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Livro analisa a liberdade acadêmica do ponto de vista jurídico

por Mauro Bellesa - publicado 22/03/2022 11:35 - última modificação 25/03/2022 11:55

IEA lança ebook "Liberdade Acadêmica: Aspectos Jurídicos em Perspectiva", organizado por Nina Ranieri e Angela Limongi Alves, professoras da Faculdade de Direito (FD) da USP. A publicação pode ser baixada no Portal de Livros Abertos da USP.

Capa do livro 'Liberdade Acadêmica'Os fundamentos da liberdade acadêmica no Brasil estão “sob tensão em razão de conflitos de ordem ideológica, financeira e institucional, intensificados nos últimos anos”, de acordo com a conselheira do IEA Nina Ranieri, professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FD) da USP.

“A boa notícia é que tanto a sua importância quanto a sua força normativa vêm sendo confirmadas na maioria das situações em que têm sido testadas". No entanto, tais conflitos “revelam o quanto se deteriora a qualidade da democracia brasileira", afirma a pesquisadora.

Ranieri manifesta essa avaliação na apresentação do ebook “Liberdade Acadêmica: Aspectos Jurídicos em Perspectiva Comparada”, organizado por ela e Angela Limongi Alves, do mesmo departamento da FD-USP. Lançado este mês pelo IEA, o livro pode ser baixado gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP.

O prefácio do ebook é da cientista política Elizabeth Balbachevsky, coordenadora científica do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP - sediado no IEA -, do qual Ranieri também faz parte.

"A ascensão, no Brasil e em outras partes do mundo, de lideranças francamente autoritárias desafia um elemento central da vida universitária: a autonomia acadêmica e a liberdade de cátedra", afirma Balbachevsky. Para ela, a liberdade acadêmica constitui o pilar mestre da institucionalidade da universidade que conhecemos. "Garante a vida, o dinamismo e a qualidade da universidade; mais do que isso, ela cria as condições ímpares que faz da universidade o lócus por excelência para abrigar a ciência", ressalta a cientista política.

O ebook tem 14 capítulos e 456 páginas. Ao todo são 17 autores das áreas de direito, sociologia, ciência política e engenharia, incluindo professores, pós-graduados e pós-graduandos da USP e de outras instituições brasileiras, professores de universidades dos EUA, Austrália e Chile, e integrantes do Judiciário do país, como a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge.

Entre os conflitos que tencionam os fundamentos da liberdade acadêmica, Ranieri cita as restrições ao direito de ensinar e aprender, manifestadas nas leis que instituíram as diretrizes da chamada Escola sem Partido - declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal -, a proibição pelo Ministério da Educação da oferta do curso O Golpe de 2016 pela Universidade de Brasília e as restrições ao financiamento federal de bolsas de pesquisa em ciências humanas, ocorridas em 2020.

Outros exemplos, segundo ela, são os cortes orçamentários nas universidades federais e a instauração de inquéritos administrativos e processos judiciais contra alunos e professores, entre eles, “os clamorosos casos” de Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, e de Conrado Hübner Mendes, professor da FD-USP.

“No plano administrativo, a nomeação de reitores pró-tempore ou mesmo a de segundos e terceiros colocados nas listas tríplices para escolha de reitores de universidades federais revela tentativas de controle das instituições à margem das garantias de autonomia universitária e da liberdade acadêmica.”

Ela alerta que o fenômeno não é exclusivo do Brasil, com ataques a acadêmicos, pesquisadores, alunos e instituições de ensino e pesquisa, por parte de segmentos sociais e políticos, “sendo relatados e denunciados por diversas organizações da sociedade civil, em diversos países”.

Mas qual é a importância da liberdade acadêmica? Por que ela foi inserida expressamente no capítulo dos direitos fundamentais da Constituição Federal brasileira? Quais as implicações dessa inserção para titulares do direito, outros cidadãos e para o Estado? Quais os desafios da liberdade acadêmica a médio e longo prazo?

Ranieri aponta a relevância dessas questões, “especialmente em momentos de crescente polarização política”, e acrescenta que elas não se limitam a circunstâncias e situações conjunturais. Daí a motivação para a produção do livro, que discute essas questões sob diferentes ângulos, numa abordagem sobretudo jurídica, ressalta a pesquisadora, autora da apresentação, onde faz uma explanação resumida das premissas conceituais envolvidas nas discussões.

“Liberdade Acadêmica: Fundamentos, Espaço Público e Democracia” é o título do capítulo 2 do livro, escrito por Angela Limongi Alves. Para ela, a liberdade acadêmica é “direito fundamental e garantia institucional dos educadores, contando com proteção específica, tanto no plano nacional quanto no internacional”.

Em linhas gerais, porém, a liberdade acadêmica “diferencia-se da liberdade de expressão, de opinião e científica: trata-se de uma liberdade qualificada que contempla o amplo debate de ideias e de pensamento, pressupondo-se a existência do conhecimento, próprio dos educadores”, afirma a coorganizadora do livro.

Em sua opinião, há uma relação de interdependência entre o direito à educação e a democracia, que se qualifica pela liberdade acadêmica. No entanto, “ainda que não se constitua em um direito absoluto, já que é constitucionalmente limitada”, a liberdade acadêmica pode sofrer questionamentos, ataques e tentativas de cerceamento, “sob a justificativa de pretensa necessidade de regulamentação, fundamentada em argumentos refratários, lastreados na ‘busca pela verdade’ e na persecução de ‘neutralidade’”, destaca a pesquisadora. A questão que se coloca em contraposição a esses argumentos “é a de que nenhum conhecimento é neutro e de que a verdade pode encontrar múltiplas faces”, afirma Limongi Alves.

Na conclusão do capítulo, ela diz que a “apropriação da linguagem do direito como estratégia para a sua redução” é um ponto que não pode ser ignorado, pois “a restrição da liberdade acadêmica pode significar a primeira das liberdades a sucumbir”. Se não for protegida, “pode vir a ser o prelúdio do fim de outros postulados democráticos, sem os quais a democracia e o próprio direito fenecem”.

Avaliação da constitucionalidade

Raquel Dodge, doutora pela Escola de Direito da Universidade Harvard, EUA, e o procurador regional da República da 3ª Região André de Carvalho Ramos, doutor pela FD-USP, são autores de capítulo que examina a constitucionalidade da proposta de exclusão, pelo governo, de conteúdos no universo escolar e do controle da liberdade de ensino e da pluralidade de ideias.

Eles destacam que as dimensões jurídicas do direito à educação estão definidas na Constituição Federal e nos tratados assinados pelo Brasil "e devem ser observadas pelas leis ordinárias e em sala de aula". Afirmam que o ensino democrático, plural e igualitário deve permitir o pleno desenvolvimento humano, "segundo diretrizes da proteção da dignidade humana e da promoção das liberdades fundamentais".

Submetido aos parâmetros constitucionais, o dever estatal de prestar serviços de educação deve incluir a participação da família sem ser determinado por ela, pois "cabe ao Estado preparar o estudante para a vida social", afirmam.

"A educação prepara o estudante para o exercício da cidadania e a construção de uma sociedade de paz e tolerância, e deve fornecer-lhe os conteúdos que tornem possível atingir os objetivos constitucionais em favor da democracia e de uma sociedade mais justa e solidária."

Fora do Brasil

Como o debate sobre a liberdade acadêmica transcorre no exterior é exemplificado no livro com artigos sobre o caso de instituições católicas nos EUA e sobre o ensino superior em geral na Austrália e no Chile.

O especialista em legislação educacional Charles J. Russo, professor da Escola de Direito da Universidade de Dayton, debate as dificuldades para implantação, nos EUA, das diretrizes da Constituição Apostólica Ex-Corde Ecclesiae sobre as Universidades Católicas, uma espécie de estatuto geral baixado pelo Papa João Paulo II em 1990.

A socióloga Alphia Possamai-Inesedy, professora da Universidade do Oeste de Sidney, destaca que a Austrália não possui garantias constitucionais para a liberdade acadêmica, ao contrário de países como o Brasil, Japão, África do Sul, Espanha e Alemanha. No entanto, "a recomendação de um código voluntário de liberdade de expressão, a qual também compreende a liberdade acadêmica, tem sido adotada por muitas universidades australianas".

Agustín Barroilhet Diez e Jorge Aranda Ortega, professores da Faculdade de Direito da Universidade do Chile, ressaltam que a liberdade acadêmica no Chile se desenvolveu a partir do século 19 em função da autonomia universitária. Durante o período da reforma universitária e, depois, com o advento da ditadura militar (1973-1990), "a autonomia das instituições de ensino superior se converteu em um pretexto conveniente para a profilaxia ideológica almejada pelo autoritarismo imperante".

Diez e Ortega explicam que, a partir de 2006, o questionamento público da qualidade das várias universidades privadas surgidas na redemocratização levou a uma reforma normativa completa, que "preservou a liberdade acadêmica e a autonomia universitária como princípios de política pública".

No entanto, uma vez estabelecida e legislada como princípio, a autonomia universitária pode perfeitamente tornar-se uma limitação à liberdade acadêmica, "barreira certamente justificável se os acadêmicos não se adequarem às diretrizes institucionais de seus respectivos claustros", afirmam os pesquisadores.