Livro analisa a liberdade acadêmica do ponto de vista jurídico
Os fundamentos da liberdade acadêmica no Brasil estão “sob tensão em razão de conflitos de ordem ideológica, financeira e institucional, intensificados nos últimos anos”, de acordo com a conselheira do IEA Nina Ranieri, professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP.
“A boa notícia é que tanto a sua importância quanto a sua força normativa vêm sendo confirmadas na maioria das situações em que têm sido testadas". No entanto, tais conflitos “revelam o quanto se deteriora a qualidade da democracia brasileira", afirma a pesquisadora.
Ranieri manifesta essa avaliação na apresentação do ebook “Liberdade Acadêmica: Aspectos Jurídicos em Perspectiva Comparada”, organizado por ela e Angela Limongi Alves, do mesmo departamento da FD-USP. Lançado este mês pelo IEA, o livro pode ser baixado gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.
O prefácio do ebook é da cientista política Elizabeth Balbachevsky, coordenadora científica do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP - sediado no IEA -, do qual Ranieri também faz parte.
"A ascensão, no Brasil e em outras partes do mundo, de lideranças francamente autoritárias desafia um elemento central da vida universitária: a autonomia acadêmica e a liberdade de cátedra", afirma Balbachevsky. Para ela, a liberdade acadêmica constitui o pilar mestre da institucionalidade da universidade que conhecemos. "Garante a vida, o dinamismo e a qualidade da universidade; mais do que isso, ela cria as condições ímpares que faz da universidade o lócus por excelência para abrigar a ciência", ressalta a cientista política.
O ebook tem 14 capítulos e 456 páginas. Ao todo são 17 autores das áreas de direito, sociologia, ciência política e engenharia, incluindo professores, pós-graduados e pós-graduandos da USP e de outras instituições brasileiras, professores de universidades dos EUA, Austrália e Chile, e integrantes do Judiciário do país, como a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge.
Entre os conflitos que tencionam os fundamentos da liberdade acadêmica, Ranieri cita as restrições ao direito de ensinar e aprender, manifestadas nas leis que instituíram as diretrizes da chamada Escola sem Partido - declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal -, a proibição pelo Ministério da Educação da oferta do curso O Golpe de 2016 pela Universidade de Brasília e as restrições ao financiamento federal de bolsas de pesquisa em ciências humanas, ocorridas em 2020.
Outros exemplos, segundo ela, são os cortes orçamentários nas universidades federais e a instauração de inquéritos administrativos e processos judiciais contra alunos e professores, entre eles, “os clamorosos casos” de Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, e de Conrado Hübner Mendes, professor da FD-USP.
“No plano administrativo, a nomeação de reitores pró-tempore ou mesmo a de segundos e terceiros colocados nas listas tríplices para escolha de reitores de universidades federais revela tentativas de controle das instituições à margem das garantias de autonomia universitária e da liberdade acadêmica.”
Ela alerta que o fenômeno não é exclusivo do Brasil, com ataques a acadêmicos, pesquisadores, alunos e instituições de ensino e pesquisa, por parte de segmentos sociais e políticos, “sendo relatados e denunciados por diversas organizações da sociedade civil, em diversos países”.
Mas qual é a importância da liberdade acadêmica? Por que ela foi inserida expressamente no capítulo dos direitos fundamentais da Constituição Federal brasileira? Quais as implicações dessa inserção para titulares do direito, outros cidadãos e para o Estado? Quais os desafios da liberdade acadêmica a médio e longo prazo?
Ranieri aponta a relevância dessas questões, “especialmente em momentos de crescente polarização política”, e acrescenta que elas não se limitam a circunstâncias e situações conjunturais. Daí a motivação para a produção do livro, que discute essas questões sob diferentes ângulos, numa abordagem sobretudo jurídica, ressalta a pesquisadora, autora da apresentação, onde faz uma explanação resumida das premissas conceituais envolvidas nas discussões.
“Liberdade Acadêmica: Fundamentos, Espaço Público e Democracia” é o título do capítulo 2 do livro, escrito por Angela Limongi Alves. Para ela, a liberdade acadêmica é “direito fundamental e garantia institucional dos educadores, contando com proteção específica, tanto no plano nacional quanto no internacional”.
Em linhas gerais, porém, a liberdade acadêmica “diferencia-se da liberdade de expressão, de opinião e científica: trata-se de uma liberdade qualificada que contempla o amplo debate de ideias e de pensamento, pressupondo-se a existência do conhecimento, próprio dos educadores”, afirma a coorganizadora do livro.
Em sua opinião, há uma relação de interdependência entre o direito à educação e a democracia, que se qualifica pela liberdade acadêmica. No entanto, “ainda que não se constitua em um direito absoluto, já que é constitucionalmente limitada”, a liberdade acadêmica pode sofrer questionamentos, ataques e tentativas de cerceamento, “sob a justificativa de pretensa necessidade de regulamentação, fundamentada em argumentos refratários, lastreados na ‘busca pela verdade’ e na persecução de ‘neutralidade’”, destaca a pesquisadora. A questão que se coloca em contraposição a esses argumentos “é a de que nenhum conhecimento é neutro e de que a verdade pode encontrar múltiplas faces”, afirma Limongi Alves.
Na conclusão do capítulo, ela diz que a “apropriação da linguagem do direito como estratégia para a sua redução” é um ponto que não pode ser ignorado, pois “a restrição da liberdade acadêmica pode significar a primeira das liberdades a sucumbir”. Se não for protegida, “pode vir a ser o prelúdio do fim de outros postulados democráticos, sem os quais a democracia e o próprio direito fenecem”.
Avaliação da constitucionalidade
Raquel Dodge, doutora pela Escola de Direito da Universidade Harvard, EUA, e o procurador regional da República da 3ª Região André de Carvalho Ramos, doutor pela FD-USP, são autores de capítulo que examina a constitucionalidade da proposta de exclusão, pelo governo, de conteúdos no universo escolar e do controle da liberdade de ensino e da pluralidade de ideias.
Eles destacam que as dimensões jurídicas do direito à educação estão definidas na Constituição Federal e nos tratados assinados pelo Brasil "e devem ser observadas pelas leis ordinárias e em sala de aula". Afirmam que o ensino democrático, plural e igualitário deve permitir o pleno desenvolvimento humano, "segundo diretrizes da proteção da dignidade humana e da promoção das liberdades fundamentais".
Submetido aos parâmetros constitucionais, o dever estatal de prestar serviços de educação deve incluir a participação da família sem ser determinado por ela, pois "cabe ao Estado preparar o estudante para a vida social", afirmam.
"A educação prepara o estudante para o exercício da cidadania e a construção de uma sociedade de paz e tolerância, e deve fornecer-lhe os conteúdos que tornem possível atingir os objetivos constitucionais em favor da democracia e de uma sociedade mais justa e solidária."
Fora do Brasil
Como o debate sobre a liberdade acadêmica transcorre no exterior é exemplificado no livro com artigos sobre o caso de instituições católicas nos EUA e sobre o ensino superior em geral na Austrália e no Chile.
O especialista em legislação educacional Charles J. Russo, professor da Escola de Direito da Universidade de Dayton, debate as dificuldades para implantação, nos EUA, das diretrizes da Constituição Apostólica Ex-Corde Ecclesiae sobre as Universidades Católicas, uma espécie de estatuto geral baixado pelo Papa João Paulo II em 1990.
A socióloga Alphia Possamai-Inesedy, professora da Universidade do Oeste de Sidney, destaca que a Austrália não possui garantias constitucionais para a liberdade acadêmica, ao contrário de países como o Brasil, Japão, África do Sul, Espanha e Alemanha. No entanto, "a recomendação de um código voluntário de liberdade de expressão, a qual também compreende a liberdade acadêmica, tem sido adotada por muitas universidades australianas".
Agustín Barroilhet Diez e Jorge Aranda Ortega, professores da Faculdade de Direito da Universidade do Chile, ressaltam que a liberdade acadêmica no Chile se desenvolveu a partir do século 19 em função da autonomia universitária. Durante o período da reforma universitária e, depois, com o advento da ditadura militar (1973-1990), "a autonomia das instituições de ensino superior se converteu em um pretexto conveniente para a profilaxia ideológica almejada pelo autoritarismo imperante".
Diez e Ortega explicam que, a partir de 2006, o questionamento público da qualidade das várias universidades privadas surgidas na redemocratização levou a uma reforma normativa completa, que "preservou a liberdade acadêmica e a autonomia universitária como princípios de política pública".
No entanto, uma vez estabelecida e legislada como princípio, a autonomia universitária pode perfeitamente tornar-se uma limitação à liberdade acadêmica, "barreira certamente justificável se os acadêmicos não se adequarem às diretrizes institucionais de seus respectivos claustros", afirmam os pesquisadores.