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A saúde pública vista pela filosofia da ciência

por Mauro Bellesa - publicado 11/12/2013 15:40 - última modificação 04/08/2015 10:27

O filósofo da ciência Nicolas Lechopier, da Université Claude Bernard Lyon 1, França, fala em entrevista sobre os projetos a respeito de saúde pública que desenvolveu no IEA como professor visitante.
Nicolas Lechopier
Nicolas Lechopier

O filósofo da ciência Nicolas Lechopier, da Université Claude Bernard Lyon 1, França, foi professor visitante do IEA em dois curtos períodos recentes, a convite do Grupo de Pesquisa Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, para dar continuidade a suas pesquisas nas áreas de epistemologia social, ética para as ciências e saúde pública, promoção da educação e saúde, abordagens participativas e comunidade.

De outubro a novembro de 2012, Lechopier desenvolveu o projeto Filosofia, Ciência e Saúde Pública: Quais as abordagens Práticas e Críticas? Durante esse período, realizou uma série de seminários para a discussão de uma visão sistemática das principais tensões que atravessam o campo da saúde pública, com foco na crítica dos dispositivos de promoção da saúde. De volta a Lyon no final de 2012, seguiu participando de atividades do Instituto via videoconferência. No segundo período, em novembro de 2013, Lechopier prosseguiu em suas investigações sobre as interações entre saúde pública, ciências e valores e finalizou artigo para um dossiê sobre ciência, tecnociência, valores e sociedade que está sendo produzido pelo grupo de pesquisa que o hospedou.

Na entrevista a seguir, concedida à jornalista Flávia Dourado, Lechopier fala sobre alguns temas que tem analisado em pesquisas, conferências e seminários, entre os quais as transformações na ética da pesquisa, pesquisa participativa, modelo principialista, valores éticos da saúde pública e o uso de informações pessoais de saúde armazenados em grandes bancos de dados.

Considerando a cooperação entre cientistas e participantes não-cientistas na construção do conhecimento em saúde pública, como o senhor avalia a preocupação dos pesquisadores em restituir os resultados das pesquisas às comunidades e em considerar as experiências e os saberes dessas comunidades, como acontece, por exemplo, na pesquisa-ação?

A questão do retorno dos resultados das pesquisas às comunidades é uma questão bastante atual. Quantas teses são produzidas hoje sem que haja retorno às pessoas que para ela contribuíram ou que estão relacionadas com o objeto da pesquisa? Os estudantes, os pesquisadores recebem recursos (financeiros, logísticos, simbólicos) para cumprir o período de restituição de resultados no local de pesquisa? Não o bastante, infelizmente. Entretanto, a deontologia científica exige tornar o conhecimento público, no mais das vezes pelo viés das revistas científicas, mas também por meio de atividades de compartilhamento e reaproximação.

Há duas abordagens diferentes no compartilhamento dos resultados de uma pesquisa: a difusionista e a construtivista. A primeira inclui, por exemplo, todas as formas de publicação, vulgarização, de extensão e, de uma forma geral, toda transferência de conhecimento passando pela comunicação de resultados do meio científico para os meios de ação. O objetivo é fazer os "leigos" conhecerem os resultados da pesquisa. A concepção subjacente a essa difusão é que os pesquisadores produzem um saber de especialista. A comunicação vai "daquele que sabe" para "aquele que não sabe" e mantém-se essencialmente unidirecional.

A segunda abordagem, a construtivista, parte de uma ideia de difusão que evita notadamente as relações de cima para baixo, dos "especialistas" para os "leigos" ou "simples praticantes". O compartilhamento de resultados se produz numa configuração onde os atores da pesquisa não estão no centro, mas em relação uns com os outros. A partir disso, intervêm diferentes processos de troca de conhecimento, endossados por um princípio de igualdade e de complementaridade. Nas "oficinas de diálogo", fóruns de cidadãos, organizações não-governamentais ou cidadãos envolvidos se reúnem a fim de compartilhar, debater e avaliar as implicações da pesquisa em termos de ações de caráter político.

As pesquisas participativas podem aparecer como uma solução para o problema do retorno de resultados, favorecendo a apropriação do conhecimento científico. Mas creio que as próprias modalidades de compartilhamento do conhecimento produzido pelas pesquisas são objetos de pesquisa que precisam da epistemologia, da antropologia e da sociologia das ciências, da educação popular etc.

As pesquisas em saúde pública vêm dando o devido valor à participação ativa das comunidades e vem procurando envolvê-los nos debates no sentido de torná-los mais articulados com as instâncias de formulação de políticas públicas, por exemplo? O senhor diria que, no âmbito da saúde pública, a ciência vem contribuindo nos processo de emancipação dos usuários?

As pessoas envolvidas (médicos que atendem aos pacientes, agentes de saúde, pacientes etc.) estão cada vez mais implicadas na pesquisa. Em princípio, sua implicação vai além dos papéis tradicionais reservados aos não-especialistas, como provedores de dados ou campo  de aplicação. Sob o conceito genérico de "pesquisa participativa" agrupam-se atitudes que têm em comum o fato de estreitarem os laços associativos entre as pessoas afetadas pela própria atividade de pesquisa. A pesquisa participativa não é, entretanto, uma metodologia particular, mas antes uma maneira particular de situar as relações entre a pesquisa, seu objeto e seu contexto. E, com efeito, esse modo de pesquisa não é neutro. Ele é capaz de reforçar o empoderamento das pessoas.

As questões-chave das pesquisas participativas são a efetividade e a natureza da participação das pessoas. Quando não-profissionais de pesquisa são levados a participar de uma pesquisa, sua participação é um "meio" para que se atinja uma finalidade, que é a realização da pesquisa, ou ela é concebida como um "direito"? Essa participação é autêntica ou ajustada, ou seja, manipulada? Ela é reduzida a uma consulta pontual ou implica realmente numa atividade das pessoas? Tudo isso é importante se se quer saber se a pesquisa contribui efetivamente par a emancipação das pessoas.

As atuais transformações no campo da ética da pesquisa foram tema de uma conferência realizada pelo senhor recentemente no IEA. Tais transformações apontam para abordagens mais ou menos sintonizadas com as interações entre conhecimento científico e ação individual e coletiva dos sujeitos, entendida como um maior empoderamento e articulação dos sujeitos com as instâncias do poder?

Uma vez que os aspectos metodológicos e éticos não são independentes, é justamente a partir de uma reflexão sobre a ética da pesquisa que comecei a me interessar pelas pesquisas participativas. Levantamentos realizados sobretudo no norte do Brasil permitiram-me  compreender que o consentimento individual, a visão dos comitês independentes, o fato de minimizar os riscos etc., todos esses elementos clássicos da ética da pesquisa são absolutamente necessários, mas não suficientes. É preciso atentar também para os processos de reconhecimento, as relações de gênero, de classe, de raça, a riqueza epistêmica dos conhecimentos produzidos e sua apropriação pelos cidadãos. É justamente em dimensões desse tipo que, talvez, as abordagens participativas possam contribuir melhor.

Nesta mesma conferência, o senhor falou sobre uma tendência ao questionamento do "modelo principialista". O senhor poderia explicar a relação desse modelo com o campo da saúde pública e esclarecer por que ele vem sendo questionado?

O modelo principista ou principialista foi formulado no final dos anos 1970 com o "Relatório Belmont", espécie de carta de princípios da ética biomédica americana, bastante influente em escala internacional. Fundados numa distinção entre cuidado e pesquisa, os três princípios são a autonomia, a beneficência (primum non nocere, em primeiro lugar, não fazer mal) e a justiça distributiva. Essa abordagem, ainda que muito útil, revela-se, em especial, pouco pertinente para pensar a ética da saúde pública.

Em saúde pública, a discussão deve envolver os níveis individuais e coletivos dos fenômenos de saúde. Por exemplo, o lançamento de um medicamento ou a implementação de uma campanha de prevenção são coisas que não podem ser discutidas eticamente apenas na esfera individual, como nos sugere a abordagem principista. É preciso pensar a amplitude coletiva do fenômeno, os riscos ou os benefícios que podem ser grandes na esfera coletiva e pequenos na esfera individual, as dimensões socioeconômicas, tecnológicas e também as simbólicas e civilizacionais.

Durante sua primeira estada no IEA como professor visitante, o senhor chamou a atenção para a necessidade de se formular uma ética crítica da saúde pública. Quais seriam as bases dessa ética e o que ela pressupõe do ponto de vista da responsabilidade dos pesquisadores?

Durante minha estada no IEA, tive a oportunidade de desenvolver um modelo para mapear os valores éticos da saúde pública. Esse modelo apresenta-se como uma série de tensões que transpassam o campo da saúde pública e que tocam em questões fundamentais como a definição positiva ou negativa de saúde, a articulação da promoção da saúde com outros valores, as diferentes metodologias possíveis e as relações de dominação e emancipação. Tentei mostrar que a maior parte das ações e políticas no campo da saúde pública não enfrentam nenhuma dessas tensões estruturais, que se remetem umas às outras, sem poderem, provavelmente, ser ultrapassadas completamente. É portanto um esquema do tipo dialético, que possui a vantagem de ajudar a ver onde estão os pontos críticos. Mais uma vez estou de acordo com a ideia que o papel da filosofia não é encontrar soluções milagrosas, mas acima de tudo explicar os problemas, quando eles são autênticos, e indicar os caminhos possíveis, inclusive e especialmente entre as alternativas de evidências existentes.

A proteção de dados pessoais em epidemiologia é tratada em um de seus livros ("Les Valeurs de la Recherche — Enquête sur la Protection des Données Personnelles en Épidémiologie"). Como alcançar um equilíbrio entre os interesses da investigação científica e o respeito à privacidade no que se refere à circulação dessas informações pessoais? Esse problema torna-se ainda mais delicado considerando-se o potencial de acesso a esses aos dados na internet?

Nesse livro, estudei os vínculos entre a pesquisa em epidemiologia e as normas e valores associados ao uso de dados pessoais de saúde. A matriz inicial é mais uma vez dialética: uma vez que as experiências de saúde possuem algo de profundamente pessoal, frequentemente procuramos evitar sua divulgação. Temos, portanto, certa exigência de opacidade sobre essas questões. Ao mesmo tempo, esses dados circulam no sistema de saúde, ou mesmo além, com nossas ferramentas digitais. O domínio da circulação de nossos dados pessoais supõe certa transparência no que se refere a quem tem acesso a eles e por quê. Entretanto, pesquisadores, agentes de vigilância sanitária e também laboratórios privados podem precisar desses dados para produzir conhecimento, para decisões bem esclarecidas, sem que tenhamos sido informados a respeito. Temos, portanto, uma tensão entre "opacidade", "transparência" e "esclarecimento", ou ainda entre a privacidade dos dados, a transparência sobre seus usos e a sua utilidade no quadro das práticas científicas.

Em conferência que fiz no IEA sobre Big Data, procurei reavaliar essa matriz em relação às mutações tecnológicas que afetam o mundo de dados de saúde. E há mudanças efetivamente! A noção de intimidade da vida privada é colocada amplamente em questão; os dados de saúde circulam fora de controle, até mesmo do daqueles que concebem as ferramentas de gestão de dados. E, finalmente, as pesquisas em saúde têm cada vez mais métodos de inteligência artificial para tratar os dados e produzir conhecimento. Isso coloca a questão do papel da intencionalidade no sistema tecnocientífico. Onde estão os espaços, as instâncias que permitem discutir e implementar nossas intenções, tanto as individuais quanto as coletivas? Quem faz as escolhas para a grande máquina? Onde estão os espaços democráticos para a construção coletiva de uma intencionalidade?

Em mesa-redonda moderada pelo senhor no IEA, os dispositivos de saúde pública foram colocados em discussão a partir de uma abordagem crítica baseada em dois pressupostos: a necessidade de um enfoque interdisciplinar para a construção de uma ética crítica da saúde pública e o imperativo de levar em consideração o contexto e as especificidades de cada país ao fazer uma crítica dos dispositivos de saúde pública. Com base no que pôde observar no Brasil, o senhor conseguiria dar exemplo(s) da importância da interdisciplinaridade e dessas diferenças contextuais na crítica dos dispositivos de saúde pública brasileiros?

A mesa-redonda organizada no IEA em dezembro de 2012 sobre as abordagens críticas da saúde pública e, também, aquela organizada em 2013 sobre o papel das ciências humanas e sociais na formação dos profissionais de saúde permitiram mostrar que os diferentes desafios levantados são os mesmos na Europa, América do Norte e América do Sul, e apresentam-se sob formas diferentes, de acordo com as histórias locais.  Pode-se principalmente discutir nossas relações com o sistema de saúde pública, discutir o papel dos agentes de saúde e dos mediadores na educação em saúde, ou ainda a construção de valores e competências na formação médica. Esses desafios são comuns, mas as maneiras de vê-los são bem diferentes, por isso o interesse nesses diálogos intercontinentais. Igualmente, foi muito ver dialogar filósofos, enfermeiros, antropólogos e médicos. Mesmo que sejam difíceis, é evidente que temos necessidade desses diálogos interdisciplinares.

O seu interesse no âmbito da ética e da epistemologia de abordagens participativas na saúde pública é voltado apenas para a prática da pesquisa em si – para as relações entre pesquisadores e sujeitos pesquisados – ou também abrange as relações dos usuários com o sistema de saúde pública, ou seja, como esses usuários avaliam aspectos como a qualidade/quantidade das informações que recebem, a autoridade do médico, as prioridades de atendimento e mesmo a sujeição a tratamentos experimentais?

O que alguns chamam de "alfabetização médica" tornou-se um desafio importante para o sistema de saúde. É importante, evidentemente, que os cidadãos que recorrem ao sistema de saúde possam se reconhecer nesse sistema e fazer as escolhas que correspondam verdadeiramente àquilo que desejam, a seus "projetos de felicidade", como disse meu estimado colega José Ricardo Ayres, da Faculdade de Medicina da USP, durante a mesa redonda de novembro de 2013. Mas, se os pacientes devem ser "educados", creio que o sistema de saúde e os médicos têm muito que aprender com eles também. No quadro das doenças crônicas, o médico é especialista "na" doença, enquanto o paciente é especialista na "sua" doença. Há conhecimentos experimentais que são importantes para articular com os saberes produzidos pelas ciências biomédicas. É por isso acompanhamos com interesse, em Lyon, a inovação de introduzir "paciente especialistas, pacientes formadores" nos cursos de formação médica. Os pacientes, com sua experiência, possuem saberes que devem ter lugar no sistema de saúde, e todos os programas de educação em saúde deveriam levar isso em conta.

Foto: Sandra Codo/IEA-USP