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Seminário analisa entraves para efetivação democrática do direito à saúde

por Mauro Bellesa - publicado 08/01/2014 18:45 - última modificação 03/02/2014 10:22

Evento realizado no dia 10 de dezembro na Faculdade de Direito da USP teve a participação de pesquisadores e profissionais da área de saúde, jurídica e de direitos humanos.
10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde
Seminário reuniu pesquisadores e profissionais
da área de saúde, jurídica e de direitos humanos
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"A partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a história dos direitos humanos é cada vez mais a história da singularidade dos direitos. Dessa forma, do direito universal à saúde transita-se para o direito sanitário, onde não se pensa mais o direito à saúde como um princípio a ser conquistado, mas sim como um conjunto de medidas, planos de ações governamentais e não-governamentais, de diferentes agências nacionais e internacionais, que visam a fundamentalmente proteger os cidadãos em todas as situações em que o risco à saúde se coloca."

A explicação é de Sérgio Adorno, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Tolerância, Democracia e Direitos Humanos, um dos participantes da mesa de abertura do 10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde, realizado no dia 10 de dezembro, na Faculdade de Direito (FD) da USP.

Organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário (NAP-Disa), pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) e pela Cátedra Unesco, sediada no IEA, o seminário foi uma atividade do projeto Direito à Saúde e Democracia Sanitária: Pontes para a Cidadania, desenvolvido pelo NAP-Disa e que reúne docentes e pesquisadores de diferentes unidades da USP com o objetivo de investigar e analisar formas de efetivação do direito à saúde em países com níveis significativos de crescimento econômico. A realização do evento contou com o apoio da FD, do Conselho Federal de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da FFLCH e do Núcleo de Pesquisa em Saúde Mental Populacional, também da USP.

Outra participante da abertura do encontro, Sueli Dallari, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, fundadora do Cepedisa e presidente da Comissão de Ética da USP, disse que os direitos sociais implicam, no plano individual, em respeito, priorização e liberdade, que devem ser considerados simultaneamente com a priorização da coletividade, da igualdade e do direito ao desenvolvimento. Para ela, o desafio é a sociedade conseguir compatibilizar liberdade, igualdade e fraternidade.

Além disso, considera que há o problema de o sistema jurídico e judiciário entender esses direitos contemporâneos, que são ao mesmo tempo individuais, sociais e de desenvolvimento. Outra questão destacada pela pesquisadora é a da segurança versus a questão da liberdade: "Até onde admitimos a internação compulsória, uma quarentena e outras coisas do gênero?".

A mesa de abertura teve a participação também de Paulo Borba Casella, vice-diretor da FD, Deise Maria do Nascimento, da Diretoria do Conselho Federal de Psicologia, e Rossana Rocha Reis, do Departamento de Ciência Política da FFLCH.

10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde - Painel 1
Painel 1: Francisco Aith, Amélia Cohn,
Sandra Regina Martini Vial e Rossana Rocha Reis
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PAINÉIS

Democracia sanitária

O tema do primeiro painel foi Direito à Saúde e Democracia Sanitária: Instituições e Processos Jurídicos de Participação da Sociedade nas Decisões Políticas e Normativas do Estado. A coordenação foi de Rossana Rocha Reis.

A primeira expositora foi a socióloga Amélia Cohn, da FFLCH, para quem a efetivação do direito à saúde deve se pautar pelo princípio do público versus o privado ou particular, entendendo-se esse particular no sentido de fragmentação da sociedade em segmentos específicos, como idosos, indígenas, mulheres, homens, crianças etc. "Nossa tradição é de uma somatória de direitos particulares", comentou.

Seria preciso, segundo ela, que a sociedade pensasse numa agenda, ainda distante, em que os direitos sanitários fossem pautados, como os demais direitos, a partir de uma visão republicana. Ela propõe que se produza um conjunto de políticas públicas e construções institucionais para que as políticas realmente tenham um caráter universalista e voltado ao bem comum, que contemplem as diferenças ao mesmo tempo em que promovam a igualdade.

Dificuldades para participação

Para Francisco Aith, da Faculdade de Medicina da USP, do NAP-Disa e da Cátedra Unesco, o sistema político atual, baseado na representatividade, já não dá conta das demandas da população. Sua fala concentrou-se nas dificuldades para a implantação de mecanismos efetivos de participação popular.

Para ele, a participação pública é legitimadora da norma, mas duvida se os atuais mecanismos de participação pública auxiliam na efetivação do direito à saúde: "É preciso uma análise crítica para que esses processos se tornem eficazes". No seu entender, a própria judicialização da saúde é uma forma de possibilitar a participação popular, além de pressionar o Poder Público a melhorar a qualidade do serviço, apesar de considerar que o sistema jurídico ainda não conseguiu criar os mecanismos adequados.

Direito fraterno

A terceira expositora do painel foi Sandra Regina Martini Vial, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul. Ela discorreu sobre pesquisa da qual participa baseada em uma série de casos de saúde envolvendo aspectos legais no Rio Grande do Sul. O pano de fundo do trabalho é a metateoria do direito fraterno, "que resgata do período da Revolução Francesa a fraternidade e seus pressupostos de mediação, conciliação, pacto, não violência e, sobretudo, de fármaco, que contém a ideia de que o que pode salvar também pode matar".

Os casos que estão sendo analisados na pesquisa incluem, entre outros, o fechamento de um hospital psiquiátrico em Porto Alegre nos anos 90, o atendimento médico de brasileiros em cidades uruguaias e argentinas fronteiriças (por deficiência do lado brasileiro e com a transferência de recursos para prefeituras estrangeiras), o uso de fitoterápicos por determinação de um prefeito e o acesso a cerimônias de religiões afro-brasileiras por pacientes que assim o desejarem. O objetivo central da pesquisa é avaliar como os pressupostos do direito fraterno estão presentes nesses casos.

Judicialização

10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde - Painel 2
Painel 2: Luiz Rascovski, Celso Campilongo,
Sueli Dallari, Jean Keiki Uema e Sílvia Badim
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O segundo painel teve por tema O Papel do Poder Judiciário na Efetivação do Direito à Saúde: A Judicialização do Direito à Saúde e seus Aspectos Controversos e coordenação de Sueli Dallari.

O primeiro expositor foi Celso Campilongo, da FD. Para ele, algumas dificuldades que o direito enfrenta para tratar de certos temas ligados à saúde decorrem de novos conceitos surgidos nos últimos 20/30 anos e ainda não consolidados, como reserva do possível (limitações a que o Estado está sujeito para propiciar direitos sociais), mínimo existencial (o conjunto de bens e serviços imprescindíveis para uma vida digna) e política pública.

Campilongo avalia que os processos de construção da teoria do direito passam por transformações que refletem as transformações dos movimentos sociais. No entanto, adverte que, assim como nos últimos tempos os movimentos sociais chegam muitas vezes a renegar a política, o direito, ao se articular com diversas outras áreas, pode acabar perdendo sua identidade, com advogados passando a atuar como péssimos médicos, péssimos engenheiros etc.

Debate pobre

Jean Keiki Uema, consultor jurídico do Ministério da Saúde, disse perceber uma pobreza extrema no debate judicial sobre o direito sanitário, com uma falta de reflexão sobre os direitos sociais e uma superficialidade excessiva, vinculada basicamente aos termos do início do artigo 196 de Constituição Federal: "A saúde é direito de todos e dever do Estado".

Ele apontou desconhecimento por parte dos operadores do direito de conceitos como integralidade, descentralização, regionalização, universalidade e equidade. "A própria organização do sistema é ignorada, de que deve haver a cooperação entre os entes federativos para os objetivos serem alcançados". Além disso, ele considera que há uma sobrevalorização da judicialização, "como se esta fosse o garantidor do acesso à saúde, quando isso é feito pelo SUS".

Quantidade de ações

Luiz Rascovski, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, disse que as questões ligadas à saúde só perdem em número de ações na capital daquelas ligadas à falta de creches. Nas outras 41 unidades da Defensoria no Estado, no entanto, a saúde ocupa o primeiro lugar em número de ações. Informou que as demandas por acesso a medicamentos de alto custo constituem parcela grande das ações.

Ele discordou de Jean Keiki Uema em relação ao nível de discussões no Judiciário sobre direito sanitário: "De 1988 para cá houve um amadurecimento muito grande no Judiciário, pelo fato de a saúde ter se tornado um direito social fundamental".

Papel mediador

Sílvia Badim, da Defensoria Pública do Distrito Federal e professora da UnB, onde realiza pesquisa sobre os postos de saúde de Ceilândia, disse que o Judiciário vem se constituindo num canal de participação do cidadão, no qual ele busca ser ouvido. Citou que, no Distrito Federal, a Defensoria Pública assume um papel mediador, graças à sua Câmara de Mediação.

Em relação às questões de reserva do possível, ela defende a discussão dos limites do direito à saúde, "mas sem retroceder ao ponto de deixar uma pessoa sem atendimento, caso ela não se enquadre nos critérios da política de saúde".

10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde - Painel 3
Gilles Duhamel e Henri Bergeron, do Science Po, França, participaram do Painel 3  via videoconferência
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Técnica x participação

O tema do terceiro painel foi Domínio da Técnica X Participação Democrática: Como Viabilizar a Participação em Decisões Políticas com Alta Densidade Técnica? A coordenação esteve a cargo de Deisy Ventura, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP.

A primeira exposição foi feita por Henri Bergeron, coordenador científico da Cátedra da Saúde, sediada no Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), França. Ele tratou do trabalho desenvolvido pela instituição, que definiu como um espaço interdisciplinar de diálogo voltado para a formulação de políticas públicas sanitárias.

Bergeron ressaltou que as atividades da cátedra se concentram em quatro grandes eixos: 1) discutir as desigualdades no acesso à saúde entre os franceses; 2) refletir sobre os vínculos entre saúde pública e atividade econômica; 3) produzir relatórios científicos sobre tendências futuras e dar opinião sobre temas que vão da epidemiologia a transformações na relação médico-paciente; e 4) contribuir com a elaboração de políticas de segurança sanitária nacional baseadas em evidências científicas.

Pluralidade de opiniões

Gilles Duhamel, também do Sciences Po e cofundador da Cátedra da Saúde, disse que os franceses são reféns das ferramentas jurídicas ao buscar ter acesso a medicamentos caros, enquanto o ideal seria que decisões desse tipo fossem fundamentadas em princípios relacionados aos direitos humanos, como solidariedade, igualdade e proporcionalidade. Também chamou atenção para a necessidade de se dar mais espaço para a controvérsia, levando em consideração tanto opiniões contrárias entre especialistas quanto os potenciais conflitos de interesses entre experts e tomadores de decisão.

Sobre a democracia participativa no campo da saúde, Duhamel realçou as dissimetrias nas relações médico-paciente que, de acordo com ele, insistem "no modelo paternalista de monopólio da informação por parte dos profissionais da saúde". Também criticou a tendência na França de se abordar a saúde não pela ótica dos direitos dos cidadãos, mas de seus deveres: "Há um movimento de crescente responsabilização dos pacientes pelos seus comportamentos e pelos problemas de saúde que desenvolvem".

Emergência sanitária

Última expositora do terceiro painel, Claudia Madies, da Universidad Isalud, Argentina, falou sobre os embates entre domínio da técnica e participação democrática no âmbito do Regulamento Sanitário Internacional (RSI). Criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com o objetivo de viabilizar uma resposta internacional coordenada em situações de emergência sanitária de importância global, o RSI dispõe sobre um conjunto de requisitos básicos para que os países membros se estruturem.

Segundo Madies, as medidas previstas no regulamento colocam em relevo a questão da participação democrática na medida em que pressupõem a montagem de redes horizontais envolvendo as diversas esferas do poder e uma pluralidade de atores não restritos ao corpo de especialistas. "No caso de um aeroporto, por exemplo, os procedimentos devem ser adotados com a participação de funcionários, viajantes, companhias aéreas e operadoras."

Segurança e autonomia

10º Seminário Internacional de Direito Sanitário: Efetivação Democrática do Direito à Saúde - Painel 4
Painel 4: Jarbas Barbosa, Deise Maria do
Nascimento, Larissa Gonzaga e Castro
e  Daniela Skromov de Albuquerque
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O quarto painel, que tratou do tema Direito à Saúde e Liberdades Individuais: A Segurança Sanitária e a Autonomia do Indivíduo no Estado Democrático, foi coordenado por Deise Maria do Nascimento.

Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, também se concentrou no RSI na sua exposição. Ressaltou que o regulamento pauta-se nos princípios de máxima proteção com mínimo de transtorno, na medida em que busca conciliar proteção da saúde coletiva e garantia dos direitos individuais.

Segundo o secretário, as ações sanitárias devem ser pensadas tendo em vista potenciais impactos sobre a economia e o cotidiano da população. Como exemplo, citou o caso do controle acirrado sobre locais de entrada e saída de pessoas nos países (aeroportos, portos e fronteiras). Disse que esse controle não só é pouco eficaz, como viola direitos individuais ao restringir a circulação dos indivíduos. "É muito difícil conter a entrada de agentes contaminantes num mundo tão globalizado, de modo que o mais recomendado é se preparar para detectar rapidamente os casos quando surgirem, conforme o RSI determina", disse.

Regulação nas Américas

Larissa de Paula Gonzaga e Castro, professora da Universidade do Distrito Federal (UDF), falou sobre o andamento da implementação do RSI nas Américas. Os estados membros da OMS teriam que se adequar aos requisitos básicos exigidos até julho de 2012, quando o  documento entrou em vigor. Vencido o prazo, apenas seis países do continente (17% do total) conseguiram se adequar: Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica e Estados Unidos. Os outros países americanos pediram uma prorrogação de dois anos, que ainda pode ser estendida por mais dois anos, de modo que, em 2016, todos precisarão estar em conformidade com as determinações do RSI.

A pesquisadora afirmou que, embora a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) aponte avanços na implementação do regulamento, o cumprimento da meta para 2016 é improvável. "Não dá para esperar que países que não conseguem oferecer nem o básico da saúde pública para sua população se preocupem em se equipar para lidar com situações de emergência sanitária de importância internacional", comentou.

Direitos individuais e internação

Daniela Skromov de Albuquerque, da Defensora Pública do Estado de São Paulo, fechou o quarto painel com uma exposição sobre as relações entre direitos individuais e saúde pública no caso da internação compulsória de usuários de drogas, política que vem sendo adotada nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo como forma de retirar consumidores de crack das ruas. De acordo com ela, essa medida forçosa fere a dignidade dos dependentes químicos ao privá-los do direito à autodeterminação e à liberdade, além de "trazer implícita a ideia da proteção à saúde como um dever, e não como um direito".

Ao trazer à tona a contraposição entre direito dos usuários de drogas versus direito de ir e vir dos cidadãos, frequentemente evocada pelas parcelas da sociedade que apoiam as internações compulsórias, a defensora pública destacou que não faz sentido sobrepesar direitos, restringindo os de alguns para ampliar os de outros.

Fotos: Rafael Borsanelli/IEA-USP