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“O que dá identidade a um governo é a forma como ele exercita seu poder”, diz Erundina

por Sylvia Miguel - publicado 23/11/2016 16:10 - última modificação 01/12/2016 13:49

Em debate do USP Cidades Globais, ex-prefeita critica privatização dos serviços públicos, a falta de estímulo à educação política a pouca importância dada à extensão universitária

Da agricultura à informática, da engenharia à educação fundamental, o conhecimento produzido na USP tem sido aplicado ao longo de décadas em inúmeros setores e tem contribuído para o avanço tecnológico e científico do país. Mas ainda existe na sociedade a percepção de que a produção uspiana permanece intramuros. Como aplicar as pesquisas produzidas na Universidade visando à solução de problemas da capital paulista foi uma das questões que permeou o debate com a ex-prefeita Luiza Erundina, segunda expositora do ciclo Gestão de uma Metrópole: a Experiência dos Prefeitos de São Paulo, organizado pelo Programa USP Cidades Globais.

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No dia 18 de novembro, a deputada federal (PSOL-SP) criticou a adoção da política do “Estado mínimo” que vem terceirizando serviços públicos prioritários. Destacou que uma cidade global precisa dar acesso à educação e promover a consciência política de sua população. Defendeu uma distribuição mais equânime do orçamento municipal conforme o nível de renda dos distritos e criticou as universidades públicas que não colocam a extensão universitária no mesmo nível de importância do ensino e da pesquisa.

A série pensada para servir de suporte para as ações do programa foi inaugurada com o relato do prefeito Fernando Haddad, no dia 11 de novembro. Todos os ex-prefeitos serão convidados a dar depoimentos. Lançado em julho deste ano, o USP Cidades Globais buscará estabelecer conexões entre as pesquisas acadêmicas e as políticas públicas voltadas aos centros urbanos. O objetivo é elevar São Paulo para o time das metrópoles mais influentes e com melhores indicadores de qualidade de vida.

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"Não se pode depender do altruísmo de professores e estudantes para que a extensão aconteça e a sociedade tenha acesso às tecnologias e aos saberes"

Erundina disse que houve em seu mandato (1989-1993) situações concretas que foram fruto da parceira de daquela gestão com quadros da USP. "Um exemplo foram as novas tecnologias habitacionais criadas para a população de baixa renda. Houve muitos acertos. Mas respostas eficazes do passado são insuficientes para fazer frente aos problemas atuais. O desafio de reconstruir saídas e soluções deve passar pelo enfrentamento das relações de poder e isso inclui o saber. Não se pode depender do altruísmo de professores e estudantes para que a extensão aconteça e a sociedade tenha acesso às tecnologias e aos saberes”, disse Erundina.

A deputada defendeu que a extensão deveria cumprir a função social da universidade e ser a sua essência. “A universidade deve saber que precisa da prática e da dinâmica da sociedade até para se repensar como teoria, como ciência e como pesquisa. Deveria haver uma instância capaz de integrar governo, sociedade e universidade, formando um canal permanente de diálogo para encaminhar demandas”, disse Erundina.

Para Erundina, a iniciativa do IEA é instigante para evidenciar o papel da cidade de São Paulo no mundo e o papel da universidade para o país. “Quando vim para São Paulo fugindo da Ditadura Militar, vi que a luta da terra também estava aqui e me envolvi como assistente social com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Mas quando o povo conquista seu direito, esbarra na falta de soluções técnicas inteligentes para seus problemas. Vimos que muitos técnicos não são formados para ajudar com os grandes problemas da periferia. Porque somos uma sociedade extremamente desigual, inclusive em relação ao saber. A formação profissional que não estabelece vínculos com a sociedade é no mínimo insuficiente”, disse.

“Nós deputados só somos chamados quando é para apresentar emenda ao orçamento. Eu me pergunto quando é que a bancada de São Paulo será chamada para ter uma conversa com a USP para que ela apresente suas demandas e assim estabelecermos canais permanentes de interlocução. É hora de chamar os legisladores para viabilizar muitos projetos engavetados. Gostaria de ser chamada com outros colegas para discutir questões que tenham rebatimento em óbices da esfera federal”, afirmou.

O diretor do IEA, professor Paulo Saldiva, interviu dizendo que o IEA pretende convidar todos os ex-prefeitos e membros da USP e de outras instituições para fazer parte de um conselho que deverá tratar de temas relevantes para a cidade de São Paulo.

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O coordenador do USP Cidades Globais, professor Buckeridge (dir.) ao lado da deputada

O coordenador do programa, professor Marcos Buckeridge, disse que o Cidades Globais gostaria de ter acesso ao Legislativo para desvencilhar o cipoal jurídico e político e entregar ideias e conhecimento da melhor maneira possível. "Mas de fato, falta alguém, algum assessor de gabinete que possa fazer essa ponte. E se isso já acontece, então precisamos encontrar um mecanismo mais eficiente. Estamos tentando descobrir como resolver o problema do afastamento com a sociedade e posso dizer que há centenas de professores preocupados com isso”.

Para Erundina, a universidade deve entrar no jogo político antes mesmo de qualquer campanha ou independentemente da escolha de candidatos, para que possa haver uma simbiose permanente com a sociedade.

 

Educação política

Os grandes desafios da São Paulo de hoje não envolvem apenas resolver os nós urbanísticos; estão ligados muito mais ao método de gestão, acredita Erundina. “O Executivo e o Legislativo devem ter ao seu lado no governo o poder popular. Uma democracia se justifica pelo poder soberano que emana do povo. O que marcou e tornou nossa experiência exitosa em muitos aspectos foi a capacidade daquele governo plural se harmonizar em torno de um projeto consensual, construído por todos os que dele participaram”, disse.

Uma gestão radicalmente democrática, capaz de estimular a cidadania e mobilizar os sujeitos sociais, deve ser a preocupação de qualquer candidato que se autodenomine de centro esquerda, defendeu. Para ela, o cidadão deve se assumir como sujeito político capaz de decidir as questões estratégicas da vida da cidade. "O que sobrou do nosso governo foi justamente a forma de ser governo, sua relação interna. O que dá identidade a um governo é a forma como ele exercita seu poder. Deixamos uma experiência educativa, pedagógica e realizadora do ponto de vista da cidadania política”, afirmou.

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"O cidadão deve se assumir como sujeito político capaz de decidir as questões estratégicas da vida da cidade"

É preciso criar condições e correlações de força e poder para a São Paulo de hoje chegar ao modelo de cidade que a USP está querendo construir, ressaltou. “A contribuição da sociedade em termos de elevar o nível de consciência política e de se organizar de forma participativa independe de governos. Acredito na formação política do cidadão a partir da luta política. A negação dos jovens a um sistema de ensino imposto é uma novidade e um sinal de esperança. Não esperemos mais nada de partidos políticos, de governos ou do Congresso. Está emergindo a possibilidade de novas ideias e lideranças, há uma luz no fim do túnel. A saída não é convencional e Dória irá enfrentar novidades emergindo ao largo dessa crise profunda que não tem solução nela mesma”, disse a deputada.

O fato de a cidade ter esgoto a céu aberto remete a impedimentos políticos, pois coisas elementares no atendimento às necessidade básicas possuem soluções técnicas. "Mas o esvaziamento dos partidos resultou na falta de militância e de educação política. Ao contrário, hoje estão propondo a escola sem partido. Há uma crise na política e na educação, dos meios pelos quais as pessoas se descobrem sujeitos políticos. Assim, acabam demonizando e rejeitando a política", afirmou ao lembrar que há cada vez menos pessoas votando.

Na era da inclusão digital, destacou, existem 600 mil analfabetos, sendo 60% de jovens de 15 a 40 anos de idade. “A educação política é essencial para diminuir essas diferenças. A fragilidade da democracia decorre da falta de educação política do povo. A falta de esperança é a pior face da crise. Mas as saídas são políticas e coletivas”.

“Tendência privatista”

“É ótimo ter um padrão, um método, uma referência como essa que vocês estão construindo para fazer de São Paulo uma cidade global. Mas como esse modelo absorve o imprevisível e as crises que se sucedem?",questionou. Pode ser que a cidade alcance um padrão, tecnicamente falando. Mas a realidade humana e de qualquer cidade é tão dialética que escapa a qualquer modelo, acredita. "Como buscaremos um padrão, lidando com o imponderável da política, da cultura e da história?”, questionou.

O imponderável das mudanças políticas drásticas e as crises requerem a eliminação das instabilidades sociais, disse Buckeridge. “Não se trata exatamente de enquadrar a cidade num padrão global. Trata-se de buscar meios de proporcionar bem estar à população”, respondeu o professor.

A ex-prefeita lembrou que a metrópole paulista é multifacetada, com enorme pluralidade cultural e diversidade humana. Com isto, o primeiro desafio para tornar São Paulo uma cidade melhor é não conceber São Paulo como uma única cidade.  Com 32 subprefeituras, o desafio é unir esses “pedaços” de forma a respeitar cada um pela sua diferença, ajudando cada parte a se autogovernar, disse.

“A solução para uma região pode não servir para outras. Questões estratégicas como destinação de recursos passam necessariamente pelo respeito à diversidade. Temos uma distribuição orçamentária desigual. Por que Cidade Tiradentes, por exemplo, fica com R$ 80 reais per capta de orçamento anual e a região de Pinheiros, com R$ 140 reais per capta? É preciso reverter essa lógica. O orçamento deve ser descentralizado. Mas viemos de uma cultura autoritária e sem transparência. Um projeto de gestão não pode se limitar a uma lógica de governo ou de reeleição”, defendeu.

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Modelo privatista deverá se acentuar na gestão Dória, disse Erundina

A ex-prefeita avalia que a filosofia de governo “com tendência privatista praticada durante Haddad será acentuada na gestão João Dória Júnior”. Lembrou que 70% do orçamento da Secretaria de Saúde são gerenciados pelas Organizações Sociais (OS). O mesmo vale para a educação, em que quase 80% das creches estão nas mãos da iniciativa privada, e também para os transportes públicos, “que tem a metade dos ônibus da capital nas mãos de um único empresário capaz de inviabilizar linhas de metrô para que seus ônibus continuem a transportar milhares por dia”, disse.

“Essa é uma linha de condução política, uma marca que na gestão Dória provavelmente irá se acentuar e ele já anunciou que irá privatizar o autódromo de Interlagos, o Anhembi e os corredores de ônibus. As implicações de privatizar 100% do transporte público tem a desvantagem de o gestor não ter o controle sequer da planilha de custos desses serviços para estabelecer tarifas. O Estado fica à mercê de quem apenas visa o lucro”, disse.

Erundina lembrou que essa visão de Estado mínimo significa menos direitos sociais e mais lucro para as empresas. “O Estado acaba virando um simples arrecadador de tributos, já que não está exercendo sua função pública. Quer papel mais precípuo do Estado do que fornecer saúde, educação e transportes para a população?”, indaga.

Fotos 1 e 4: Marcos Santos (USP Imagens)/ 2 e 3: Leonor Calasans (IEA)/