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Momento de repensar a lógica da gestão da água e equilibrar privilégios

por Sylvia Miguel - publicado 12/11/2015 15:40 - última modificação 03/08/2018 17:21

Metrópoles da Europa e América Latina reproduzem modelo de desenvolvimento que não resolve problema da escassez hídrica, mostram especialistas da Espanha e da França.
Leandro Del Moral Ituarte

Para o espanhol Leandro Ituarte, o paradigma hidráulico tem uma longa história cultural que conta com a instrumentalização da mídia.

Contratos pouco rigorosos quanto aos custos e ao licenciamento ambiental de grandes obras, alterações hidrológicas, drenagens, erosões, obras paralisadas por mal planejamento, deslocamentos de populações, inundações de parques e áreas de preservação. A imensa lista de problemas relacionados a megaprojetos de construção civil poderia estar relacionada ao Brasil, dada a semelhança com a realidade do País. Mas foi apresentada como estudo de caso do sul da Espanha pelo geógrafo e historiador Leandro del Moral Ituarte, da Universidade de Sevilha, Espanha, em palestra dia 10 de novembro no IEA.

O debate Escassez Hídrica, Governança e Justiça Ambiental foi moderado pelo professor Pedro Jacobi, coordenador do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do IEA. Outro expositor foi Bernard Barraqué, do Le Centre National de la Recherche Scientifique, (CNRS), de Paris. Os especialistas analisaram o contexto de megaprojetos e seus impactos relacionados à gestão hídrica nas metrópoles.

Ituarte apresentou o caso da bacia baixa de Guadalquivir, que banha territórios da Andaluzia, na Espanha. Mostrou as constantes obras em um porto regional, os gigantescos danos ambientais de uma mineradora, as barragens e transposições de rios que nunca findam a necessidade de drenar mais água.

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“São obras que consolidam um modelo de desenvolvimento baseado em duas regras básicas, fundamentadas na perspectiva financeira e nos benefícios de curto prazo”, disse Ituarte.

Dentro da lógica em que os megaprojetos são aprovados, “eles não podem ser transparentes porque isso os colocaria sob questionamento”, afirmou. Para o geógrafo, o mito do progresso, assim como o planejamento ruim, a subestimação de custos, contratos inadequados e o descumprimento de prazos são categorias que pertencem a um mesmo fenômeno.

“Infelizmente, são projetos que tiveram aprovação popular. O paradigma hidráulico tem uma longa história cultural que conta com a instrumentalização midiática. As compensações ambientais afinal acabam beneficiando engenheiros e biólogos. E tudo é financiado pelo fundo europeu de desenvolvimento”, apontou.

Na Espanha, as tarifas de água são muito sensíveis a quaisquer variações. Com isto, as companhias distribuidoras têm informações detalhadas do consumo, incluindo o número de habitantes de cada residência, disse Ituarte.

“Chegamos a um nível de consumo 40% inferior ao pico registrado em 1991. As tarifas são muito caras porque por um lado, as empresas precisam lucrar. Por outro, devem incentivar a redução do consumo”, afirmou.

Leandro Del Moral Ituarte, Pedro Jacobi e Bernard Barraqué

Jacobi destaca as contradições de a iniciativa privada gerir bens públicos.

Para Jacobi, o exemplo espanhol mostra a contradição de bens públicos serem geridos pela iniciativa privada. “Hoje, a Espanha joga pedra no próprio telhado. Como pode uma empresa privada querer reduzir o consumo? Cabe refletir se a sociedade entende a contradição dessa lógica”, disse Jacobi.

Para o professor, o Brasil segue o mesmo modelo de desenvolvimento. “Vemos acordos privados para a construção de grandes obras do Governo. A lógica mantém o desequilíbrio hídrico. Não precisamos consumir mais e sim, melhor. Ou seja, sem a situação de privilégios para uns e de escassez para outros”, observou Jacobi.

Segundo Jacobi, diante da crise hídrica em diversas metrópoles brasileiras, é o momento de a sociedade brasileira repensar a lógica da desigualdade e estabelecer uma governança democrática da água.

Para Barraqué, diretor de pesquisa do Centre International de Recherche sur l’Environnement et le Développement, disse que na França há diversos modelos de parceria público-privada e que não necessariamente existe contradição no fato da iniciativa privada participar da gestão de bens públicos. “Há muitas outras questões envolvidas. Um fator sem dúvida importante é a participação da comunidade na gestão da água”, disse.

Barraqué, que também atua na Agro ParisTech - École Nationale du Génie Rural, des Eaux et des Fôrets, acredita que não é possível entender a gestão da água sem entender a relação entre o Governo central e os municípios.

Bernard Barraqué

Barraqué, da CNRS, da França, não acredita em modelos importados: "Brasil deve construir o seu próprio".

Muitos municípios precisam da privatização de serviços porque não têm condições de oferecer qualidade, diz Barraqué. “Muitas prefeituras acabam se modernizando com essas parcerias. Acredito que possivelmente isso levará a um novo movimento de remunicipalização modernizada”, disse.

Para Barraqueé, é provável “que as empresas privadas mudem seu papel na gestão da água. Provavelmente terão menos benefícios mas continuarão a atuar nos serviços públicos”.

“Porém, não há modelos que podem ser importados. O Brasil deve construir o seu próprio. Há muito o que avaliar para cada realidade”, disse o especialista, que acaba de produzir para o Banco Mundial um relatório inédito sobre as mudanças climáticas e a problemática da água nas grandes cidades do mundo. Intitulado “Adaptation to Water-related Climate Change in cities”, é assinado em co-autoria com Bruno Tassin.

Poucas cidades no mundo conseguiram estudar o impacto das mudanças climáticas e a gestão das águas com projeções relacionadas aos episódios de secas. “Há muitos estudos relacionados a furacões e enchentes. Mas o único exemplo de estudo que vi relacionado a secas e mudanças climáticas foi em Barcelona”.

Segundo Barraqué, o estudo em questão foi publicado na edição número 3 da Water Economics and Policy, com o título “Selecting an Efficient Adaptation Level to Uncertain Water Scarcity by Coupling Hydrological Modeling and Economic Valuation”, assinado por Roger Guiu e outros autores.

Fotos: Leonor Calasans