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O testemunho como elo entre a memória e a história da ditadura militar

por Flávia Dourado - publicado 17/03/2015 14:45 - última modificação 04/02/2016 11:32

Em seminário realizado no IEA, a historiadora Heloísa Starling falou sobre o uso do testemunho como instrumento de reconstituição histórica do período da ditadura militar brasileira.
Heloísa Starling, Olgária Matos, Maria Inês Assumpção Fernandes e Raul Araújo
A partir da esq.: Heloísa Starling, Olgária Matos, Maria Inês Fernandes e Raul Araújo

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) falhou em levar os crimes da ditadura militar à cena pública para que a sociedade pudesse fazer juízo dos fatos, afirmou a historiadora Heloísa Starling, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Passamos por três presidentes — Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, todos afetados de alguma forma pela ditadura — e nenhum conseguiu completar a transição democrática."

Starling, que atuou como assessora da CNV, falou sobre o tema no seminário Crise da Filiação: Subjetividade e Sofrimento no "Tempo da Agressão", realizado pelo Grupo de Pesquisa Humanidade e Mundo Contemporâneo do IEA, no dia 11 de março, quando fez uma exposição sobre a importância do testemunho como dispositivo reconstituidor da ditadura militar.

Segundo a historiadora, o uso do relato testemunhal para a reconstituição do passado — instrumento que fundamentou grande parte do trabalho da CVN — é marcado pela tensão entre memória e história. "O passado é um território de disputa e desavença: nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia da história se não há direito à lembrança.

Nesse contexto de embate, o testemunho seria um recurso privilegiado por lançar luz sobre episódios da ditadura inacessíveis por outras vias e por dar sustentação jurídica a políticas reparadoras, que permitem compensar os crimes cometidos pelo Estado. Da acordo com Starling, esse recurso revela-se particularmente valoroso porque os militares retêm documentos sobre o período. "O poder militar não se submeteu ao poder civil", disse.

A historiadora avalia que, ao dar vazão à memória num discurso subjetivo e independente, construído em primeira pessoa e sob o ponto de vista das vítimas ou atores, o testemunho dá conta de informações detalhadas e possibilita responder perguntas sobre o passado que a história, sozinha, é incapaz de contemplar.

Ao comentar a relação entre memória, história e testemunho, a filósofa Olgária Matos, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e mediadora do encontro, destacou os traços distintivos de cada um. Para a filósofa, a memória é mais afetiva e mantém laços estreitos com o acontecimento rememorado; a história, em contraste, é marcada pelo distanciamento crítico e temporal, e o testemunho, por fim, é caracterizado pela riqueza de informações e pela escassez de tempo para processar os fatos testemunhados.

MECANISMOS DE ESQUECIMENTO

Mas, para além da carga informativa, os testemunhos estão por trás da ideia do para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Para Starling, relembrar é a melhor forma de evitar repetições dos erros do passado e inventar um presente e um futuro diferentes. "É preciso calçar o sapato do morto para entender o tempo que ele viveu", frisou. E os relatos das testemunhas seriam a primeira via para reconstituir a história e compreender o contexto em que os fatos sucederam.

De acordo com a historiadora, a partir da redemocratização, forjou-se a ideia de que a ditadura foi uma "noite trevosa" marcada pela luta entre os militares e a sociedade civil. "Não foi bem assim. Nenhum regime se mantém só pelo poder. A ditadura não sobreviveu só pela força. A ideia de sociedade democrática é a imagem que Narciso quer ver no espelho", advertiu. "Um dos aspectos silenciados em relação à ditadura foi que o regime teve muito apoio: havia os militares, os grupos de resistência e a sociedade em geral, que buscou sobreviver pelo consentimento, silêncio ou adesão", completou.

Na avaliação de Starling, esses mecanismos de esquecimento ajudam a explicar os pedidos de intervenção militar no Brasil que figuraram na pauta de reinvindicações das manifestações de junho 2014 e que voltaram a aparecer nos protestos subsequentes. Para ela, os indivíduos que levantam essa bandeira constroem um imaginário do regime militar com base naquilo que lhes falta e, por isso, experimentam uma nostalgia do que nunca viveram.

"As pessoas dizem que querem a ditadura, mas não têm a menor ideia do que querem dizer com isso. Extravasam com esse pedido um sentimento de impotência e desencanto. Trata-se de um olhar moralista: 'não tenho memória sobre o que aconteceu', observou, destacando a importância da verdade ser colocada na cena pública.

A questão também foi analisada por Maria Inês Fernandes, professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP, e por Raul Araújo, pesquisador associado à University of Liverpool, ambos psicólogos e expositores do encontro.

Para Fernandes, os pedidos de intervenção militar decorrem do medo causado pela sensação de esfacelamento institucional: "Esse medo faz com que as pessoas peçam algo forte. Elas procuram na mente o que representa o fortalecimento institucional e encontram os militares."

Araújo, por sua vez, destacou que os mecanismos encobridores da memória tiveram início já no período da ditadura. Segundo o psicólogo, houve um trabalho sistemático e planejado de apagamento e destituição da memória. "A tortura no Brasil foi mais um recurso para impor o silêncio de opositores e criar clima de desconfiança entre pessoas que para obter informações."

SEMINÁRIO

O seminário propôs uma reflexão sobre a formação da subjetividade, dos laços de pertencimento e da memória no "tempo da agressão". Segundo Matos, que é coordenadora do grupo, trata-se de um tempo acelerado, marcado pelo excesso de informações, pela saturação mnemônica e pelos fenômenos de obsessão e eclipse das origens, que estão por trás da transmissão do conhecimento, das experiências e dos laços filiais.

O evento aconteceu na Sala de Eventos do IEA e contou com exposições de Fernandes, que abordou os efeitos do choque de geração entre pais e filhos nos processos de filiação e de construção da identidade; de Araújo, que se concentrou nos instrumentos de reparação, reconciliação, acesso à informação e restituição política de vítimas de crimes cometidos pelo Estado, particularmente na Justiça de Transição; além de Starling.

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP