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'Estudos Avançados' 53 repensa a Amazônia

por Flávia Dourado - publicado 22/03/2005 00:00 - última modificação 03/08/2018 17:07

O dossiê da edição reúne 19 textos sobre o tema, incluindo entrevistas com Aziz Ab'Sáber e Warwick Estêvam Kerr, estudiosos dos problemas ds região amazônica.

AmazôniaOs dois primeiros números de 2005 da revista "Estudos Avançados" dividirão um extenso dossiê sobre a Amazônia. De acordo com Alfredo Bosi, editor da publicação, o objetivo é atualizar e complementar os dados publicados nos dossiês dos números 45 e 46 da revista, de 2002. Além de questões ambientais, serão incluídos temas como agricultura, saúde, pesquisa, história e arte. Há também a intenção de contribuir com o debate de vários aspectos de extrema atualidade aos quais a região está ligada, como é o caso das mudanças climáticas globais.

As duas partes do dossiê terão a mesma diversidade de assuntos. Uma vez definida a amplidão temática do dossiê, foi feita uma chamada pública de artigos. Segundo Bosi, a chamada originou uma quantidade de artigos maior do que a esperada, o que tem exigido um trabalho criterioso de triagem e avaliação por pareceristas. Os artigos aprovados serão somados a entrevistas especialmente pautadas e textos com publicação já agendada pela revista. A primeira parte do dossiê já foi publicada no nº 53.

Geopolítica

Um dos textos da primeira parte é a íntegra da conferência que a geógrafa Bertha Becker, da UFRJ, fez no IEA em 2004 sobre "Geopolítica na Amazônia". Para ela, o desafio atual é mudar o padrão de desenvolvimento da região, que alcançou o auge nos anos de 60 a 80 e cujo paradigma era a chamada economia de fronteira, baseada na contínua incorporação de terra e de recursos naturais, percebidos como infinitos: "Sustar esse padrão é um imperativo internacional, nacional e também regional". Becker considera que já há na região resistências à apropriação indiscriminada de seus recursos e atores que lutam pelos seus direitos, "um fato novo, porque até então as forças exógenas ocupavam a região livremente, embora com sérios conflitos".

Becker comenta que o Brasil já efetuou três grandes revoluções tecnológicas: exploração do petróleo em águas profundas, a produção de combustível a partir da cana-de-açúcar e a correção dos solos do cerrado que permitiu a expansão da soja. Agora chegou a vez de "implementar uma revolução científico-tecnológica na Amazônia, estabelecendo cadeias tecnoprodutivas com base na biodiversidade, desde as comunidades da floresta até os centros de tecnologia avançada. Esse é um desafio fundamental hoje, que será ainda maior com a integração da Amazônia sul-americana".

Novos eixos

"Situação da Amazônia no Brasil e no Continente" é o título de outro artigo incluído na edição nº 53, de autoria do também geógrafo Hervé Théry, diretor de pesquisa do CNRS (França) e pesquisador associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB. Segundo ele, a situação econômica e estratégica da Amazônia começou a mudar com a abertura das rodovias nos anos 60 e continuou com a melhoria das hidrovias e das redes de telecomunicação: "Passou-se de um espaço reticular a outro, da Amazônia estruturada em função das vias navegáveis, drenando os fluxos para o Leste, a uma região dominada pelas estradas que levam ao Sul-Sudeste". De acordo com o pesquisador, os "nós" dessas duas redes, as cidades que polarizam o espaço, não são os mesmos, o que levou à decadência de algumas e à ascensão de outras, uma redistribuição que alterou profundamente as hierarquias urbanas da região.

Do ponto de vista continental, entre os fatores mais susceptíveis de produzir efeitos profundos na região, um dos mais potentes é a abertura de ligações com os países vizinhos, até então praticamente impossíveis, avalia Théry. Além disso, com a constituição de vários eixos cruzando a região, "a Amazônia torna-se o centro do continente, em vez de ser a periferia dos países que a compõem, mesmo não sendo a parte do continente onde passam os fluxos mais densos, os quais passam mais ao sul".

O fundador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o biólogo e geneticista Warwick Kerr, é um dos entrevistados do dossiê. Aos 82 anos e ainda se dedicando à pesquisa (sobre apicultura e frutas), agora na Universidade Federal de Uberlândia, Kerr narra fatos marcantes de sua carreira, discute política científica e tecnológica e opina sobre os problemas da Amazônia. Ele foi presidentee da SBPC e o primeiro diretor científico da Fapesp. Atuou em diversas universidades brasileiras e estrangeiras, tendo se aposentado na USP como professor titular em 1981.

Vida urbana

O escritor Márcio Souza, autor da tetralogia "Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro", participa do dossiê com um instigante artigo intitulado "Afinal, Quem é o Mais Moderno". Nele, o escritor afirma: "O certo é que se o extrativismo na Amazônia não está morto, deve ser definitivamente erradicado por qualquer plano que respeite o processo histórico e a vontade regional. Mesmo porque a Amazônia não deve ser reserva de nada, nem celeiro, nem estoque genético ou espaço do rústico para deleite dos turistas pós-industriais".

Ao relatar a história da região, Souza lembra que em 1822 a Amazônia não fazia parte do Brasil e sequer tinha esse nome, "na verdade, os portugueses construíram duas colônias na América do Sul". E entre 1823 e 1840, "a região norte sofre a intervenção política e militar do Império do Brasil, perde suas lideranças históricas e deixa de ser uma administração colonial autônoma para se transformar numa fronteira econômica".

Souza comenta que os nativos da Amazônia sempre se espantam ao ver que, talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda apresentam sua região como habitada essencialmente por tribos indígenas, "quando existem há muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população culta que teceu laços estreitos com o mundo desde o século 19. Aliás, nisso residem as maiores possibilidades de resistência e de sobrevivência da região".

Entre os textos integrantes do dossiê estão um conto e um poema de Milton Hatoum, autor de "Relato de um Certo Oriente" e "Dois Irmãos", e uma entrevista com o geógrafo Aziz Ab'Sáber, professor emérito da FFLCH/USP, professor honorário do IEA e um dos maiores especialistas na Amazônia.