Para restauradores, diálogo entre ateliês e instituições públicas ainda precisa aumentar
IEA recebeu restauradores do Masp, Museu Paulista, MAE e Schäfer Conservação e Restauro |
O trabalho de conservação e restauração é amplo e minucioso. Envolve desde instruções de como manusear uma obra, de como montar o espaço de exposição, até questões de monitoramento climático, de poluentes e controle de luz. No dia 26 de outubro, o IEA recebeu o primeiro evento do ciclo sobre conservação e restauração de bens culturais, organizado pelo Grupo de Pesquisa Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado, do IEA, pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e pelo Departamento de Museologia, Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelota.
Para comparar a atuação dos conservadores em instituições públicas e privadas, foram convidadas as debatedoras: Teresa Cristina Toledo de Paula, do IEA e do Museu Paulista (MP) da USP; Ana Carolina Delgado Vieira, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP e Karen Barbosa, do Museu de Arte de São Paulo (Masp), as três representando museus públicos; e Stephan Schäfer, da Stephan Schäfer Conservação e Restauro, representando o trabalho em instituições privadas. A moderação foi de Isis Baldini Elias, do IEA.
“Eu vejo que os restauradores privados têm uma dinâmica diferente de trabalho. Na instituição temos um trabalho mais introspectivo, com menos relação interpessoal. O privado está sempre com o cartão de visitas pronto”, comenta Ana Carolina.
Karen diz que o Masp costuma trabalhar muito com restauradores privados. Algo que acontece também com o Museu Paulista, como explica Teresa: a instituição contrata regularmente especialistas em áreas que o museu não possui, como porcelana, fotografia, entre outras.
Os conferencistas comentam, no entanto, que, apesar de já existir diálogo, é preciso uma maior interação entre os dois setores. “Em congressos, quem mais apresenta trabalhos são os professores de museus. O pessoal de ateliê poderia participar mais desses congressos, trazer coisas novas, debates éticos diferentes, recursos diferentes. Eles poderiam nos dar mostras do que é possível fazer fora do script”, diz Ana Carolina.
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Concordando com a restauradora do MAE, Schäfer acrescenta ainda a ideia de criar uma mesa, assim como foi a do evento, para profissionais se encontrarem e interagirem mais: “Seria enriquecedor pra todo mundo. Essa troca de informações não é tão generosa no Brasil como em outros lugares do mundo, aqui parece que existe uma política de manter e monopolizar o conhecimento”.
Ética e estética
Para Schäfer, ética e estética na conservação estão relacionadas. “Temos um código de ética. Critérios como intervenção mínima, reversibilidade, favorecer a conservação preventiva antes da intervenção”. No entanto, ele explica que na prática nem sempre é fácil explicar aos cliente os processos a serem feitos. Convencendo-os que “isso faz parte, isso não desvaloriza sua obra". Ele criticou também o processo de reentelagem - quando se cola outra tela atrás da original -, pois isso tira o valor da obra, além de impossibilitar que se estude a parte de trás da tela original.
Segundo os debatedores, é comum que pessoas não especializadas tentem fazer algum trabalho de reparação em obras. Teresa diz que é chamada constantemente para resolver situações que ela chama de "barbárie", coisas como colagens na tela e lavagens de modo errado que fazem a tinta sair. "Não tentem ajudar. Lugar de gente de boa vontade é no céu. Acervo é assunto de especialista", diz e completa explicando: “O conservador-restaurador tem que tomar decisões importantes. É uma angústia sim, e é pra isso que estudamos tanto, consultamos colegas, para termos o conforto de saber que tomamos a melhor decisão possível”.
“Vida de restaurador é esse dilema, tomada de decisões o tempo todo”, complementa Ana Carolina. A restauradora do MAE lembrou um episódio sobre a ética na área da restauração, ao lidar com alguns objetos da tribo kaingang. Eles não permitiram que ela fizesse algumas restaurações, por exemplo, em cerâmicas rachadas, pois segundo os kaingang, as rachaduras são mensagens do plano espiritual para o artesão. Outro exemplo foi o de um colar da mesma tribo. Ele estava quebrado e Ana Carolina gostaria de restaurá-lo, porém, o colar, usado nos rituais de cura, eram propositalmente quebrados. “É necessário uma consulta ética com quem realmente possui a propriedade deste material”, diz.
O MAE está trabalhando atualmente com tribos indígenas, uma delas é a kaingang. Os índios trabalham com a equipe do museu, escolhendo o acervo e produzindo peças para exposições. Além de contribuírem no ponto de vista da conservação, orientam sobre os materiais usados.
Falsificação e obras deslocadas
Outro ponto do debate foi na existência de obras falsificadas, algo que, segundo os conferencistas, acontece com frequência. “No MAE, trabalhamos muito com falsificação, mas também recebemos obras frutos de roubos e outros descaminhos. Temos artefatos que com uma simple análise conseguimos verificar que é falsificado. Temos o setor de documentação museológica pra ver se a obra está na Red List - lista com obras roubadas e que estão sendo procuradas -, para ver se tem uma procedência duvidosa”, explica Ana Carolina.
“O falsificador estuda tudo, inclusive os materiais. É algo difícil de identificar mesmo para grandes especialistas. No Brasil, devo ter restaurado inúmeras falsificações”, diz Stephan Schäfer. Ele ressalta, no entanto, que não é função nem responsabilidade afirmar que uma obra é falsa, já que não fazem a análise científica para poder afirmar categoricamente que o objeto não é autêntico. Mesmo assim, ele diz ser “consultado no mínimo semanalmente para autenticação de obras de artes”.
“No Museu Paulista, o que acontece é recebermos coleções que o colecionador acreditava que eram uma coisa que na realidade não são. São doados e verificamos em análise que não eram originais, mas as pessoas acreditavam que sim”, comenta Teresa. Para ela e Schäfer, o falso também é documento. O restaurador explica que um objeto falsificado pode conter a assinatura de um suposto falsificador e isso pode ser útil para traçá-lo e identificá-lo. “Temos que identificar o que é falsificação intencional ou reprodução. Antigamente em escolas de arte se copiavam obras de arte, inclusive dentro dos museus. Descarte deveria ser um último recurso”, explica o restaurador.
“A destruição de uma obra é uma coisa muito delicada, independente do porque, é uma coisa que tem que ser bem analisada e se puder ser bem documentada. Se tiver onde guardar, ótimo”, comentou a restauradora do Masp, Karen. Ela lembra ainda que as políticas nas instituições mudam e eventualmente um procedimento que seria racional, em outra época pode ser completamente diferente.
Schäfer acredita que no Brasil falta um centro de referência imparcial e autônomo que colete dados e faça análises em que se possa comparar objetos falsificados.
Existe ainda o caso das instituições receberem acervos que não se relacionam muito com o que é exposto neles. “Nesses casos de objetos deslocados, mas em bom estado e que poderiam ser úteis para outros museus, a instituição vai conversar internamente e determinar o que fazer. É possível mandar para outras instituições se elas quiserem”, explica Ana Carolina.
Exemplificando como acontece no Museu Paulista, Teresa diz que todas as propostas de aquisições, doações ou compras só vão para o museu depois de uma série de pareceres e laudos de especialistas. “Nos têxteis, por exemplo, caso doem 50 itens, mas só 45 sejam interessantes, você pode abrir mão daqueles objetos que não interessam, mas isso é dito para a pessoa. Alguns levam de volta, outros deixam com a gente”, diz. Os objetos que não serão expostos podem ainda ir para um “banco de objetos”, para serem usados em pesquisas, como testes de materiais, por exemplo.
Prevenção
A questão da segurança dos acervos, quando guardados em um só local, passou a ser mais discutida depois do Museu Paulista ser interditado por riscos de desabamento e do incêndio ocorrido no Museu de Língua Portuguesa.
“É um problema, mas não vejo outra maneira de ser. No MAE temos coleções históricas guardadas, assim como no Paulista. O que fazemos diariamente é uma busca incessante para checar se nosso edifício tem capacidade de salvaguardar todos os objetos. Tentamos mobilizar todos os setores, para verificar condições de segurança, ver pragas, infiltrações, inundações”, diz Ana Carolina.
Teresa lembrou que o medo de incêndios é comum em todas as instituições do país, já que é algo que pode acontecer por mais que se tome cuidado. Ela revelou ainda que as obras do Museu Paulista estão sendo divididas entre outros prédios da região, já que o edifício-monumento está passando por restauração. “Será uma minimização dos riscos, dividindo o acervo. Dividimos por tipologia, por riscos também. O acervo dividido é bem mais fácil de gerenciar. Vamos descompactar”, completa.
Schäfer comentou que está desenvolvendo um tratamento térmico controlado para o controle de pragas. Enquanto a desinfestação atóxica demora cerca de 30 dias, o método térmico dura dois ou três dias. Nele, os acervos são colocados em um container com temperatura de cerca de 55 graus celsius, que seria suficiente para matar os insetos em todas suas fases de desenvolvimento.
Entrada no mercado de trabalho
Voltado também para alunos, o evento abordou a questão do ingresso no mercado de trabalho nas áreas de conservação e restauração. Uma dúvida frequente é quanto aos estágios, se é melhor fazê-lo em uma instituição pública ou em um ateliê particular. Para Teresa, restauradora do Museu Paulista, “tanto faz, desde que o estágio ensine o trabalho de conservação. O importante é você escolher um profissional competente”.
Stephan Schäfer, restaurador privado, acredita que a principal diferença é que em um ateliê particular é possível ver mais intervenção prática na obra, enquanto o museu pode monitorar e estudar por anos a mesma obra. “Temos certa pressão e uma fila que tem que andar, o cliente liga e cobra. O fluxo de trabalho e quantidade de intervenção é diária, se você quer aprender a restaurar e absorver o que é restauração na prática, o ateliê particular é mais favorável”, explica Schäfer, com ressalvas de Karen de que a vida no museu não é “tão devagar assim. Ao contrário do que imaginam, a gente corre atrás do tempo”, contestou.
Para a moderadora Isis Baldini, é uma questão de foco, se o estudante quer conservação interventiva, restauro, o melhor é mesmo um ateliê. Se quer uma intervenção preventiva que além do restauro cuida de outros fatores, o melhor é uma instituição pública.
Fotos: Leonor Calasans / IEA- USP