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A importância da linguística para o entendimento das raízes africanas no espaço transatlântico África-Brasil

por Leandra Rajczuk Martins - publicado 19/09/2022 11:30 - última modificação 20/09/2022 10:33

A vitalidade das línguas é dependente da regularidade com que membros de agrupamentos sociais “usam” cada uma delas em diferentes contextos interacionais. “Essa perspectiva abre a possibilidade de uma nova área de investigação para explicar não só porque algumas línguas nascem e outras morrem, mas também porque algumas línguas se encontram em perigo de extinção, outras sobrevivem, apesar de ameaçadas, e outras ainda passam por um processo de revitalização”, informou Esmeralda Vailati Negrão, integrante do Programa Ano Sabático do IEA de 2022 e professora titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).

Esmeralda coordenou a mesa-redonda O Laboratório de Estudos Linguísticos Transatlânticos (LELT) Pensa o Brasil: Reflexões Interdisciplinares entre Linguística, História e Antropologia, que reuniu no dia 1º setembro pesquisadores para apresentar e discutir contribuições alcançadas e alguns dos impasses enfrentados pelas pesquisas desenvolvidas no âmbito do referido grupo de pesquisa. O seminário fez parte das Jornadas Investigativas Contemporâneas: o Programa Ano Sabático IEA/USP (2022), que integrou a programação do evento USP Pensa Brasil.

O seminário apresentou um conjunto de temas e perspectivas norteadoras das pesquisas desenvolvidas no âmbito do LELT, grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sediado no Departamento de Linguística e que tem como um dos seus principais objetivos ampliar as bases teórico-metodológicas de pesquisas voltadas para a descrição e análise do contato linguístico em ecologias multilíngues, do passado e do presente, no espaço transatlântico África – Brasil.

A professora explicou que o LELT tem como uma de suas preocupações centrais “entender de que maneira o corpo de conhecimento congregado pelas teorias linguísticas atuais, que oferece hipóteses explicativas para os fenômenos envolvendo a linguagem humana nas suas diferentes facetas, nos permite derrubar preconceitos e fundamentar propostas para políticas linguísticas concernentes ao contato linguístico e a participação das línguas africanas, indígenas e europeias na diversidade linguística do Brasil, tanto do passado quanto do presente”.

Os expositores do evento foram quatro estudiosos da área, sendo três docentes do Departamento de Linguística (FFLCH-USP): Evani de Carvalho Viotti, da área de epistemologia da linguística, Margarida Maria Taddoni Petter, que orienta pesquisas sobre línguas africanas e o contato dessas línguas com o português brasileiro, e Alexander Yao Cobbinah, que atualmente trabalha sobre estruturas narrativas e sintáticas em línguas da África do Oeste e o uso de línguas africanas nos cultos afro-brasileiros. Além deles, também participou Wellington Santos da Silva, vencedor do Prêmio Tese Destaque USP (2021) e menção honrosa no Prêmio de Teses CAPES (2021) com o trabalho intitulado A Língua Geral de Mina e o Ciclo do Ouro: um capítulo da história dos contatos no Brasil.

Linguística transatlântico
Esmeralda Negrão, Evani Viotti, Margarida Petter, Wellington Silva e Alexander Cobbinah (em sentido horário): debate sobre contribuições alcançadas e impasses enfrentados pelas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Laboratório de Estudos Linguísticos Transatlânticos (LELT). Imagem: (captura de tela) Leonor Calasans

Descolonização

“Por espaço transatlântico entendemos o contínuo que existe entre o continente africano e o território brasileiro, que se releva por uma proximidade histórica e cultural sem precedentes e que envolve não só o português, mas línguas européias, africanas de várias famílias diferentes e uma enormidade de línguas indígenas”, definiu Esmeralda.

Foi precisamente nesse contexto de multiculturalismo e multilinguismo que emergiu a gramática do português brasileiro. “Entender o que é essa gramática requer, então, que tenhamos uma descrição histórica e antropológica do passado e do presente desse espaço tão precisa quanto possível”, avalia. “Fazer isso dentro de uma proposta de ‘descolonização’ implica reverter o entendimento atual de que línguas e culturas que emergiram em ecologias de contatos se caracterizam por uma perda: a de estruturas linguísticas ou culturais”.

De acordo com ela, pelo prisma “descolonial” o que houve e o que há é sempre a emergência de algo novo, “nem mais rico, nem mais pobre do que havia antes”. “A partir da perspectiva “descolonial” e de uma posição em que o contato de língua assume um papel central, conceitos de língua e de signo linguístico devem ser reconsiderados”.

Nesse contexto, a própria questão da vitalidade linguística e do perigo de extinção de língua ganha nova dimensão. “A explicação da mudança linguística entendida a partir de uma posição privilegiada dada ao contato de línguas e aos movimentos populacionais têm permitido tanto o entendimento de como novas línguas emergem, como também o de como as línguas morrem”.

Algumas hipóteses indicam que a língua não teria emergido em um único lugar, para dali ter se espalhado, separando-se em várias espécies com o passar do tempo. “Tudo leva a crer que a língua tem emergido mais ou menos simultaneamente em diversos agrupamentos de hominíneos já na África e que o contato linguístico, juntamente com as suas consequências, já venha desse período tão antigo da história humana”, contextualiza. "Estes estudos realçam que não é possível analisar contatos de língua sem ao mesmo tempo buscar entender a história dos povos em suas movimentações e interações, pois os seres humanos, quando se movem, levam suas línguas com eles.”

Viés eurocêntrico

Evani Viotti investiga, em especial, a evolução da gramática do português brasileiro em contato com línguas africanas e indígenas. Ela explicou que o projeto de pesquisa do grupo vem sendo gestado desde 2004 com o objetivo de investigar a participação das línguas africanas na formação do português brasileiro.

“Inicialmente, nossas pesquisas se baseavam na ideia de que o contato de línguas não poderia continuar a ser analisado exclusivamente a partir de análises linguísticas propriamente ditas”, disse. “A proposta de abertura de uma área interdisciplinar, que estávamos chamando de ‘história linguística’, visava obter maior clareza sobre as circunstâncias socioeconômicas em que se deram as interações de contato entre o português e o europeu falado na época da colonização e as línguas africanas e indígenas”.

Segundo Evani, um dos grandes focos de interesse da linguística contemporânea tem sido a descrição e análise de línguas pouco estudadas. “Dentre as razões para esse interesse, destaca-se o constante risco de extinção a que algumas dessas línguas estão expostas”, relata. “Para a investigação de determinadas línguas ainda pouco descritas, a linguística tem assumido uma posição que, de forma geral, mantém um viés colonial que, curiosamente, a própria linguística critica e se propõe a combater. Esse viés ‘eurocêntrico’ vem de longa data”.

A professora argumenta que as discussões e análises em linguísticas feitas a partir do século 20, norteadas pelas diversas teorias da linguística moderna, têm procurado se constituir como uma contraposição a esse “eurocentrismo”, adotando uma perspectiva metodológica mais rigorosa do ponto de vista científico.

“O levantamento de dados feito em campo junto a “falantes” ativos, as técnicas de gravação em áudio e vídeo e o cuidado nas transcrições de dados são alguns dos avanços que a linguística contemporânea, ajudada pelo desenvolvimento tecnológico, tem abraçado”, informou. “Entretanto, essa contraposição da linguística atual ao viés colonial ainda não chega a construir um paradigma que consiga descrever e analisar essas línguas a partir de um conjunto de unidades e categorias que lhe seja próximo”.

De acordo com Evani, do ponto de vista semântico, as escassas descrições e análises mais recentes também mantêm a perspectiva das conceitualizações já atestadas nas línguas indo-européias, furtando-se a buscar modelos conceituais mais condizentes com as visões de mundo próprias a ecologia dessas línguas. “Apesar de as análises estruturais e semânticas estarem levando em conta novos fenômenos linguísticos de grande interesse, elas ainda não chegam a propor aparatos teóricos e inovadores capazes de explicá-los em seus próprios termos”.

Virada Descolonial

Evani disse que uma notável exceção a essa postura se encontra no trabalho de alguns africanistas, que põem no centro de suas análises fenômenos linguísticos deixados à margem das teorias linguísticas modernas, tais como interjeições e vocalizações.

“Do ponto de vista dos estudos históricos e não-históricos de contato linguístico, a mesma tensão se revela em vieses que consideram como excepcionais línguas e variedades linguísticas que emergiram em situações de multilinguismo”, contou. “Por trás desses vieses está a visão de que as línguas prioritariamente mudam exclusivamente por pressões internas a ela e de maneira paulatina. Mudanças por contato são vistas como rupturas nesse mecanismo, o que faria das línguas que emergem em situação desse tipo serem consideradas ‘excepcionais’ por não seguirem o padrão genealógico ou genético determinado a partir do estudo das línguas indo-européias”.

O processo histórico de colonização que engendrou a emergência de um poder eurocêntrico, hoje hegemônico, criou uma narrativa da diferença entre povos, raças, culturas e línguas, manifestando-se não só nas esferas sociais, políticas e econômicas, mas na própria produção de conhecimento. “Esse fenômeno é conhecido como colonialidade”, afirma. “É na esfera da produção de conhecimento que a ideia de ‘colonialidade’ mais diretamente interessa à linguística. Suas marcas se refletem em dois grandes vieses: o de que existe uma proeminência de algumas culturas e línguas em relação a tantas outras e de que o verdadeiro conhecimento só pode ser construído por meio do uso do grego, do latim e das suas filhas, as línguas européias modernas, a partir das categorias que elas codificam”.

Evani explicou que essa visão definitivamente exclui da produção de conhecimento as línguas ágrafas (sem escrita), africanas e nativas das colônias européias nas Américas e na Ásia. “Os efeitos da ‘colonialidade’ são conhecidos: subjetividades são reprimidas, histórias são silenciadas, conhecimentos e línguas são colocados em posições periféricas”.

“É indispensável que se faça uma avaliação crítica desse paradigma e que se dê início a uma virada ‘descolonial’ no sentido de fomentar uma nova comunicação intracultural, uma maior troca de experiência entre vários povos e a construção de uma nova noção de racionalidade”, afirmou. “É preciso buscar efetivamente atingir algum nível de universalidade que não exclua o outro, que não implique que a cosmovisão de uma etnia em particular seja imposta como uma racionalidade universal”.

Línguas africanas no Brasil

Margarida Petter ressaltou o pioneirismo do Departamento de Lingüística da USP a partir da criação, em 1994, do primeiro curso de pós-graduação ministrado por ela: Aspectos da Tipologia das Línguas Africanas. Sua consolidação se deu quatro anos depois, com a introdução da disciplina “Língua Não Indoeuropéia” em um contexto de mudança da grade curricular, proporcionando ao futuro linguista o conhecimento de modelos linguísticos fora do domínio indo-europeu.

O curso foi proposto a partir da vivência da professora, que fez o mestrado em meados dos anos 80 na Universidade de Abidjan, na Costa do Marfim, e acabou trazendo o conhecimento da linguística africana para o Brasil. “Nenhuma universidade brasileira oferecia cursos dessa área naquela época”, contou. “Precisávamos mostrar a África e suas línguas aos estudantes, que mal conheciam o continente e nem imaginavam o multilinguismo africano, com sua vasta diversidade de mais de duas mil línguas”.

Com o passar do tempo, a professora foi se dando conta da importância de tratar da África e de suas línguas no Brasil. “Passei a me dedicar ao estudo da presença das línguas africanas no país nos cultos afro-brasileiros e nas comunidades negras isoladas ou quilombolas. “Fui descobrindo a África no Brasil nas pesquisas de campo realizadas com orientandos de iniciação científica junto às comunidades do Cafundó e do Vale do Ribeira no Estado de São Paulo”, afirmou. “Constatamos que essas comunidades conservaram em sua linguagem um importante vocabulário de línguas do grupo banto, confirmando, portanto, os dados históricos”.

A descoberta levou Margarida ao questionamento sobre a identidade de nossa língua, coordenando o projeto de cooperação internacional "A participação das línguas africanas na constituição do português brasileiro", com professores do CNRS, Centro Nacional de Pesquisa Científica (Centre National de la Recherche Scientifique) da França, entre 2005 e 2008. A iniciativa resultou na publicação de duas obras de referência sobre o tema do contato do português com línguas africanas no Brasil.

Para Alexander Cobbinah, a África confrontou a linguística com alguns assuntos que não foram resolvidos ou contemplados. “As diferenças que se observaram nas culturas africanas, na sua sociabilidade, e o impacto que isso teve para as línguas que os africanos falam forçaram os linguistas a se interessar por assuntos que talvez não fossem relevantes no contexto europeu”.

Segundo ele, a linguística africana sempre foi bastante empírica. “Até meados do século 20 existia escasso material sobre poucas línguas africanas”, informou. “Na falta de dados escritos, sobretudo de uma história de mais longa distância, os africanistas desenvolveram técnicas para correlacionar dados genéticos, arqueológicos e linguísticos sobre as migrações e os movimentos populacionais”.

Alexander ressaltou que a primeira gramática de quimbundo no mundo foi escrita no Brasil em fins do século 17. “Temos ainda muitos vestígios desse passado africano nos quilombos, mas isso está sendo pouco pesquisado”. Atualmente, o docente desenvolve projetos de pesquisa sobre a língua cabo-verdiana e de Angola. “As línguas africanas estão sendo usadas no Brasil contemporaneamente. Há um material rico e muito pouco explorado. Por outro lado, no caso do estudo dessas línguas na África, temos mais material escrito em termos de gramática do quimbundo da época colonial do que da pós-colonial, ou seja, não existem descrições modernas dessas línguas”.

Em sua premiada tese de doutorado, Wellington Silva apresentou um estudo sobre a língua geral de Mina (LGM), uma língua africana falada no Brasil no século 18 e documentada por António da Costa Peixoto, no manuscrito Obra Nova de Lingoa Geral de Mina (1741), um raro documento do Brasil Colonial. A pesquisa é ancorada na investigação da história dos contatos linguísticos que caracterizaram o Ciclo do Ouro, nas Minas Gerais, onde a LGM foi falada. A investigação se debruçou sobre alguns aspectos da vida dos africanos escravizados, cobrindo os períodos anterior e posterior ao tráfico transatlântico, com o objetivo de identificar os agentes formadores da LGM no Brasil.

Através de tópicos da sintaxe, a pesquisa consistiu em demonstrar que a LGM tinha uma gramática essencialmente da língua Gbe, com inovações em alguns domínios, devido aos processos de competição e seleção de traços linguísticos ocorridos na ecologia de contato. Silva propõe descobrir como as dinâmicas de contato na ecologia linguística do Ciclo do Ouro podem explicar os traços linguísticos inovadores da LGM. “A LGM influenciou o português brasileiro?”, indagou, lançando em seguida outra questão: “O português influenciou a emergência de padrões inovadores na LGM?”.

Ele também compartilhou alguns resultados alcançados em sua tese e desafios no campo da interdisciplinaridade. “A LGM pode ser um testemunho da história linguística dos africanos no Brasil, na medida em que se constituiu como o registro da vitalidade de uma língua africana no mundo colonial”, argumentou. “A LGM apresenta padrões morfossintáticos inovadores que levantam questões a serem respondidas conjuntamente por linguistas, historiadores e antropólogos”.