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Os dilemas éticos decorrentes da biotecnologia e da biomedicina

por Mauro Bellesa - publicado 06/11/2014 17:50 - última modificação 26/10/2015 08:58

Evento tratou das dilemas éticos gerados pelos avançados da ciência e da tecnologia e dos impactos disso na busca de sentido na existência contemporânea.

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O Ser Humano e a Técnica
Encontro deu destaque a dilemas bioéticos

Em setembro, o quarto encontro do ciclo Em Busca do Sentido Perdido tratou do tema O Ser Humano e a Técnica. O cerne da discussão, porém, não se restringiu às dificuldades para identificar os significados de uma existência tão afetada pela tecnologia. O aspecto central do encontro foi o debate sobre as dificuldades éticas impostas pelos avanços na biotecnologia e na biomedicina.

O expositor foi o psiquiatra e psicanalista Claudio Cohen, professor da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Comissão de Ética do Hospital das Clínicas da mesma faculdade. Os debatedores foram o economista e jornalista Gilson Schwartz, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, e a cientista política Maya Mitre, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. A moderação foi do cientista político Bernardo Sorj, professor visitante do IEA e coordenador do ciclo.

Para Sorj, o tema do encontro constitui o coração do ciclo, "pois tecnologia está no centro da filosofia contemporânea, nas ciências sociais, na busca de sentido, não só por seus aspectos deletérios, mas também por sua inserção no desenvolvimento científico, na busca de soluções para os problemas ambientais e pela capacidade de alterar as relações humanas".

Na preparação de sua exposição, Cohen foi pautado por três questões formuladas pelo coordenador do ciclo:

  • as novas tecnologias genéticas podem afetar a produção de sentido?
  • se o ser humano evoluir em direção ao cyborg, quais serão as consequências para a condição humana?
  • qual é o papel da universidade nesse processo?


Iniciando pela última questão, Cohen disse que o papel da universidade é justamente organizar debates como os do ciclo, "abrindo o discurso, de forma a que o humanismo e a tecnologia caminhem juntos".

Quanto ao impacto da tecnologia, Cohen destacou que é preciso lembrar que ela já estava presente na vida dos humanos há dezenas de milhares de anos: "Estamos melhorando as coisas desde a invenção da primeira arma complexa, o arco e flecha. Agora chegamos ao ponto em que se pensa introduzir genes humanos num porquinho para que ele desenvolva órgãos a serem transplantados em humanos. No futuro, até que ponto um animal como esse será um porco com genes humanos ou será um humano com genes de porco?".

Cohen identifica a perda de sentido da vida contemporânea como resultado do reduzido papel reservado à intuição como ferramenta para pensar o futuro: "Para fazer diagnósticos sobre o futuro é preciso simbolizar com a ajuda da intuição". Para ele, a intuição também é importante para a reflexão ética.

Ele identifica cinco áreas onde estão concentrados os conflitos éticos relacionados com os avanços na biomedicina e na biotecnologia:

  • medicalização da vida;
  • sexualidade;
  • medicalização da morte;
  • medicalização do nascimento;
  • possibilidade de criação de novas espécies.
Cláudio Cohen
Claudio Cohen

Em relação à medicalização da vida, Cohen comentou que tudo hoje é objeto de pesquisas sobre tratamento e reabilitação, com "o hospital sendo considerado a única instituição capaz de tratar o ser humano como um todo e o pronto socorro virando uma clínica geral". Com isso, acrescentou, o custo da saúde ficou muito elevado, sendo impossível garantir o direito a ela previsto na Constituição Federal.

No que se refere às mudanças comportamentais em relação à sexualidade, Cohen lembrou os impactos provocados pelo surgimento da pílula anticoncepcional nos anos 60 e, depois, nos anos 90, das drogas para a disfunção erétil, que possibilitaram a muitos idosos se reintegrar ao grupo de pessoas com interesse sexual. Além disso, citou os conflitos em relação às preferências sexuais quando não há correspondência entre os gêneros do indivíduo definidos pelos aspectos genético, morfológico, endócrino, psicológico e cultural-jurídico-religioso.

Na opinião de Cohen, a medicalização da morte é resultante de vários fatores, desde o estabelecimento da morte cerebral como critério definidor (e com isso possibilitando o transplante de órgãos) até o desenvolvimento de novas tecnologias médicas, que levantaram questões complexas, como o quanto prolongar a vida e o quanto cuidar da saúde. Ele exemplificou com o dilema ético envolvido no desejo de um paciente em não ter a bateria de seu marcapasso trocada (possível nos Estados Unidos, mas impossível no Brasil) e morrer em consequência disso. Há mesmo a medicalização de "conceitos sociais em relação à morte, como no caso de o  DSM-5 (5ª edição Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria) julgar que um luto por mais de duas semanas deva ser tratado como depressão".

Para Cohen, a medicalização do nascimento tem como fundo uma questão bastante simples de formular e extremamente complexa para responder: o que é vida? "Até há alguns anos, vida era um determinante biológico, os biólogos sabiam o que tem vida; hoje em dia os astrofísicos entendem que o planeta tem vida. Quem vai definir o que é vida? Os filósofos? Os biólogos? A justiça? As religiões? Os bioeticistas? E quando deve ser considerado o marco zero para o início da vida? A grande maioria das pessoas considera como março zero o momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. No entanto, hoje já é possível clonar animais, um processo de reprodução assexuada."

Quanto à criação de novas espécies, ele destacou que o caminho para isso vem desde o início da criação de organismos transgênicos nos anos 70 e agora já é possível criar novas espécies de forma sintética: "Qual a posição ética que encontramos em face dessas novas tecnologias? Os transumanistas julgam isso viável e útil; os conservadores, que constituem a maioria da sociedade, não".

Cohen decidiu encerrar a exposição com uma série de dúvidas que acredita sejam justificáveis em função do que se observa no presente e do que se intui para o futuro:

  • Existe algum absoluto ético?
  • Existe uma cultural moral universal?
  • São possíveis as generalizações biológicas e bioquímicas?
  • As decisões médicas podem ser universais, sobretudo com relação à natureza social e psicológica do indivíduo?
  • Com relação à especificidade da medicina, devemos formar engenheiros-médicos (preocupados com os aspectos biológicos) ou médicos clínicos (preocupados também com a biografia do paciente)?
  • Como tratar a medicina complementária e alternativa?


COMENTÁRIOS

Maya Mitre disse que "a maioria das pessoas não questiona o uso da tecnologia para a cura de uma pessoa, não havendo muito debate moral em torno disso", acrescentando que "o problema surge quando se começa a pensar a ciência como forma de melhorar a espécie humana, pois aparece a dúvida se isso vai nos deixar menos humanos".

Com exemplo para essa eventual "melhoria" do ser humano, Maya levantou as possibilidades crescentes de manipulação de características de nascença dos indivíduos, via seleção de embriões: "Muitos países já permitem o desenvolvimento de embriões no laboratório e posterior seleção para que se evitem doenças genéticas. Até a escolha do sexo é permitida, inclusive no Brasil, para evitar doenças genéticas que são transmitidas apenas para homens ou apenas para mulheres".

Maya considera que até esse ponto parece não haver problema, mas vê outras possibilidades que precisam ser discutidas, como o fato de um casal querer selecionar o embrião de uma menina, pois já tem três meninos, ou se no futuro for possível detectar genes específicos para dislexia, miopia e obesidade, por exemplo, que os pais quererem embriões sem esses genes. Ela levantou a hipótese de uma questão ainda mais polêmica: "E se a genômica se desenvolver a tal ponto que no futuro seja possível selecionar embriões com talentos musicais, esportivos ou matemáticos, por que não permitir essa seleção? Qual a diferença entre selecionar um embrião com determinados talentos ou fazer o que o pai das tenistas americanas Venus e Serena Williams fez, treinando-as desde muito pequenas a serem tenistas? Não é melhor escolher um embrião apropriado, que resultará num indivíduo que sofrerá menos?".

Maya Mitre
Maya Mitre

A pesquisadora disse que há um desconforto entre muitos filósofos quanto à ideia de seleção de embriões, mas que outros pensadores, como Michael Sandel, consideram que há um caminho para pensar sobre o assunto. Segundo ela, Sandel diz que a liberdade de escolha da lógica liberal não é capaz de explicar o nosso desconforto. "Ele acredita que ao se apropriar demais da natureza, o indivíduo acaba interferindo com três valores importantes: humildade, responsabilidade e a solidariedade. A humildade é a questão da nossa postura em face do desconhecido, do imprevisto, que nos torna humanos." Outra coisa em que ele acredita, segundo Maya, é na ideia de quanto mais liberdade de escolha, maior a responsabilidade: "Isso significa que quanto mais se puderem escolher as características dos filhos, maior será a responsabilidade, que poderá se tornar um peso insuportável".

Em resposta aos comentários de Maya sobre o fato de não haver muita discussão quanto a se desejar a cura de alguém, Cohen disse que às vezes certos impedimentos levam ao desenvolvimento tecnológico: "Quando foram iniciados os transplantes de fígado, houve uma objeção cultural por parte dos japoneses, que não aceitam receber órgãos de cadáveres. Como consequência, eles acabaram desenvolvendo o transplante de fígado intervivos".

Em relação à liberdade de escolha genética mencionada por Maya, Cohen disse que aparentemente o indivíduo tem o direito de escolher o que ele quer, mas pode ser que a sociedade diga que não pode ser assim por diversos fatores, inclusive aspectos religiosos, pois não existe apenas a liberdade individual, mas também outras condicionantes morais que podem ser limitantes.

O primeiro tema abordado por Gilson Schwartz em seus comentários foi o rastro digital deixado por quem morre, algo que tem adquirido relevância ultimamente: o que deve acontecer com as páginas, posts, emails armazenados e outros conteúdos que a pessoa inseriu ou fez circular na internet? "É um desafio bastante delicado, o direito ao esquecimento e, especialmente, o direito à privacidade post-mortem”. Talvez seja necessário deixar em vida instruções sobre o que deve ser feito com o rastro digital pessoal e isso "coloca em evidência a dificuldade que existe em lidar com a tecnologia, não com o que ela tem mais de instrumental, mas com algo intangível, a memória".

Outro ponto discutido por Schwartz foi o vínculo entre tempo e morte e em que medida a tecnologia altera essa relação. Ele lembrou que Heidegger em "O Ser e o Tempo" situa a relação do indivíduo com o tempo como uma relação com o futuro, e "ao pensar o futuro o indivíduo tem de pensar que em algum momento ele não estará mais aqui". Schwartz destacou, porém que "agora, vemos que nos "Cadernos Negros" de Heidegger fica clara sua opção pelo nazismo, pelo hitlerismo; com isso, a constatação ontológica fundamental de que afinal vamos todos morrer torna-se quase um culto à morte, à morte em massa, ao genocídio".

Como contraponto a Heidegger, Schwartz mencionou as ideias do filósofo judeu Emanuel Levinas de que "a situação fundamental do ser humano não é essa de focar o futuro para pensar na morte, mas sim que o fenômeno fundamental da nossa vida é a constatação da morte do outro, de quem a gente ama". De acordo com Schwartz, Levinas situa no feminino e no amor essa disposição para se preocupar com a morte do outro e "essa perspectiva, até certo ponto erótica, coloca o feminino como algo fundamental para a gente pensar a vida e a morte, e não a morte como algo que seja evitável pela tecnologia".

O último ponto tratado por Schwartz foi à nova tendência da gestão hospitalar, voltada para que o paciente fique o menor tempo possível no hospital, o que leva a uma "hospitalização dos domicílios e o uso da internet como um hospital distribuído, móvel, inclusive com aplicativos para o celular que controlam quantos passos alguém deu, quantas calorias ingeriu etc.". Para o debatedor, isso faz com que "carreguemos em nosso corpo e tenhamos em nossa casa quase que uma hospitalização permanente".

Quanto à questão da herança digital de alguém, Cohen relatou que houve uma discussão muito grande no Hospital das Clínicas sobre o assunto, pois uma lei determinou que os prontuários médicos só devem ser guardados por 20 anos. Ele disse que os responsáveis pelos prontuários logo manifestaram que pretendiam queimar o que não precisava ser guardado, pois estaria ocupando muito e precioso espaço das instalações. Como presidente da Comissão de Ética, Cohen argumentou que eles estavam "queimando a vida das pessoas, mas isso não foi considerado um problema".

Sobre a nova lógica de gestão hospitalar citada por Schwartz, Cohen a confirmou, acrescentando que a tendência é que as pessoas vão para casa o mais rápido possível e tenham atendimento por meio do chamado homecare. Todavia, se a ida para casa reduz o risco de infecção hospitalar, há também um viés econômico nisso, "pois um paciente num leito de enfermaria não é tão rentável como um paciente na UTI".

Bernardo Sorj
Bernardo Sorj

O moderador do evento disse que os temas comentados por Cohen o fizeram lembrar de uma frase comum na filosofia sobre a racionalidade das partes e a irracionalidade do todo, ou seja, "no nível do indivíduo a coisa melhora, mas o resultado coletivo final pode ser destrutivo". Sorj disse que o biólogo Jacque Monod, Prêmio Nobel de 1965, já se preocupava nos anos 60 que as melhorias na medicina poderiam estar trazendo para a humanidade um pool genético que a seleção natural eventualmente eliminaria.

Outra observação de Sorj relacionou os princípios de Eros e Tânatos à tecnologia: "Freud nos ensinou que o ser humano carrega esses dois potenciais, de amor e de destruição, inerentes à condição humana. Aparentemente a tecnologia é neutra, podendo ser usada para o bem e para o mal, mas na verdade não é bem assim, pois ela é produzida por seres humanos com objetivos determinados e, portanto, não pode ser considerada neutra. Pensar que a vitória será do bem contra o mal é um desejo, mas ao deixar nossos desejos de lados, nossas intuições nos levam a preocupações grandes sobre o futuro".

Em resposta a Sorj, Cohen frisou que Freud estabeleceu os princípios antagônicos de Eros e Tânatos não como uma questão ética entre bem e mal, mas como uma questão da psique humana.

A Maya, Sorj disse que a incerteza total é insuportável, mas o controle absoluto é tão desumanizador quanto ela. "Para ter menos incerteza, o indivíduo aceita um controle que termina sendo insuportável, destruindo sua humanidade. Que capacidade teria uma sociedade democrática para enfrentar isso?"

Maya disse que falou sobre a questão da escolha genética mais como provocação para o debate, pois a considera algo muito problemático, até do ponto de vista psicanalítico. "Coloca-se tanta responsabilidade sobre os pais que a relação com os filhos se torna corrompida e pouco saudável para a própria criança". Para ela, a grande preocupação em relação à tecnologia — e não só a biotecnologia — não é a de que um estado totalitário possa se apropriar dela e desenvolver um projeto eugênico, mas sim sobre onde vai-se parar caso indivíduos sejam autorizados a escolher autonomamente, sob um ponto de vista liberal, numa lógica de mercado. Para ela, o resultado disso pode ser desastroso. "E se deixamos sob o controle do estado também o será, com a possibilidade de repetição de erros do passado."

A Schwartz, Sorj perguntou até que ponto o mundo virtual poderá ser um novo produtor de sentidos que escapam aos mais velhos e aos mais jovens que ainda não ingressaram completamente nele.

Gilson Schwartz
Gilson Schwartz

Em resposta, Schwartz comentou que uma palavra da moda atualmente é gamification: "Até recentemente a difusão das tecnologias digitais tinha mais o impacto sobre eficiência de processos, mudanças nas relações de mediação e intermediação, algo muito mais funcional, operacional, econômico, redução de custos, principalmente custo de transações, custos para acessar informações. De cinco anos para cá, os games e a gamification trouxeram uma dimensão para o uso da tecnologia totalmente inédita, uma ludificação (mal traduzindo gamification) da vida".

Para Schwartz, trata-se de uma mudança antropológica importante, pois parece haver uma nova dimensão da vida em que o lazer, a diversão, a criatividade, a brincadeira, a crítica ganham maior importância com a tecnologia, devendo afetar nossa relação com a vida e mesmo a política do cuidado com cada um. "Será que não está surgindo aí uma nova perspectiva terapêutica,  onde o cuidar de si e o cuidar dos outros passa menos por uma  descoberta instrumental, um novo remédio, uma nova prótese, e mais por uma nova situação no mundo, mais brincalhona e menos trágica?"

A última indagação de Sorj foi para Cohen, sobre o fato de que a expectativa de vida tem aumentado, mas a qualidade de vida não velhice não: "Não estaríamos nos aproximando de decisões complicadas, sobre quem vai decidir e como? Será que o mercado vai possibilitar aos ricos viver mais e, ao mesmo tempo, limitar o tempo de vida dos pobres? Da mesma forma, pessoas ricas poderão ter filhos sem doenças e a partir de certo cardápio e pessoas pobres não poderão fazer essas escolhas e seus filhos pagarão seguros mais caros? Os impactos sociais podem ser tremendos e sobre a própria essência da humanidade."

Segundo Cohen, o problema em relação à qualidade de vida dos idosos está muito relacionado com o fato sempre denunciado pelos geriatras de que toda nossa sociedade, cadeiras, ônibus, tudo é feito para pessoas até a meia idade, não para os idosos. "Será preciso construir espaços onde os idosos possam ter instalações, móveis e tudo o mais adequado a eles. Aí sim eles terão qualidade de vida. O que eles não estão conseguindo é se adaptar a este mundo feito para pessoas mais jovens".

Fotos: Sandra Codo/IEA-USP