; e Bahia, Piauí e Maranhão, com números entre 50 e 110 presos para cada 100 mil habitantes.

Mas a tendência de aumento da taxa de presos em todos os estados não foi acompanhada pela melhoria da estrutura carcerária. Em 2016, a maior superlotação em presídios foi registrada em Pernambuco, onde 260% das estão vagas ocupadas. Na seqüência vêm os estados de Amazonas, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Alagoas, com 220% das vagas ocupadas. Em São Paulo, apesar da alta taxa de encarceramento, a taxa de ocupação nos presídios está em torno de 140%, mostrou Nery.

A taxa de prisões por tráfico foi a que mais cresceu. Era 10% entre as prisões em 1996, subiu para 30% em 2012 e caiu para 24% em 2016.

 

Homicídios

Marcelo Nery - NEV

Marcelo Nery diz que sociedade está longe de diálogo intersetorial para o enfrentamento da violência

A evolução do número de homicídios dolosos chama a atenção por uma característica desconcertante. Se a taxa de homicídios dolosos no estado de São Paulo caiu de 45% para 24% de 1996 a 2016, o número das pessoas mortas por policiais entre o número de mortos por terceiros subiu de 2% para 33% no mesmo período. “A polícia contribuiu para a queda dos homicídios nesse período. Mas atualmente ela é uma das principais causas para que as taxas de homicídio não caiam mais no estado”, constata Nery.

Outra característica importante é que foi a queda dos homicídios na capital o principal indicador que puxou para baixo a taxa de homicídios dolosos no estado. Em 1981, a taxa na capital era 14,8%, alcançou picos aproximados de 50% entre 1999 e 2000, caindo para 7,3% em 2016.

Muitos fatos marcantes podem ter influenciado esses números, diz Nery.  Em 1992, o mundo viu o Massacre do Carandiru. Em 1993, formou-se o Primeiro Comando da Capital, o PCC. Em 1997, a violência policial brasileira foi escancarada ao mundo com as imagens chocantes do caso da favela Naval, de Diadema (SP). Em contrapartida, em 1995, foi criada a Ouvidoria da Polícia e, no ano seguinte, a Lei 9299/96 transferiu da justiça militar para a justiça comum os crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares.

Logo após a redemocratização do país e a edição da Constituição Cidadã de 1988, os índices de violência, em especial as taxas de homicídios dolosos, avançaram progressivamente. Em 1999, atingiu 52,5%, seu mais alto nível. Nesse ano, foi editado o 1º Plano Nacional de Segurança Pública.

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A contribuição do NEV para o entendimento da violência em São Paulo

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Evento discute violência e políticas de segurança no contexto das cidades

Em 2012, conflitos entre membros do PCC e da Polícia Militar fizeram subir para 12% a taxa de homicídios dolosos que, pela primeira vez em décadas, havia caído para um dígito: era 9% em 2011. A partir das jornadas de protesto de junho de 2013, os índices caíram progressivamente, até chegar a 7,3% em 2016.

Os dados da Política Civil e Militar sinalizam que o número de boletins de ocorrência aumentou na capital, região metropolitana e interior paulista, entre 1996 e 2016. Em todo o estado, o número de estupros aumentou, especialmente após 2010, apesar dos crimes contra a dignidade sexual no geral permanecerem no mesmo patamar no período. Crimes contra o patrimônio vêm numa tendência crescente desde 1996, puxado pelo número de roubos, em especial roubo de cargas, que aumentou principalmente na capital, segundo os dados.

“O que dá para perceber é que a mobilidade, a infraestrutura urbana e a oferta de serviços e lazer de alguma forma influenciam nos padrões de homicídios. Mas a cidade tem padrões muito fragmentados e nem sempre é possível dizer que o contexto sociodemográfico determina a ocorrência de crimes”, segundo Nery. O pesquisador observa que há “localidades muito específicas” onde a concentração de homicídios dolosos tem sido historicamente maior.

Para o pesquisador, o enfrentamento dos problemas da violência na sociedade brasileira e a melhoria da qualidade de vida em metrópoles como São Paulo devem passar necessariamente por um diálogo entre o poder público e a sociedade civil. “Mas como sugerir uma aproximação da sociedade com a polícia, por exemplo, se essa polícia é responsável por 33% das mortes contra terceiros?”, questiona.

Imagens: 1: Fotos Públicas/ANPr; 2 e 4: Fernanda Rezende/IEA; 3: reprodução