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Sistema Terra: uma forma integrada de estudar as mudanças ambientais e suas consequências

por Mauro Bellesa - publicado 13/04/2018 13:30 - última modificação 16/04/2018 08:20

No evento "Conversa sobe o Sistema Terra", no dia 10 de abril, Carlos Nobre, do Inpe, respondeu a questões que lhe foram apresentadas por José Eli da Veiga, do IEE-USP, e pelo público (presente e online).
Carlos Nobre e José Eli de Veiga - 10/4/2018
Carlos Nobre (à esq.) respondeu a perguntas de José Eli da Veiga e do público

"Os diagnósticos estão feitos. É nos prognósticos que podemos avançar, sobretudo em relação aos grandes riscos". A afirmação taxativa é do cientista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ao falar sobre a prioridade a ser dada nos estudos a respeito das transformações ambientais globais. Ele foi o expositor/entrevistado no evento Conversa sobre o Sistema Terra, realizado no IEA no dia 10 de abril.

Nobre disse que uma das áreas de pesquisa mais importantes atualmente é a da previsão de possíveis pontos de ruptura, a partir dos quais não haveria mais volta. Entre eles, mencionou o aquecimento das águas do Oceano Ártico a um nível que liberaria a imensa quantidade de metano preso no seu fundo, o derretimento completo da geleira da Groenlândia ou ainda, do ponto de vista social, uma migração incontrolável de centenas de milhões de pessoas em função de uma aguda crise ambiental.

Todavia, de acordo com especialistas como Nobre, já não é concebível que os estudos se deem de forma isolada, considerando separadamente aspectos climáticos, biodiversidade e impactos sociais. Por isso a abordagem atual vez todos esses fatores inter-relacionados no que que os pesquisadores chama de Sistema Terra.

O organizador do encontro, o economista José Eli da Veiga, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, destacou que Nobre é um dos principais especialistas mundiais em transformações ambientais globais, ex-diretor do IGBP (Programa Internacional Geosfera-Biosfera) e pesquisador empenhado nessa concepção integradora, tendo criado no Inpe um curso de pós-gradução em ciências do Sistema Terrestre.

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“Na época em que ele estava terminando o doutorado no MIT [Massachusetts Institute of Tecnology, EUA], no início dos anos 80, as esferas geológica e biológica ainda eram tratadas separadamente no IGBP, mas a ideia de Sistema Terra já germinava no programa.” Quando Nobre dirigiu o o Comitê Científico do programa, de 2005 a 2011, a questão adquiriu mais força, afirmou Veiga.

Atualmente, o conceito de Sistema Terra é muito familiar entre pesquisadores de geociências e astronomia, “mas nas áreas de biologia e humanidades ninguém sabe o que é”, disse Veiga. Por isso o evento foi organizado, para colaborar com a aproximação de outras áreas à temática. “É um imenso desafio incluir a 'humanosfera' no sistema.”

Segundo Nobre, um dos resultados diretos da nova abordagem foi o estabelecimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável pela ONU em setembro de 2015. “Muito do direcionamento para aonde tudo caminha tem a ver com as respostas que daremos às questões do desenvolvimento sustentável", disse o pesquisador. Para ele as palavras "sustentável" e "felicidade" passarão a ser indissociáveis nas próximas décadas.

O alerta do El Niño

Historiando o processo que levou à concepção do Sistema Terra, ele disse que um primeiro aspecto de alerta importante foi quando os cientistas começaram a compreender o El Niño, “primeiro fenômeno de escala planetária”, no final dos anos 70. "O El Niño de 82/83 determinou o grande interesse mundial surgido na época sobre como os oceanos e a atmosfera estão intimamente acoplados."

Em 85, surgiu um programa mundial de pesquisa climática a partir das preocupações da Organização Meteorológica (OMM), da Unesco (no que se refere à hidrologia) e do Conselho Internacional para a Ciência (Icsu, na sigla em inglês), comentou Nobre. “A preocupação nos anos 80 era com a modificação da composição da atmosfera.” Em 1987 acontecerem mais duas coisas importantes: o relatório "Nosso Futuro Comum, elaborado pela Comissão Brundtland, da ONU, “talvez o documento mais importante do final do século 20, e que deu origem a todos os movimentos por sustentabilidade posteriores"; e a criação do IGBP ("como não havia nele a dimensão da biodiversidade, foi criado o Programa Diversitas em 1991").

O IBGP e o Diversitas, mais o WCRP (Programa Mundial para a Pesquisa sobre o Clima) e o IHDP (International Human Dimensions Program) funcionaram isoladamente até o início dos anos 2000, "quando se percebeu que não falavam de coisas diferentes e não fazia muito sentido mantê-las independentes; foi assim que surgiu em 2009 a ideia de criar um programa integrativo: o Future Earth [Futuro da Terra], que englobou o IGBP, o Diversitas e o IHDP".

De acordo com Nobre, o Futuro da Terra não incluiu o WCRP, pois a Assembleia Geral da ONU não aprovou sua extinção, dados os impactos das mudanças climáticas em diversos aspectos da vida dos países mais afetados. “É uma pena, era melhor que tivesse surgido um grande programa integrativo de todas as áreas. Mas estamos esperançosos que isso seja atingido a partir da posse, em setembro, do novo cientista-chefe da Organização Meteorológica Mundial, o professor Pavel Kabat, um grande amigo do Brasil.”

Antropoceno

Nobre também comentou a definição da atualidade como um novo período geológico, o Antropoceno. Em sua opinião, não há a menor dúvida de que a ação humana se tornou uma força com magnitude igual à das forças telúricas, geradoras de mudanças fundamentais no planeta, as quais delimitam os períodos geológicos.

Afirmou que não é a primeira vez que a ação de uma espécie define um novo quadro planetário: "Isso aconteceu na época em que a vida se concentrava nas cianobactérias, surgidas há 3,6 bilhões de anos. Com capacidade de realizar fotossíntese, elas retiraram gás carbônico da atmosfera e o transferiram para o oceano.  “Isso foi fundamental para que houvesse mais oxigênio disponível - uma vez que o gás carbônico respondia por 80% da atmosfera até então -, surgisse um clima mais propenso à vida, com temperatura mais baixa, água líquida e atmosfera propícia.”

Mas não é apenas a ação de uma espécie que caracteriza o Antropoceno, segundo ele. "A velocidade do processo é um elemento novo. Enquanto as cianobactérias levaram 1,6 bilhão de anos para promover as mudanças, as ações humanas em alguns séculos transformaram o clima de forma radical. Não há exemplos recentes de uma transformação tão rápida. Houve transformações localizadas rápidas, mas nada parecido ao que está acontecendo em escala mundial."

Sobre a criação do Futuro da Terra, ele disse que a motivação foi relativamente "mundana, pequena". Os quatro programas continuavam a existir e buscavam recursos nas mesmas fontes. "As agências de financiamento dos Estados Unidos, Reino Unido e alguns outros países resolveram que não financiariam quatro programas diferentes fazendo a mesma coisa."

Ele respondeu a pergunta de Veiga sobre por que o Sistema Terra não foi incluído no Futuro da Terra. Disse que os envolvidos na formulação do novo programa consideraram ser difícil transmitir para a sociedade que o sistema não era voltado especificamente às geociências. “Quando se fala de Sistema Terra, as pessoas remetem diretamente às geociências, inclusive por que o nome delas em inglês é earth sciences.”

"Quando falamos de Sistema Terra, dizemos que é um sistema complexo no qual inserimos o ser humano como mais uma das espécies interagindo. Essa ideia ficou um pouco confusa para ser transmitida a todos e a discussão não avançou muito."

Um exemplo disso deu-se quando da criação do curso de pós-graduação em ciência do Sistema Terrestre: "Os alunos chegavam confusos, não entendiam claramente, pois pensavam em ciências ambientais, biogeofísica e biogeoquímica. Internamente, no Inpe, foi difícil criar um curso interdisciplinar assim. Pela primeira vez foram contratados um sociólogo e dois antropólogos".

Quanto à validade atual das questões elaboradas em 2002 pelo Gaim (Análise, Integração e Modelagem Globais), um grupo de trabalho do IGDPS, motivo de pergunta de Veiga, Nobre disse que algumas questões já não se colocam mais da maneira que foram colocadas na época, "mas o espírito delas permanece". Outras questões são "mais normativas e filosóficas e continuam válidas".

Nobre fazia parte do Gaim na época da formulação das questões. Afirmou que a ideia era criar diversos programas de pesquisa com raízes muito fortes na biogeofísica e na biogeoquímica. "Havia gente de várias disciplinas, mas pouca gente de ciências sociais."

Pontos de ruptura

“O Gaim foi o primeiro grupo a dizer que podem ocorrer pontos de ruptura irreversíveis do Sistema Terra", segundo ele. Se o estado crítico da interação entre atmosfera e oceano se romper, não haverá volta, afirmou.  disse. “A Terra só passa por períodos glaciais por que existe o congelamento do Oceano Ártico. Se isso acabar, não haverá mais glaciação"

Ainda em relação ao Oceano Ártico, disse que se houver um aquecimento que libere todo o metano presente no seu fundo, isso ocorrerá em poucas décadas, com o efeito de duplicar ou quadruplicar o efeito estufa. No entanto, ninguém é capaz de dizer quando haverá esse risco, explicou. “Sabe-se que um aquecimento de 2º fará a geleira da Groenlândia derreter, mas ninguém sabe se em alguns séculos ou em mais de mil anos."

Pedro Leite Dias, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, manifestou a preocupação sobre o processo de tomada de decisões com impacto na evolução do planeta, principalmente quando a percepção do clima não corresponde ao que se sabe que vai acontecer no futuro.

Luiz Bevilacqua, professor visitante do IEA, também quis saber a opinião de Nobre sobre a dificuldade de convencer os tomadores de decisão sobre a urgência na adoção das medidas necessárias. “A velocidade dos fenômenos está acelerando e vão acabar gerando uma onda de choque. No entanto, quando percebemos que que estamos no limite de algo, ele já é iminente.”

Para Nobre, a percepção de risco não tem uma definição científica, “é um valor que atribuímos a alguma coisa que não queremos perder”. Ele fez um paralelo entre a percepção de risco em relação à saúde e a mudanças climáticas. “Quando há risco para a saúde humana, a percepção de risco é alta, com prevalência do princípio de precaução. No caso do clima, a sociedade não consegue enxergar os riscos da mesma forma.”

No entanto, Nobre considera que de 2007 para cá, a percepção de riscos em função das mudanças climáticas aumentou. Uma explicação para isso, "talvez simplista", é o aumento do número de eventos naturais extremos, como os quatro furacões de categorias 4 e 5 na última temporada no Caribe, devido ao aumento da temperatura do oceano.

Ele ponderou que os pesquisadores não previram que o gelo do Ártico passasse a derreter de forma tão rápida, nem o aumento no número de furacões. “Pensávamos que essas coisas aconteceriam bem mais para a frente.”

Em relação à tomada de decisão, Nobre destacou o ocorrido na Cúpula de Paris em 2015. Para ele, foi algo histórico, pois não havia a expectativa de que o limite de aumento de temperatura fosse estabelecido em 1,5º C. "Houve pressão diplomática, pois com 2º C de aumento, muitos países-ilhas desapareceriam e, além disso, com 1,5º C, a geleira da Groenlândia seria mantida.  O que se passou foi que houve uma jogada inteligente da diplomacia francesa, com os presidentes, primeiros-ministros e reis chegando para o encontro no primeiro dia e já definindo o que seria adotado."

Riscos sociais

Solicitado por um pesquisador que assistia o evento pela internet a dar um exemplo de ponto de ruptura na área social, Nobre comentou que isso poderia acontecer em relação a refugiados ambientais. "Uma crise ambiental poderia levar centenas de milhões de pessoas a querem migrar para outra região, o que só poderia ser barrado por um genocídio. É um assunto muito sério e há muita gente estudando essa possibilidade.”

Ele comentou que a interação com as ciências humanas aumentou muito, mas vê dificuldades para a geração de representações sobre alguns elementos dos sistemas sociais, como a democracia e a religião: "São elementos centrais muito importantes e cujas interações são difíceis de entender.  Temos dificuldades em compreender fatores como o sistema de decisão numa sociedade e a influência de líderes religiosos sobre elas, por exemplo."

Em complemento às observações de Nobre e finalizando o encontro, Veiga disse que é um grande desafio relacionar quatro processos muito diversos: a vida, analisada a partir da teoria darwiniana; a parte não orgânica do planeta; a natureza humana; e o processo civilizatório. "Ainda estamos longe da transdisciplinaridade necessária para dar conta disso."

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP