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As universidades brasileiras entre o tradicionalismo e a vanguarda

por Flávia Dourado - publicado 15/01/2015 16:25 - última modificação 04/02/2016 11:53

Na quarta conferência do ciclo "Tardes Cariocas: A USP Ouve o Rio de Janeiro", Luiz Bevilacqua falou sobre os desafios das instituições nacionais de ensino superior e sobre o projeto-pedagógico inovador da UFABC.
Luiz Bevilacqua no evento Tardes Cariocas: Choque Cultural
Luiz Bevilacqua: "A universidade não é o lugar onde prioritariamente se ensina, mas onde prioritariamente se aprende"

Há um descompasso entre o sistema de educação superior brasileiro e a nova dinâmica da produção do conhecimento científico e tecnológico. Esse foi o ponto de partida da exposição de Luiz Bevilacqua, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na conferência A Universidade em um Tempo de Choque Cultural, realizada no dia 10 de outubro.

De acordo com o pesquisador do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, as universidades do país permanecem arraigadas a uma cultura de ensino defasada, que as impedem de acompanhar as mudanças em curso no âmbito da ciência e da tecnologia, bem como de formar profissionais preparados para um mercado de trabalho em transformação.

Idealizador da proposta que deu origem à área de pesquisa "Interdisciplinar" na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Bevilacqua presidiu o comitê que elaborou o projeto acadêmico-pedagógico da Universidade Federal do ABC (UFABC), da qual foi reitor pró-tempore.

Ocupou, ainda, uma série de cargos em instituições de educação e pesquisa, entre os quais o de secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI); diretor das Unidades de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB); e integrante do comitê de fundação do Inter-American Institute for Global Change Research.

Organizado e moderado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro, coordenador do Grupo de Pesquisa O Futuro nos Interpela do IEA, a conferência foi o quarto encontro do ciclo Tardes Cariocas: A USP Ouve o Rio de Janeiro, que visa a intensificar o diálogo entre pensadores da capital fluminense e da capital paulista no debate de questões sociais e vinculadas às relações humanas.

CHOQUE CULTURAL

Segundo Bevilacqua, as universidades brasileiras, em geral refratárias a reformulações no sistema de ensino, precisam abandonar o tradicionalismo e se adaptar à nova cultura de ensino e aprendizado que vem se configurado no universo da produção de conhecimento em função, sobretudo, dos progressos científicos e tecnológicos das últimas décadas.

"Nós estamos numa onda de choque cultural. Não é era do conhecimento, é mais do que isso. E numa onda, a gente não pode nadar, a gente tem que surfar, tem que ter outro modo de encarar o mundo. É preciso coragem e ousadia."

O professor atribui esse ritmo acelerado da ciência e da tecnologia a avanços em dois eixos que considera fundamentais para a evolução da universidade: aumento da capacidade de observação, proporcionada pelo desenvolvimento de instrumentos laboratoriais inovadores; e aumento da capacidade de cálculo, viabilizada por computadores de última geração.

De acordo com ele, a combinação desses dois fatores resultou no aparecimento de novas competências e deu origem a áreas do conhecimento que extrapolam as fronteiras disciplinares. "Surgiu a necessidade de rearrumação da ciência, do conhecimento e de suas aplicações em torno da interdisciplinaridade".

Diante desse novo contexto, afirmou, as universidades devem se esforçar para oferecer uma formação mais sintonizada tanto com as demandas de aprendizado dos estudantes quanto com as exigências do mercado de trabalho, procurando reorganizar o currículo de graduação a partir de duas diretrizes principais: implementação de uma matriz de ensino interdisciplinar; e redução da carga horária dos estudantes, "para que eles sejam capazes de ganhar autonomia  para trilhar os próprios caminhos".

POR UM NOVO MODELO DE UNIVERSIDADE

Público no evento Tardes Cariocas: Choque Cultural
O público levantou questões sobre
a internacionalização das universidades brasileiras

Segundo o professor, a UFABC foi projetada tendo em vista a necessidade de se adaptar a esse novo contexto. O primeiro passo foi abandonar a tradicional divisão em departamentos e adotar um modelo de organização em torno de três centros interdisciplinares: 1) Centro de Ciências Naturais e Humanas; 2) Centro de Matemática, Computação e Cognição; e 3) Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas.

O conferencista lembrou que, embora a UFABC tenha base tecnológica e concentre-se nas engenharias e ciências da natureza, a abordagem interdisciplinar dos centros permite que seus estudantes adquiram também fundamentos das ciências humanas e sociais.

"Existe um princípio básico que é a competência, formação sólida dos estudantes, inclusive formação humanística. Acho que a universidade deve cobrir todo o espectro do conhecimento, do mais racional ao mais transcendental. Ninguém pode se formar sem conhecer o mundo em que está vivendo, então tem que saber filosofia e entender a sociedade", ressaltou.

A formação integral dos estudantes é garantida, ainda, por uma matriz curricular flexível, que inclui um ciclo básico de três anos, comum a todos que entram na UFABC, composto por 40% de disciplinas obrigatórias e 60% de disciplinas optativas e/ou eletivas.

Ao final deste triênio, o universitário recebe o título de bacharel em ciência e tecnologia. Pode, então, optar por ingressar no mercado de trabalho ou por permanecer na universidade e complementar os estudos com uma graduação em uma das engenharias ou um bacharelado em Física, Matemática, Biologia, Química, Ciências da Natureza, Ciências da Computação, entre outros. Uma terceira opção é partir do ciclo básico direto para a pós-graduação.

O estudante entra para a universidade — não entra para um curso específico —, e ao longo do percurso escolhe a profissão que mais lhe agrada. "Ao proporcionar uma formação científica e tecnológica, a UFABC dá oportunidade para que ele exerça seu direito de escolha. O estudante não pode ficar confinado a trilhos. Se errar na escolha, ele pode consertar", afirmou Bevliacqua.

FORMAÇÃO CULTURAL

Para Janine, um dos pontos que mais chama atenção na proposta do bacharelado interdisciplinar trienal da UFABC é a percepção de que o ensino superior deve se voltar não apenas para a profissionalização, mas também para a formação cultural dos estudantes. Isso significa eximir as universidades do compromisso exclusivo de conceder títulos que garantam uma reserva de mercado.

O filósofo ponderou que muitos estudantes não veem a formação universitária como uma via para obter um diploma que os habilitem a seguir determinada profissão, mas como um caminho para ampliar o reportório cultural, ascender no mercado de trabalho e melhorar a remuneração. "Por um lado, a regulamentação das profissões é uma conquista trabalhista, por outro, não corresponde mais à velocidade do conhecimento", observou.

A trajetória dos graduados em Direito é exemplo disso. Segundo Janine, cerca de 90% deles são reprovados no exame da OAB. "Ou seja, de todas as pessoas que passam pelas 1200 faculdades de direito do Brasil, somente 10% poderão advogar. Os outros 90% são recusados por deficiências na formação. Por outro lado, porém, mesmo quando não forma advogados, um curso de Direito melhora a formação do seu aluno e a sua remuneração."

Por isso, destacou, o ensino superior não deve ser visto apenas como uma forma de empregabilidade numa área específica, mas como uma formação ampla e inclusiva, que abre possibilidade para a pessoa ampliar sua cidadania. "Para melhorar a cultura, a empregabilidade, o salário e até a cidadania, é preciso estudar cinco anos de códigos, ou é possível haver um aprendizado mais cultural?", questionou.

Bevilacqua lembrou que a proposta da UFABC vai ao encontro das ideias de Janine: oferecer não apenas uma formação profissional visando a empregabilidade, mas promover inclusão social e introduzir os estudantes num ambiente civilizatório.

Luiz Bevilacqua e Renato Janine Ribeiro no evento Tardes Cariocas: Choque Cultural
Renato Janine destaca importância das
universidades na formação cultural dos estudantes

ENSINAR X APRENDER

Para Bevilacqua, a fundação de uma universidade nesses moldes foi possível porque houve uma conjuntura favorável. Ao contrário do que ocorre em instituições já estabelecidas, onde inovações no sistema de ensino esbarram na resistência de professores, conselhos universitários e mesmo em regras previstas em estatutos, no caso da UFABC não havia uma estrutura burocrática ou um corpo docente impondo impeditivos.

Além disso, a UFABC foi fundada sobre alguns princípios básicos. De acordo com o professor, o primeiro deles consiste em combater a ideia de que o estudante aprende porque alguém ensina. "Não existe isso. Ele aprende porque estuda. A universidade não é o lugar onde prioritariamente se ensina, mas onde prioritariamente se aprende."

Bevilacqua defende a redução da carga horária de aulas presenciais tanto quanto possível, a fim de dar mais independência intelectual ao estudante e tempo para que estude por si só. De acordo com ele, a aula não é o momento de ensinar todo o conteúdo de uma disciplina, algo que seria desgastante e impossível, mas de dar acesso aos principais tópicos de um tema e tirar as dúvidas da classe.

"O aluno tem que ter iniciativa: buscar suas próprias soluções, procurar resolver os próprios problemas, andar com as próprias pernas, e não perguntar o professor como resolve isso", disse, ressaltando que uma das propostas da UFABC é justamente desenvolver o lado criativo e independente dos estudantes, preparando-os para enfrentar novos problemas.

“Estimulando nossos estudantes a serem ousados, a escolherem seus próprios caminhos, a descobrir, inventar, ter um pensamento crítico. E as universidades brasileiras precisam olhar isso de forma muito cuidadosa”, completou.

EIXOS INTERDISCIPLINARES

"Não se deve colocar vinho novo em vasos velhos." Para Bevilacqua, a frase sintetiza o segundo princípio que orientou a fundação da UFABC: a estruturação do projeto-pedagógico da universidade tendo em vista o novo contexto de produção do conhecimento, marcado pela interdisciplinaridade e pela interação cada vez maior entre ciência e tecnologia.

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O conferencista destacou que, além de optar pela organização da UFABC em torno de três centros interdisciplinares, foi preciso adaptar a matriz curricular, organizando os cursos a partir de seis eixos atravessados por diversas disciplinas: 1) Estrutura da Matéria, 2) Energia; 3) Processos de Transformação; 4) Comunicação e Informação; 5) Representação e Simulação (modelagem matemática); e 6) Humanidade e Ciências Sociais Aplicadas.

Esses eixos substituíram as diretrizes clássicas das graduações de universidades brasileiras — física, biologia, química, cálculo. Foram abolidas, assim, as disciplinas específicas para cada curso, como uma termodinâmica para engenheiros, outras para físicos, químicos, biólogos. "Interdisciplinaridade é efeito, e não causa. Não pode ser algo artificial. Os problemas que estamos vivendo é que exigem a convergência de competências."

A ideia dos eixos foi reunir professores de diversas áreas e extrair os conteúdos mais importantes para um bacharelado interdisciplinar, tendo em vista que o ciclo básico é voltado para estudantes que ainda não fizeram opção por uma carreira em particular. "O estudante não entrou lá para fazer física, química ou engenharia, ele entrou para um bacharelado. É preciso dar o essencial, e não especializar desde o início", explicou Bevilacqua.

Segundo o conferencista, o mundo está mudando e caminhando em direção à interdisciplinaridade, mas as universidades permanecem paradas no tempo, adotando a mesma metodologia de ensino de décadas atrás. "Entrei na escola de engenharia civil em 1955. Tive Física 1, 2, 3 e 4, Cálculo 1, 2, 3 e 4, Química 1 e 2. Mais de 60 anos depois, o que nós temos? Física 1, 2, 3 e 4, Cálculo 1, 2, 3 e 4..."

A flexibilidade curricular da UFABC foi possibilitada, em grande medida, pela decisão de não oferecer cursos de graduação clássicos, como engenharia civil e mecânica, mas carreiras alternativas — caso das engenharias aeroespacial, biomédica, de materiais, e ambiental —, que ainda não são submetidas à rígida regulamentação do CREA e de outros conselhos profissionais.

Bevilacqua lembrou, ainda, que a interdisciplinaridade deve começar por concursos de professores para grandes áreas do conhecimento. De acordo com ele, o modelo de contratação adotado pelas universidades brasileiras, baseado na abertura de editais para disciplinas específicas, leva à superespecialização dos docentes e dificulta o intercâmbio entre eles.

PROFESSORES-CONFERENCISTAS

Ainda sobre aspectos da formação do corpo docente, Bevilacqua ressaltou as dificuldades impostas pelo regime de Dedicação Exclusiva (DE), que obriga os professores a cumprirem uma jornada de 40 horas semanais de trabalho, veta o exercício de outras atividades remuneradas públicas ou privadas e exige dedicação não só ao ensino, mas também à pesquisa.

"Há uma pressão muito grande para o professor estar na universidade e não ter outra atividade fora", disse, destacando que a formação universitária em determinadas carreiras, como medicina e engenharia, requer conhecimentos técnicos dominados por profissionais que exercem a profissão. "Quem vai ensinar a fazer ponte tem que saber fazer ponte. E para saber fazer ponte, tem que estar no mercado, construindo pontes."

A solução, de acordo com ele, é diversificar o perfil do corpo docente, incluindo professores que atuam no mercado de trabalho e que possam ministrar disciplinas da sua área de expertise focadas na prática, sem compromisso com o ensino integral e a pesquisa. Trata-se dos professores-conferencistas — "pessoas que venham para a universidade e transmitam sua experiência profissional. Não tem que ter dedicação exclusiva, porque assim ele desaprende. E não é lendo livro que se aprende essas coisas. Para a parte profissionalizante, a universidade tem que estar mais aberta."

QUALIDADE X QUANTIDADE

O terceiro princípio norteador do projeto da UFABC mencionado por Bevilacqua foi a estruturação de um plano de carreira docente voltado mais para a qualidade que para a quantidade das publicações. "Publicar não é uma atividade para engodar os currículos, mas para fazer avançar o conhecimento", analisou.

De acordo com conferencista, é preciso combater a política de vincular a progressão de carreira ao volume de publicações. A ideia é avaliar os professores não a partir do número total de livros e artigos publicados, mas dos dois ou três melhores trabalhos produzidos.

"No início, os mais pessimistas diziam que ia ser um desastre. Mas os dados mostram o contrário", disse, lembrando que os índices da Scimago (base de dados que mede o fator de impacto de periódicos e a produção científica de diversos países) "mostram que a produção da UFABC está ótima".

Afirmou, ainda, que a questão da produção acadêmica no Brasil passa pela valorização dos periódicos produzidos no país. Para ele, a própria comunidade acadêmica brasileira não dá o devido reconhecimento às revistas científicas nacionais, postura que estaria associada à cultura de desvalorização da ciência nacional como um todo.

MOBILIDADE ESTUDANTIL

Segundo Bevilacqua, um dos grandes objetivos do projeto da UFABC é encaminhar os bacharéis graduados no ciclo básico para outras universidades brasileiras ou estrangeiras. No entanto, a efetivação dessa mobilidade estudantil tem esbarrado na resistência das instituições de ensino superior nacionais, que dificultam o processo devido sobretudo a divergências na matriz curricular, relacionadas às ementas das disciplinas.

Além disso, o conferencista destacou o problema da diferença de qualidade entre as diversas universidades do país. Frequentemente, as mais conceituadas se recusam a receber estudantes de outras, consideradas inferiores.

Já a mobilidade externa, de acordo com ele, é mais fácil e já vem acontecendo, uma vez que as universidades estrangeiras são mais abertas ao intercâmbio de estudantes, particularmente as instituições de países signatários da Declaração de Bolonha, que estabeleceu um Espaço Europeu de Ensino Superior.

Por outro lado, a internacionalização — tema trazido à tona pelo público — continua sendo um desafio devido, sobretudo, à já mencionada cultura de desmerecimento da pesquisa nacional por parte dos próprios pesquisadores brasileiros. De acordo com Bevilacqua, os acadêmicos que atuam no país se colocam numa posição de inferioridade diante da comunidade científica internacional.

Para explicar o problema, ele utilizou uma metáfora entre a proposta de estabelecer uma parceria de cooperação internacional e um convite para jantar. "Convido vocês [pesquisadores estrangeiros] para jantar em minha casa. Eu preparo a comida? Não, peço que vocês tragam a comida porque a minha é ruim. Isso não é internacionalização, é subserviência", finalizou.

Fotos: Sandra Codo/IEA-USP