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A prática agroecológica sob a perspectiva da ciência

por Flávia Dourado - publicado 26/06/2015 14:35 - última modificação 04/02/2016 15:40

O filósofo Hugh Lacey fez uma exposição sobre o tema na conferência "Agroecologia como Ciência", organizada pelo Grupo de Pesquisa Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA.
Agroecologia como Ciência 1
Os filósofos Hugh Lacey e Pablo Mariconda
na abertura da conferência

Apontada por ambientalistas e movimentos socais como alternativa ao sistema agroalimentar convencional, a agroecologia é frequentemente deslegitimada por basear-se no saber popular e por desenvolver-se como contraponto ao agronegócio, cujo modelo de produção agrícola avança com o auxílio do conhecimento científico e tecnológico.

Mas esse cenário pouco a pouco começa a mudar graças a iniciativas acadêmicas voltadas para a estruturação da prática agroecológica como área da pesquisa. É o caso do Grupo de Trabalho (GT) Agroecologia — projeto do Grupo de Pesquisa Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA, com o objetivo de investigar as diferentes dimensões da agroecologia e de fomentar estudos científicos que contribuam para a transição agroecológica.

No dia 14 de abril, o filósofo Hugh Lacey, coordenador do GT e professor emérito do Swarthmore College, Estados Unidos, falou sobre as características distintivas da pesquisa agroecológica na conferência Agroecologia como Ciência.

Conhecido por criticar a submissão da atividade científica e tecnológica aos interesses econômicos, particularmente no que diz respeito à transgenia, Lacey ressaltou que o modelo de produção agroecológico visa a cultivar ecossistemas otimamente equilibrados a partir de métodos alinhados com os princípios da sustentabilidade ecológica e social. De acordo com ele, entre as prioridades da agroecologia estão "preservação da biodiversidade; respeito aos direitos humanos; segurança alimentar; relações igualitárias, justas e sem violência; e empoderamento das comunidades locais".

Alinhada com essas prioridades, a pesquisa agroecológica busca identificar as condições gerais e específicas — sociais, econômicas, políticas e técnicas — para gerar e manter agrossistemas em estado de equilíbrio. "A pesquisa agroecológica oferece resposta à questão 'como deve ser conduzida a pesquisa de modo a assegurar que direitos e bem-estar sejam para todos e para que os poderes regenerativos da natureza não sejam solapados?'", explicou, lembrando que se trata de reformar as práticas convencionais, isto é, "de transformar, ao invés de substituir, aquilo que já informa a prática".

Por isso, completou, a agroecologia como ciência contrapõe-se ao modelo agrícola convencional, marcado por "mecanização; monocultura; exploração dos trabalhadores rurais; dependência tecnológica e de insumos derivados do petróleo; uso de agrotóxicos e transgênicos; e por uma produção dirigida a um mercado sob controle de corporações e multinacionais".

Volta-se, assim, para a produção de conhecimentos científicos que fomentem o desenvolvimento e a expansão da agroecologia como prática agrícola. Para isso, destacou o filósofo, as estratégias de pesquisa na área devem seguir três diretrizes centrais:

  • Estudar física, química e biologia a partir de uma perspectiva humanista, tendo em vista aspectos sociais, históricos e culturais;
  • Integrar o conhecimento científico com os conhecimentos populares, tradicionais e indígenas, para que se obtenha um conhecimento múltiplo;
  • Incluir os agricultores nas atividades científicas como participantes ativos.

Diálogo

Segundo Lacey, a proposta da agroecologia como ciência pressupõe, em primeiro lugar, o diálogo entre cientistas e membros das comunidades agrícolas que endossam a prática agroecológica.

Agroecologia como Ciência 2
Público durante a exposição de Hugh Lacey

Ele enfatizou que estabelecer relações simétricas entre especialistas, de um lado, e indígenas, camponeses e agricultores familiares, de outro — incorporando seus princípios, valores, práticas, experiências e tradições na pesquisa agroecológica —, implica rejeitar a ideia de superioridade e exclusividade do conhecimento produzido por instituições científicas modernas.

Além disso, afirmou, o diálogo entre ciência e prática agroecológica desafia a ideia amplamente difundida de que a atividade científica é capaz de resolver qualquer problema. "A resolução de conflitos requer o desenvolvimento de um novo nível de entendimento, o qual envolve mudanças tanto no conhecimento científico quanto no tradicional", ponderou.

Contudo, ao apostar nesse diálogo, Lacey não propõe a assimilação automática de qualquer saber popular à ciência. "Mudar significa o reconhecimento de outras estratégias holísticas sujeitas à confirmação a partir de dados empíricos, e não a abertura a qualquer opinião", advertiu.

Questão de contexto

Na avaliação de Lacey, o diálogo entre ciência moderna e tradição torna possível desenvolver um modelo de interação entre valores e atividades científicas que leve em consideração os contextos sociais, ecológicos e humanos implicados na escolha das estratégias de investigação.

Isso porque, de acordo com o filósofo, a falta de compromisso da ciência com os efeitos socioambientais que gera está associada à carência de recursos metodológicos para o entendimento adequado da agroecologia. "Quase todas as pesquisas feitas nas instituições científicas modernas adotam as estratégias descontextualizadas, as quais representam a ordem subjacente", disse, acrescentando que "há uma relação de reforço mútuo entre estratégias de pesquisa e valores do capital e progresso tecnológico".

Para ele, as tensões entre atividade científica e prática agroecológica derivam das divergências em torno do princípio da contextualização. "Nas estratégias agroecológicas há uma relação de reforço mútuo com sustentabilidade, valores da justiça social e participação democrática", observou. "Precisamos de estratégias mais sensíveis ao contexto", completou.

Como exemplo dessa divergências, Lacey mencionou as diferentes formas de lidar com a "semente", elemento básico dos agrossistemas. No sistema agroalimentar hegemônico, afirmou o filósofo, a semente é vista como uma mercadoria, tal como ocorre no âmbito da transgenia: "As sementes não são parte da colheita, mas compradas no mercado, e precisam ser usadas associadas com outros produtos, como fertilizantes e agrotóxicos".

Já no caso da agroecologia, a semente é vista como uma entidade biológica inserida num contexto social, ecológico e humano — "um recurso renovável e regenerativo, fonte e parte de colheitas, cujo uso contribui para a estabilidade dos agrossistemas dos quais são componentes", explicou.

Obstáculos

A expectativa de Lacey é que a estruturação da agroecologia como ciência contribua para a transposição de dois grandes obstáculos ao avanço do modelo agroecológico de produção: a carência de recursos e a resistência dos agricultores.

A questão dos recursos diz respeito sobretudo ao custeio dos estudos desenvolvidos nas universidades, que geralmente são financiados por laboratórios e grandes corporações. Segundo o filósofo, isso faz com que os cientistas da área fiquem amarrados aos interesses do capital. Daí a necessidade de investir na agroecologia como ciência e de dar forma a estratégias de pesquisa plurais, que permitam unir multinacionais e comunidades agroecológicas, afirmou.

"É importante tentar introduzir a agricultura em muitas áreas da universidade, não só na agronomia. O sistema total agroalimentar engloba diversas dimensões — saúde, psicologia, sociologia, ciências políticas. Nossa luta dentro da universidade envolve um esforço dentro de muitas áreas", relatou.

De acordo com ele, a incorporação da agroecologia à atividade científica pode ajudar a romper, também, a barreira do ceticismo, uma vez que é difícil convencer pequenos agricultores tradicionais a adotar as práticas agroecológicas. "É importante identificar casos de sucesso, pois a única maneira de convencer é o exemplo. Quando os agricultores veem os resultados, se convencem", finalizou.

Fotos: Letícia Mariconda