Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / A escrevivência carrega a escrita da coletividade, afirma Conceição Evaristo

A escrevivência carrega a escrita da coletividade, afirma Conceição Evaristo

por Beatriz Herminio - publicado 03/10/2022 14:35 - última modificação 11/11/2022 11:20

A escritora participou do evento "Escrevivência: Sujeitos, Lugares e Modos de Enunciação - Corpus Literário em Diferença", que inaugurou sua titularidade na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência

Conceição Evaristo - 27/09/2022
''Ela traz a força motriz de mulheres negras escravizadas que nos antecederam'', disse Conceição Evaristo sobre a ideia de escrevivência
Criado por Conceição Evaristo, o termo "escrevivência" traz a junção das palavras "escrever e vivência", mas a força de sua ideia não está somente nessa aglutinação; ela está na genealogia da ideia, como e onde ela nasce e a que experiências étnica e de gênero ela está ligada, explicou a escritora e educadora. "A escrevivência não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela carrega a vivência da coletividade."

Sétima titular e primeira artista a tomar posse na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, uma parceria entre o IEA e o Itaú Cultural, Conceição participou do evento inaugural de sua titularidade "Escrevivência: Sujeitos, Lugares e Modos de Enunciação - Corpus Literário em Diferença", que ocorreu no dia 27 de setembro e teve transmissão online.

Para Érica Peçanha, do Grupo de Pesquisa nPeriferias, o termo serve de chave interpretativa potente para pensar a história, a cultura e as relações de poder.

Escreviver

"O ponto nuclear da ideia de escrevivência é que ele traz a força motriz de mulheres negras escravizadas que nos antecederam." A presença de sua titularidade na cátedra significa, para Conceição, ampliar o pensamento de Lélia Gonzalez quando esta aponta que no Brasil se fala o "pretuguês" – um termo criado com o intuito de refletir sobre a formação da identidade cultural brasileira através de palavras provenientes de idiomas africanos.

Pensar a escrevivência no campo acadêmico é, para a escritora, retomar a apropriação de "epistemicídio" feita pela filósofa Sueli Carneiro. O termo envolve a escassez de referências bibliográficas negras nos estudos das diferentes áreas do conhecimento. Na USP, a chegada de reivindicações de grupos subalternizados é feita por meio de professores de maneira individualizada, e não diz respeito a um compromisso oficial da instituição, comentou Conceição.

"A ideia de língua tem sido perversa para os nossos povos negros na história", acredita Gabriel Nascimento. A denominação "língua" é recente e vem da Europa, ao contrário de seu uso – duas dimensões que não devem ser confundidas, ressaltou o doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

"Antes da chegada dos invasores brancos, a língua para os africanos pré-coloniais era mais discurso do que estrutura", disse, "e então os colonizadores passaram a nomear seus falários como língua enquanto ignoravam ou rasgavam tudo aquilo que se parecesse língua".

O próprio português do Brasil é um português africano, comentou. Ao falar de escrevivência, ele afirmou: "Não podemos deixar de falar do português dos nossos ancestrais", os quais utilizavam a língua de maneira muito diferente da que se compreendia nos regimes coloniais. No Brasil, milhões de escravizados mudaram o português por meio dos negócios do dia a dia, das tradições ancestrais básicas, da solidariedade e da luta política, ressaltou.

Ainda no Brasil, o pretuguês se tornou uma espécie de língua franca – "uma língua que serve para objetivo de conexão comunicativa a sujeitos falantes de diversas outras línguas". Por isso, Nascimento enxerga a necessidade de combater os conceitos atuais que elevam apenas o inglês à condição de língua franca.

Em leitura da carta "Escrevivência e a fabulação crítica do (im)possível", direcionada a Conceição Evaristo, Fátima Lima, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), declarou: "ao fabular criticamente o impossível, fomos fazendo possíveis".

Para ela, a escrevivência é uma ferramenta que tem mostrado que é possível "desviar a flecha" da violência atemporal do racismo, do sexismo e de outras linhas de opressão que atravessam corpos e subjetividades negras. Ela acredita que o evento inaugural da catedrática só é possível porque foram fabulados – criticamente – "outros mundos além do que é dado à vida das mulheres negras".

Escrevivência pode se distanciar da "escrita de si" ou da autoficção, pois não precisa necessariamente produzir um texto em primeira pessoa, e sim um enunciado que evoca uma coletividade, afirmou Fernanda Felisberto, professora de literatura na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Fazendo referência à poeta Lívia Natália, disse: "a academia nos ensinou que a melhor forma de produzir conhecimento era nos afastarmos das nossas experiências pessoais e do lugar de fala em primeira pessoa em favor de uma pretensa objetividade científica."

O aumento da presença de corpos negros vivos – ressaltou – dentro dos espaços acadêmicos brasileiros, tanto na condição de docente como discente, tem provocado fissuras estruturais nas relações de privilégio que sempre encontraram eco dentro das universidades do país. Para ela, "construir novas latitudes teóricas tem sido uma reparação epistemológica e uma verdadeira revolução".

Trabalhos da cátedra

Conceição apontou que, em seus trabalhos, a cátedra buscará afirmar o corpus literário diferenciado por meio da escrita. O primeiro foco serão os estudos sobre o conceito de escrevivência e as propostas vinculadas ao seu uso. Também irá investigar os modos como as classes populares se apropriam da língua portuguesa. Nesse sentido, ela gosta de pensar o que chama de "gramática do cotidiano'', que mantém, ao mesmo tempo, uma correlação e um distanciamento da gramática oficial.

Ainda, a produção da escrevivência pelos jovens será tratada pelos pesquisadores, em especial no caso das músicas de rap e batalhas de slam, com letras que levam suas vivências para o palco de atuações, afirmou a catedrática.

O projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais (Dasp), que antecedeu a titularidade de Conceição, teve início em março de 2018 e se estendeu até julho de 2022, considerando os últimos trabalhos lançados. Ele teve como questão de fundo a relação da USP com periferias e favelas, e se estendeu a partir de três ações principais: o ciclo de eventos Centralidades Periféricas, a plataforma Conexões USP Periferias e o Censo Vizinhança USP. As ações renderam uma plataforma digital, um aplicativo e três livros que podem ser acessados aqui.

Evento Escrevivências - 27/09/2022Érica Peçanha lembrou que as atividades tiveram uma equipe formada majoritariamente por pessoas oriundas das classes populares, identificadas como negras e moradoras de periferias e favelas.

Ela acredita que o projeto dialoga diretamente com a discussão sobre as escrevivências, uma vez que ambos promovem "um letramento racial e social dos sujeitos que compõem a cátedra, seus parceiros, o IEA e a própria USP".

Além disso, promovem a interlocução entre sujeitos de dentro e fora da USP ao criar novas perspectivas de formação de pesquisadores e valorizar as produções artísticas, intelectuais e científicas de grupos sociais historicamente marginalizados ou excluídos, afirmou.