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'Megera ou afetuosa?' Docentes ainda buscam superar estereótipos de gênero

por Breno Queiroz - publicado 08/03/2024 18:10 - última modificação 12/03/2024 14:06

Em evento no IEA, lideranças relataram desafios e discriminações na trajetória acadêmica.

Gênero e carreia docente na USP- Mesa
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“Ah, escolheu a área de biológicas porque é mulher e isso é um caminho mais fácil.” Esse foi o comentário que a professora Patrícia Gama, segunda mulher a se tornar diretora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, ouviu ao ingressar na graduação em biologia. “O preconceito já começa na escolha da carreira”, disse em sua fala no evento “Gênero e Carreira Docente na USP: Trajetórias e Novos Desafios”, no dia 6 de março.

O encontro foi organizado pela professora Janina Onuki, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP) e ex-pesquisadora do Programa Ano Sabático do IEA,  com o projeto "Igualdade de Gênero em Cooperação Internacional de Ciência, Tecnologia e Inovação - Um Estudo de Caso sobre o Brasil".

O evento aconteceu no âmbito do projeto Fapesp Gender STI (Science, Technology and Innovation), que acompanha e reúne dados sobre a participação feminina em diversas instituições de ciência, tecnologia e inovação, além de compartilhar estratégias para o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas nos ambientes científicos [leia mais aqui].

“Mesmo muito bem preparadas, às vezes, reproduzimos algo que vivemos. Isso está impregnado na sociedade”, afirmou Roseli de Deus Lopes, vice-diretora (licenciada) do IEA e professora da Escola Politécnica da USP, com projetos destacados em educação básica e em fomento a jovens cientistas.

Quando a distinção começa?

Em comum nas falas das expositores foi a afirmação de que a distinção de gênero, que começa na educação infantil, fica mais acentuada à medida que se avança nas carreiras. “Observando a projeção de cargos e ocupações, a proporção de mulheres vai diminuindo conforme chegamos nas posições de liderança”, afirmou a professora Ana Elisa Bechara, do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito (FD) da USP.

Para Roseli, a Universidade precisa dar o exemplo, sair do discurso e partir para a ação. Ela usou o exemplo da EP-USP: “Em uma escola que está com quase 140 anos só termos tido uma mulher que foi diretora e depois diretora, isso significa muita coisa”.

Silenciamento histórico

O papel que foi delegado às mulheres na ciência é ilustrado no filme “A Esposa” (2017), lembrou Patrícia. O longa-metragem conta estória da relação da personagem Joan Castleman ao lado do marido, um ganhador do Prêmio Nobel de Literatura indiferente ao trabalho da esposa e motivador de seu silenciamento.

Um exemplo ainda mais patente de silenciamento, também citado por Patrícia, é o caso de Rosalind Franklin. Foi ela quem conduziu os estudos que chegaram à “Fotografia 51”, uma das mais famosas da ciência, a primeira imagem a registrar a estrutura em formato de hélice do DNA. No entanto, quando os pesquisadores James Watson e Francis Crick propuseram em artigo a descoberta da estrutura do DNA, não houve qualquer menção à contribuição de Rosalind para a descoberta. O reconhecimento veio apenas após sua morte, em 1958.

Aliada a esse silenciamento das mulheres cientistas, há a perda epistemológica. “Os estudos, dosagens, medidas na minha área utilizam parâmetros de corpos masculinos, machos. Algo estabelecido antigamente e que permanece até hoje”, disse Patrícia.

Gênero e carreira docente na USP - Visao geral
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A desigualdade em números

Ana Elisa deu o exemplo da posição máxima na carreira do direito. No Supremo Tribunal Federal, entre os 11 ministros, a magistrada e também professora Cármen Lúcia figura atualmente como única mulher. Entre os 40 professores titulares da FD-USP, apenas duas são mulheres, incluindo Ana Elisa.

Ela também observou que os próprios símbolos da faculdade, bustos, quadros e outros adornos sempre homenageiam homens, afetando até o sentimento de pertencimento à comunidade.

Fundado em 2015 por um grupo de alunas interessadas em investigar as dinâmicas de inclusão e exclusão no ambiente universitário, o Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA), sediado na FD-USP, tem produzido farto material para discussão.

Sua investigação deu origem ao livro “Interações de Gênero nas Salas de Aula da Faculdade de Direito da USP: Um Currículo Oculto?”, publicado pela Cátedra Unesco de Direito à Educação da USP, reconhecido e utilizado como referência para o debate de gênero em ambientes acadêmicos.

A conclusão central dessa pesquisa, citada por Ana Elisa, é que existe um silenciamento do problema, uma naturalização das desigualdades, o chamado “apagamento de gênero”. Levantam-se muros de uma “suposta neutralidade” na dinâmica das docentes em sala de aula, afirmou.

Longe disso, a investigação do GPEIA demonstra como a interação dos docentes com os alunos é cercada por estereótipos. “Enquanto os homens são vistos como complexos, as mulheres são vistas como seres mais planos: ou cai no estereótipo da mãe, afetuosa ou megera, com perfil rígido” explicou Ana Elisa.

Uma pesquisa citada pela professora mostrou que, entre 2008 e 2017, os homens representaram 80% dos candidatos inscritos nos concursos para docência da USP. No mesmo período, também não houve um crescimento no número de mulheres inscritas.

Luta contínua

“Na época em que eu entrei na Poli, éramos 29 mulheres em 620 alunos”, conta Liedi Bernucci, hoje professora da EP-USP e diretora-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT).

Liedi foi a primeira diretora da EP-USP. “Como são poucas mulheres em posição de liderança, eu entendia como era importante meu cargo de diretora para as alunas que ingressavam, para um aumento da autoestima”, disse.

Ela contou que quando ingressou como estudante, no final dos anos 70, as piadas e o deboche com as alunas da escola eram comuns, vindo até mesmo dos professores. Agora, segundo ela, as discriminações são sutis, “microagressões, como é próprio do ambiente acadêmico”.

“Essa é uma conversa que precisamos continuar”, afirmou a professora Roseli, com a esperança de que o evento tenha sido um de muitos para impulsionar as mulheres na carreira docente e romper com o silêncio e o apagamento de gênero próprios da comunidade científica.

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