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Imigrantes enfrentam dificuldades para acessar serviços de assistência médica, apontam pesquisadores

por Victor Matioli - publicado 14/11/2018 17:05 - última modificação 14/11/2018 17:19

A avaliação foi feita durante o evento Saúde, Migração e Refúgio, realizado na sede do IEA-USP no dia 7 de novembro, com organização do Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto.
Mesa Saúde, Migração e Refúgio

Existem cerca de 700 mil imigrantes vivendo regularmente no Brasil, segundo dados da Polícia Federal. O número representa aproximadamente 0,3% da população brasileira. Apesar de ser um percentual inferior à média
de outros países em desenvolvimento, que é de 1,7%, grande parte dos estrangeiros que vivem no país encontram dificuldades para acessar o sistema público
de saúde. Regina Yoshie Matsue, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acredita o principal causador do problema é a baixa capacitação dos servidores públicos para atender essa população,
que tem demandas bastante particulares.

Ela considera que a resolução da questão passa por um maior engajamento do poder público na criação de políticas de capacitação para os profissionais. Para além disso, a aplicação mais frequente de atividades culturais que envolvam gastronomia e música tradicionais, por exemplo, “humaniza a situação e deixa o ambiente mais receptivo para os imigrantes”, defende a professora.

A avaliação foi feita durante o evento Saúde, Migração e Refúgio, realizado na sede do IEA-USP no dia 7 de novembro, com organização do Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto. Sylvia Dantas, também professora da Unifesp e coordenadora do grupo, acredita ser necessário que as instituições de ensino superior adequem seus currículos a fim de preparar os profissionais “para acolher os diferentes”, principalmente nas profissões que lidam diretamente com a população.

Além de Regina e Sylvia, que mediou o encontro, participaram Cássio Silveira e Denise Martin, ambos professores da Unifesp e organizadores do livro Migração, Refúgio e Saúde (Editora Leopoldianum, 2018), e Carlos Eduardo Siqueira, professor da Universidade de Massachusetts (UMass). Mais do que o panorama atual dos processos migratórios, os professores debateram o acesso aos serviços de saúde e a efetivação das políticas de inclusão para os imigrantes em diferentes situações.

Sylvia Dantas 1
Sylvia Dantas: "Saúde é um tema intrínseco aos processos migratórios"

Até 1978, a Organização Mundial da Saúde (OMS) entendia a saúde como simples ausência de enfermidades. Com a Declaração de Alma-Ata, entretanto, a instituição atualizou a concepção para “um estado de bem-estar físico, mental e social”. Para Sylvia, este entendimento globalizante é intrínseco a todos os processos migratórios atuais, uma vez que fatores psicológicos, sociais e culturais são determinantes para a saúde daqueles que atravessam fronteiras internacionais.

Ela acredita que, apesar da relevância inquestionável do tema para a análise das dinâmicas migratórias, pouco se sabe ainda sobre os problemas de saúde vivenciados tanto pelos estrangeiros que se estabelecem no Brasil quanto pelos brasileiros que tentam a vida no exterior.

Ainda que considerem o sistema de assistência médica oferecido aos imigrantes no Brasil defasado e distante do ideal, todos defenderam os progressos conquistados nos últimos anos e o papel fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS) nesse avanço. Segundo Denise, o SUS é a porta de entrada para os imigrantes conquistarem sua cidadania em terras brasileiras: “Ter um cartão do SUS faz toda a diferença em como você se situa na sociedade que está te acolhendo”.

Contexto

Entender as consequências da migração para a saúde demanda, de acordo com a professora Denise, compreender os próprios processos migratórios transnacionais. Para tanto, ela usa uma definição de Nina Glick Schiller, professora da Universidade de Manchester: “São processos políticos, econômicos, sociais e culturais que se estendem além das bordas de um Estado particular e incluem atores que não são Estados, mas que são moldados pelas políticas e práticas institucionais dos Estados”.

Denise acredita que essa concepção mais ampla explicita que os serviços de assistência à saúde de povos migrantes transcende o modelo biomédico ocidental. “O que conhecemos por doença leva em conta todas as experiências culturais do sujeito e, desta forma, podemos dizer que sistemas de saúde são sistemas culturais que envolvem o modelo biomédico”, explicou.

O livro Migração, Refúgio e Saúde traz uma coletânea de artigos organizados pelos professores Cássio Silveira e Denise Martin, ambos professores da Unifesp. A obra foi lançada este ano pela Editora Universitária Leopoldianum e está dividida em cinco blocos temáticos:
Deslocamentos forçados e o ingresso pleno no sistema de saúde pública;
Os imigrantes haitianos no Brasil, com análises sobre as maneiras pelas quais as iniquidades impedem o progresso e o desenvolvimento dessas pessoas;
Deslocamentos na América do Sul, com foco em tratamentos específicos oferecidos em outros países;
Políticas e serviços de saúde, com ênfase à experiência de médicos cubanos no Brasil e as polêmicas envolvidas no desenvolvimento do Programa Mais Médicos;
Pluralidade assistencial, com foco nas diferentes dinâmicas religiosas e familiares de cada um dos povos.

Ela ressaltou ainda que é preciso respeitar e entender as particularidades de cada indivíduo migrante, que vão além de suas características físicas: “Não podemos reduzir os grupos de imigrantes a ‘os haitianos’, ‘os venezuelanos’ e ‘os colombianos’, porque são provenientes de regiões, processos de vida e motivações diferentes”.

Essas temáticas, além de outras que se aprofundam em diferentes aspectos do acesso à saúde por imigrantes, estão presentes no livro Migração, Refúgio e Saúde, organizado por Cássio Silveira e Denise. Cássio contou que o livro surgiu da necessidade de uma pesquisa voltada para a saúde coletiva, frente ao grande número de estudos epidemiológicos já existentes. Além dos resultados de pesquisas realizadas na cidade de São Paulo — nas Unidades Básicas de Saúde da Barra Funda, Bom Retiro, Sé e República —, a obra contém artigos escritos por diversos pesquisadores sediados no Brasil, Argentina e Estados Unidos.

Brasil, Haiti e Japão

Regina Yoshie é coautora de dois capítulos do livro, nos quais fala sobre brasileiros que se estabelecem no Japão e haitianos que imigram para o Brasil — particularmente para a cidade de Chapecó, em Santa Catarina. Apesar de serem exemplos particulares e distantes, ela acredita que fazem parte de um mesmo contexto de segregação e dificuldade de adaptação ao sistema de saúde da sociedade receptora.

Segundo ela, os dois grupos apresentam mais semelhanças do que diferenças. No Japão, os brasileiros são majoritariamente trabalhadores braçais em linhas de produção industriais, enquanto os haitianos trabalham com cortes pesados de carne em grandes frigoríficos catarinenses, e são responsáveis pela carga e descarga de caminhões. Regina contou que os brasileiros são considerados cidadãos de segunda categoria no Japão, mesmo sendo descendentes de japoneses. De forma semelhante, os haitianos sofrem forte preconceito racial em Chapecó e são obrigados, de acordo com a pesquisadora, a conviver com discursos de ódio explícitos dos moradores da região.

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Denise Martin: “Não podemos reduzir os grupos de imigrantes a ‘os haitianos’, ‘os venezuelanos’ e ‘os colombianos’, porque são provenientes de regiões, processos de vida e motivações diferentes”

Por não dominarem o idioma local, ambos os grupos apresentam
grande dificuldade de se comunicar com eficiência e liberdade. Consequentemente, o acesso aos sistemas de assistência médica por essas populações é praticamente inexistente. “Os brasileiros vivem, no Japão, em um estado de anomia e alienação social, o que facilita o desenvolvimento de doenças e faz com que pelo menos 17% deles sejam diagnosticados com depressão e distúrbios mentais”,
relatou Regina.

Apesar da tecnologia que empregam em seus processos industriais, a professora acredita que os japoneses são resistentes a alguns avanços sociais e médicos que relacionam a saúde física e a psicológica. “A concepção japonesa de saúde não reconhece a explicação psicológica como causa ou origem de uma doença, pois não faz distinção entre o corpo e a mente”, esclareceu.

Ela contou ainda que, ao ser acometido por um distúrbio mental, um cidadão japonês — assim como os imigrantes — tem somente duas opções de tratamento: buscar ajuda na própria família ou em uma
instituição religiosa, já que enfermidades psicológicas são geralmente
associadas à possessões espirituais.

Em chapecó, o trabalho pesado e constante faz com que a maioria dos trabalhadores haitianos chegue ao sistema de saúde com Lesões por Esforço Repetitivo (LER) e graves problemas na coluna. Regina acredita que aos imigrantes é imposto um lugar de “não-direitos”. “Eles não são informados de seus direitos e, portanto, não procuram o atendimento médico”, explicou. “E quando buscam é porque já estão doentes.”

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Regina Yoshie Matsue: "A concepção japonesa de saúde não reconhece a explicação psicológica como causa ou origem de uma doença, pois não faz distinção entre o corpo e a mente"

Mais Médicos

Eduardo Siqueira também escreveu um artigo para o livro, no qual relata e analisa experiências de médicos cubanos participantes do Programa Mais Médicos — implantado em 2013 durante a gestão Dilma Rousseff — com populações indígenas no Brasil. De acordo com o professor, o programa foi a maior experiência de atração de profissionais da saúde da história do país. No ápice da atividade, mais de 14 mil médicos cubanos residiam e trabalhavam em território brasileiro. Nas palavras de Siqueira, o Mais Médicos foi “um plano de migração temporária de profissionais qualificados para atender uma população desassistida, ou melhor, que nunca havia recebido assistência médica regular”.

A pesquisa foi realizada com o apoio e financiamento da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a partir de entrevistas com 95 médicos cubanos que atuaram em tribos indígenas. Além de observar as diferenças metodológicas entre o atendimento brasileiro e o cubano, Siqueira contou que o estudo buscava entender as relações estabelecidas entre os médicos e os pacientes fora do consultório. Por conta da tradição cubana de realizar atendimentos médicos em casa, o vínculo entre os profissionais e os índios se deu com certa facilidade, relatou o professor. “Em Cuba, não somente as pessoas vão ao consultório, como os médicos as visitam em suas casas, o que gera uma integração social profunda”, comentou.

Para ele, a troca cultural relatada pelos profissionais foi um dos aspectos mais marcantes da pesquisa. Siqueira acredita que essa troca, ou interculturalidade, se deu principalmente porque os índios enxergam a saúde, seu corpo e a natureza de maneira incompatível com a cultura médica e comportamental das sociedades ocidentais: “Os médicos foram obrigados a enxergar o mundo através da perspectiva de quem vive na e da floresta”.

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Cassio Silveira: "O Programa Mais Médicos foi mais uma das sucessivas medidas para tentar levar médicos para o interior do Brasil"

O “choque cultural” ficava mais explícito, segundo ele, nos momentos em que os médicos cubanos usavam métodos da medicina ocidental, já que os indígenas têm tratamentos próprios para doenças recorrentes, mas não compreendem muito bem os males modernos.  Siqueira relatou uma situação bastante representativa dessa interculturalidade: um médico cubano que sofria de dores de cabeça foi atendido e curado pelo xamã de uma tribo; ao mesmo tempo, identificou sintomas de diabetes no indígena e iniciou seu tratamento. Para o professor, isso mostra “uma relação de dupla confiança, onde um acredita nos métodos e tradições do outro”.

Durante a convivência com as populações indígenas, os médicos procuravam respeitar ao máximo suas tradições e cultura, como o uso de plantas para sanar grande parte das doenças. Ao mesmo tempo, registraram comportamentos que, de acordo com o conhecimento acumulado pela medicina ocidental, podem causar prejuízos à saúde, como a falta de higiene. Siqueira acredita que essa ambivalência é uma demonstração de que a interculturalidade também aflorou conflitos entre as diferentes visões de mundo que ali conviviam. “Eles fizeram um esforço tremendo para realizar a medicina que os índios aceitavam, mas algumas coisas não puderam ser alteradas”, completou.

Ele considera também que os médicos cubanos conseguiram atingir um nível de interculturalidade e inserção nas sociedades indígenas muito superior ao apresentado pelos brasileiros. “É preciso ter um certo tipo de visão sobre a medicina, a prática médica, a atenção básica e a cultura para demonstrar a abertura e a flexibilidade necessárias para ser acolhido pelos índios”, defendeu. “Os médicos cubanos tinham essa visão, porque já haviam participado de missões em outros países”.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP