Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Justiça espacial e privatizações: os efeitos da gestão Dória

Justiça espacial e privatizações: os efeitos da gestão Dória

por Sylvia Miguel - publicado 18/05/2017 12:35 - última modificação 24/05/2017 13:52

Especialistas apontam eliminação da participação popular nos rumos privatistas da cidade de São Paulo
Cidade1

Cenas do vídeo institucional da Prefeitura de São Paulo: Anhembi (acima), parque do Ibirapuera, estádio do Pacaembu e autódromo de Interlagos (abaixo) estão no lote de privatização exibido a investidores estrangeiros

Ibirapuera1
Estádio Pacaembu1
Interlagos1

A justiça espacial e o direito à cidade foram temas do encontro A Venda de São Paulo como Política Pública: a Radicalização da Cidade como Negócio, realizado no dia 8 de maio, pelo Grupo de Estudos Teoria Urbana Crítica do IEA. Um vídeo institucional mostrando os planos do prefeito João Dória Junior (PSDB) para privatizações ou concessões de parques e outros espaços e serviços públicos serviu de pano de fundo para o debate sobre os rumos da atual gestão e seus efeitos sobre a vida na cidade.

O vídeo, produzido para captar investimentos para a cidade de São Paulo, foi exibido originalmente durante a ida de Dória aos Emirados Árabes, primeira viagem internacional como Prefeito, empreendida para mostrar os 55 lotes de privatizações, concessões e PPPs (parcerias público-privado) disponibilizados prioritariamente para investidores estrangeiros.

A empreitada inclui 14 parques municipais – como o Ibirapuera, Cemucan, Praça Buenos Aires, parque da Luz – e equipamentos como o Mercado Municipal, o Estádio do Pacaembu, o Palácio de Convenções do Anhembi e Sambódromo, Autódromo de Interlagos, e outros espaços e edifícios da Prefeitura. As privatizações atingem ainda serviços como o Bilhete Único, terminais de ônibus, cemitérios, serviços funerários e iluminação, entre outros.

Na análise da professora Vera Pallamin, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, a ideia de que o aporte de investimento estrangeiro terá impacto positivo para todos não é verdadeira. “Os custos para usuários de serviços públicos tenderão a subir e se farão sentir por anos a fio. Esses planos de parcerias estão sujeitos aos riscos da especulação”, disse.

A notícia da venda de centenas de imóveis públicos para integrar um fundo de garantia para empresas que atuarão no setor de habitação foi criticada por Pallamin. “Sequer se cogitou a possibilidade de destinar esses imóveis para quem não tem moradia. As transferências têm um baixo custo para o grande empresariado e são feitas a partir de um plano violento de espoliação do patrimônio público, em que o poder público assume riscos com subsídios, fundos e infraestrutura e o poder privado fica com a parte significativa dos benefícios”, afirma.

Existe a preocupação de que essas parcerias se voltem para projetos pontuais e não evoluam para o atendimento das reais necessidades da cidade, pois a iniciativa privada visa exclusivamente o lucro nesses negócios,  avalia Pallamin.

Espaço público e cidadania

Midiateca

Fotos

Vídeo

“A iniciativa cristaliza dois movimentos simultâneos, o recuo do Estado de suas tarefas precípuas e o crescente controle e desmobilização de práticas urbanas comuns em espaços públicos. Nesse cenário, não cabe mais falar em poder público ou ação pública destinada a políticas públicas, pois conceber o social como mercadoria destrói essa ideia”, avalia Pallamin.

Na opinião da professora Isabel Pinto Alvarez, do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a segregação urbana moderna não é resultado de um desvio e, sim, parte do processo de produção da cidade. “É como no passado, quando as vilas operárias segregavam o trabalhador na periferia. A cidade não era um espaço que deveria ser apropriado pelo trabalhador. Da mesma forma, a cidade produzida como mercadoria precisa da mediação da propriedade privada. Então para ficar na cidade e se apropriar dela há que se pagar por isso”, compara.

Para a geógrafa, a cidade capitalista produzida como negócio se transforma em mercadoria. “Nesse caso, quem são os sujeitos de produção na cidade? Na ótica de Karl Marx (1818-1883), o fim último da mercadoria é a valorização do capital. Mas a cidade não é uma mercadoria como outra qualquer. É o espaço onde as pessoas vivem, trabalham, fazem coisas”, pondera.

Vera Pallamin, Ana Fani Alessandri Carlos, Isabel Pinto Alvarez e Cibele Rizek

Vera Pallamin, Ana Fani Alessandri Carlos, Isabel Pinto Alvarez e Cibele Rizek: cidade como mercadoria é estreitamento da cidadania

“A cidade como mercadoria se destitui dos conteúdos civilizatórios, pois se governada como mercado, ela se guia pela lógica do lucro. O resultado disso é empurrar para locais cada vez mais distantes a população não compatível com essa situação”, afirma a professora Ana Fani Alessandri Carlos, também professora no departamento de Geografia da FFLCH-USP.

Para Alessandri Carlos, o que se realiza atualmente é uma gestão de fachada, de estreitamento do horizonte político e de construção de uma democracia que se realiza sem a cidadania. “Isso é grave, pois cala o cidadão. Uma gestão de fachada indica um novo tempo, o tempo do imediatismo. É um tempo que deteriora a política porque não é um tempo definido pelas partes que compõem a sociedade e sim pela empresa, pela propriedade privada, que precisa de resultados imediatos. Isso destitui o cidadão de sua fala, de seus desejos e da participação, pois a produção da cidade é feita sob um falso consentimento”, avalia.

A professora toma como exemplo o fato de que em 100 dias de governo, após 176 vídeos institucionais veiculados e 600 eventos sociais registrados na agenda do Prefeito, “nenhum diálogo importante foi estabelecido com participação social”, afirma.

O argumento de privatizar para levantar recursos não parece válido, na opinião de Alessandri Carlos. “A falta de dinheiro nos cofres públicos soa falsa, pois o que os bancos devem à cidade de São Paulo é hoje o dobro do orçamento de 2016. É preciso desmistificar a ideia de que o privado é eficiência e o público é morosidade. A construção de um projeto político precisa ser feito com o debate público”, afirma.

O “novo” na política

“Como alguém, que já foi o príncipe dos sociólogos brasileiros, vira peça midiática e, com o peso que carrega a partir da formação nesta Universidade, diz que o futuro e o novo na política estão coagulados em duas figuras, o Dória e o Luciano Huck?”. A crítica da professora Cibele Rizek, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU)  da USP, refere-se a declarações do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso a respeito do Prefeito e do apresentador do programa "Caldeirão do Huck", da TV Globo.

Para Rizek, o fenômeno neoliberal não ocorre apenas no Brasil, pois o mundo está vivendo uma era de compatibilização entre as atuais formas de acumulação de capital com as atuais formas de constituição e exercício político.

“Há um encolhimento da noção clássica de soberania, que é substituída pela noção da governança, que tem a ver com a empresa. Há uma homogeneização internacional a partir de uma lógica gerencial que conforma a ação política com os interesses do capital. Os Estados viram unidades produtivas, submetidos a regras de governança similares às da empresa, ultrapassando limites clássicos do que entendemos por lei. Por exemplo, a legalidade das privatizações é algo questionável e se procurarmos, encontraremos muitos erros”, afirma.

No cenário neoliberal aplicado à cidade, esta é transformada numa alavanca para o processo de acumulação financeira, diz Rizek. “O Estado não se retira, mas se associa aos atores privados. Temos então uma governança feita por uma coisa chama mercado mundial, um entrelaçamento movediço de coalizões entre entidades públicas e privadas”, afirma.

“Nesse novo marco ideológico, não somos mais capazes de distinguir o que é afinal o interesse geral. O Estado a serviço do interesse de grandes oligopólios acaba delegando a eles o interesse social, turístico, a gestão sanitária, cultural da população. As vozes dominantes dão um jeito de garantir a coesão de um sistema tortuoso e de exploração. O próprio Emílio Odebrecht declarou que inexiste concorrência para licitações de contratos públicos nesse país. O que vale não são as relações de mercado. As relações políticas, o jeitinho funcionam como o braço avançado do neoliberalismo”, disse.

Vale lembrar que os experimentos totalitários sempre se apoiaram na eliminação da política e funcionaram contra a ideia do debate sobre o bem comum que é fundamento da democracia, lembrou a professora Alessandrini Carlos.

Imagens: 1,2,3 e 4: Reprodução; 5) Leonor Calasans