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Publicação digital amplia público e muda trabalho nas humanidades, diz historiador

por Mauro Bellesa - publicado 13/05/2016 14:00 - última modificação 25/05/2016 09:36

O historiador Michael Elliott, da Universidade Emory, fez a conferência "As Humanidades e seus Públicos" no dia 19 de abril.
MIchael Elliott
Michael Elliott: "A edição digital vai alterar a forma como os humanistas fazem seu trabalho"

As ciências humanas parecem viver um dilema existencial: ao mesmo tempo em que seus pesquisadores são cobrados a se engajar no debate público de grandes desafios do mundo contemporâneo, como as mudanças globais e a manipulação de genomas, os departamentos sofrem com a carência de recursos e os humanistas têm a forma de expressão de suas ideias questionada por cientistas, jornalistas e outros públicos.

A esse dilema soma-se a dificuldade para a divulgação dos trabalhos acadêmicos pelos meios tradicionais, devido aos elevados custos das edições impressas e das assinaturas dos periódicos.

Para o historiador Michael Elliott, da Universidade Emory, EUA, a publicação digital da produção humanística, com todas as possibilidades tecnológicas já disponíveis, deve transformar esse quadro, permitindo o diálogo dos acadêmicos com públicos externos à universidade e influenciando inclusive a forma de produção de conhecimento da área. Elliott discutiu essas questões na conferência As Humanidades e seus Públicos, no dia 19 de abril.

Dois eventos editoriais em 1996 nos Estados Unidos exemplificam a dinâmica de redução e expansão do público das ciências humanas nos últimos 20 anos, segundo ele:

"O artigo de Sokal era uma farsa e argumentava que realizações das ciências naturais como a mecânica quântica e a teoria da relatividade são construções sociais, citando ícones das humanidades do final do século 20, como Jacques Derrida e Bruno Latour; ele estava preocupado com a falta de rigor dos humanistas quando falam da realidade objetiva”, comentou.

O artigo de Sokal teve grande repercussão na imprensa internacional. Houve quem o acusasse de antiacadêmico e anti-intelectual, mas a maioria dos intelectuais o apoio, afirmou Elliot. "Ao atacar as humanidades quando falam da natureza, ele delimitou seu espaço, colocou-as em seu lugar. A humanidades ficaram mais humildes e deixaram de querer se dirigir a outros públicos.”

No caso do William Blake Archive, a motivação e resultados foram opostos, segundo Elliott: “Foi um dos primeiros repositórios eletrônicos de textos na internet e propiciou todas as coisas que esperamos que um arquivo online faça, contando com poesias e imagens de manuscritos, ilustrações, gravuras e aquarelas de Blake, além de ensaios sobre ele”.

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As Humanidades
e seus Públicos
19 de abril de 2016

Notícia

Multimídia

O arquivo foi concebido como recurso para pesquisa de alunos de pós-graduação, docentes de graduação e pós-graduação, professores do ensino médio e entusiastas da obra de William Blake. Para Elliott, o arquivo conta com todos os requisitos que se espera de um trabalho de ciências humanas: apoio de uma fundação, chancela de uma universidade e participação de peritos e pessoal técnico.

Para Elliot, as duas publicações apresentam visões bastante diferentes do trabalho acadêmico em ciências humanas: “O artigo de Sokal criticava as ciências humanas e as empurrava de volta à torre de marfim; o arquivo sobre Blake, por sua vez, apresentava uma forma bastante nova e fascinante, mas que no fundo contém uma visão tradicional da erudição".

Tradição X ser avançado

Ele disse ter lido num texto de Martin Grossmann que uma das questões importantes para o IEA é o contraste entre tradição e ser avançado, acrescentando que essas duas forças estavam bastante relacionadas nos Estados Unidos dos anos 80 e 90.

Na época, o National Endowment for the Humanities, agência de financiamento governamental, queixava-se da incapacidade dos intelectuais em falar para não acadêmicos e de seu tom excessivamente crítico em relação à cultura americana, explicou. “Isso mudou um pouco, mas ainda persiste.” Há alguns meses, de acordo com Elliott, William Adams, novo diretor da agência, disse que “há muito ceticismo na esfera pública sobre o valor das humanidades para se entender o contexto político, econômico e social da atualidade”.

Em reação a isso, Adams propõe que os acadêmicos revisem os currículos dos cursos de graduação e colaborem com os cientistas, em vez de criticá-los, de acordo com Elliot. Ele citou declaração de Adams: “Precisamos nos reengajar de uma forma totalmente nova no ambiente público e precisamos falar de forma mais acessível quando fazemos nosso trabalho”.

Alan Sokal e Jean Bricmont

Imposturas intelectuais

Dois anos depois de o falso artigo de Alan Sokal ser publicado na revista "Social Text", ele e o também físico Jean Bricmont publicaram o livro "Impostures Intelectuelles", onde criticam o uso, a seu ver incorreto, de conceitos das ciências naturais por pensadores e filósofos pós-modernos.Nos dias 27 e 28 de abril de 1998, os dois participaram do simpósio Visões da Ciências: Encontros com Sokal e Bricmont (foto), organizado pelo IEA, no qual pesquisadores de várias áreas debateram as ideias presentes no livro, que acabara de sair na França (na foto, que registra uma das sessões do simpósio, Sokal é o primeiro à dir. e Bricmont o primeiro à dir.).

Há críticas também na imprensa americana. Elliott disse que os jornalistas se queixam de não haver mais intelectuais públicos como havia no passado, para falar sobre desafios como a manipulação do genoma humano, mudanças climáticas e disparidades raciais. "Os jornalistas gostam quando um intelectual fala de forma que eles possam compreender."

Conflito

Diante desse quatro, Elliott considera que as ciências humanas nos Estados Unidos estão numa posição sui generis: “Estão assombradas pelo ridículo público a que foram submetidas no passado [artigo de Sokal] e ao mesmo tempo têm de se engajar no debate público com a ajuda das novas tecnologias”.

Com a credencial de ser um historiador da cultura americana do século 19, Elliott destacou que esse tipo de situação conflituosa não é novo nos EUA.

A educação superior americana no século 19 era dominada por pequenas faculdades que tinham como missão o ensino das artes liberais e a orientação das humanidades, segundo ele. “Estavam apenas a um passo de se tornarem escolas religiosas. Eram destinadas à formação de quadros, a partir da ideia importada da Inglaterra de que as universidades eram para ensinar o conhecimento, não para criá-lo.”

Esse sistema foi desafiado, disse, pela criação das universidades de pesquisa, primeiro na Alemanha e depois nos EUA. “Isso levou à criação de novas universidades, como a de Chicago e a John Hopkins, e a mudança de orientação em outras."

O modelo de universidade preocupada com as artes liberais e a formação de profissionais e o modelo dedicado à pós-graduação e à pesquisa competiram durante algum tempo, até que as universidades passassem a contar com as duas linhas de ação, afirmou. “A Universidade de Chicago, por exemplo, criou modelos relevantes de graduação e, ao mesmo tempo, laboratórios para pesquisa e áreas de pós-graduação importantes.”

William Blake Archive
Homepage do site do William Blake Archive, criado em 1996

Com a adoção desse modelo misto pelas antigas e novas universidades, o ensino das artes liberais se tornou popular, segundo Elliott. O resultado disso é que nos Estados Unidos os estudantes de graduação são generalistas. “Há muitos cursos para o treinamento em artes liberais e isso ajuda a criar uma cidadania mais democrática, fruto de uma educação bem ampla. Se o professor dá aulas de literatura inglesa, vai dar aula numa sala onde as pessoas se tornarão advogados, médicos, arquitetos, financistas. Depois, nos seminários de pesquisa, dará aulas para quem vai se especializar numa profissão. Como professor, ele deve atingir os dois públicos. Esse modelo funcionou bem até recentemente.”

Modelo em xeque

A hipótese de Elliott é que esse modelo agora está em xeque em todas as áreas, com uma crise mais acentuada nas humanidades, porque uma educação mais ampla, baseada nelas, não tem mais o apoio que tinha. Os principais motivos para isso são, segundo ele:

  • a falta de consenso sobre o que é uma educação geral;
  • com os elevados preços da anuidades, os alunos quererem que as disciplinas da graduação sejam mais direcionados para a formação profissional que desejam;
  • há ressalvas quanto à postura política dos professores de humanidades, geralmente críticos das instituições americanas;
  • a ideia de que os alunos de graduação não são mais representativos do público geral (“Isso é curioso, porque a diversidade atual dos alunos em termos de etnia, classe social, gênero e outras é maior do que jamais foi").

Elliott considera que há também uma crise do lado da produção dos pesquisadores. “Nos EUA, os periódicos não são de acesso livre e as assinaturas são muito caras. Para assinar as revistas, as bibliotecas precisam reduzir a compra de livros e outras publicações”.

Essa situação vai levar a uma nova organização na forma como os acadêmicos fazem seu trabalho e se dirigem ao público, cada vez mais múltiplo devido aos recursos da publicação digital, avalia Elliot. Com isso, em sua opinião, o formato das publicações acadêmicas vai mudar em razão das novas tecnologias de edição e distribuição. "Essas mudanças vão alterar o conceito do que significa ser um acadêmico na sociedade contemporânea."

Ele disse que os pesquisadores das ciências humanas realizam muitos trabalhos sobre meio ambiente, mudanças climáticas, saúde, educação e “para que esses trabalhos sejam consequentes, seus autores devem se engajar no debate público, dirigir-se também ao público não acadêmico.”

“Nos EUA, a monografia impressa tem um tipo de aura [como a da obra de arte única, segundo Walter Benjamin], embora seja reproduzida mecanicamente, e é cultuada por um público restrito. Será que o trabalho acadêmico vai perder sua aura ao passar para os formatos digitais? Será que sites acadêmicos, lado a lado de sites comuns, ficarão diminuídos? Creio que não. Estaremos buscando públicos engajados com os conteúdos acadêmicos e isso será bom para a academia e para o resto da sociedade.”

Emily Dickinson Archive
O Emily Dickinson Arquive reúne fac-similes dos manuscritos da poeta

Experimentos

Para ele, o William Blake Archive é um projeto digital padrão, com os parâmetros do trabalho de edição aprovados pela Modern Language Association of America, instituição que reúne acadêmicos de letras.

Ele comentou três projetos que ultrapassam o formalismo padrão. Um deles é o Emily Dickinson Archive, dedicado à poeta americana do século 19. “Ela não publicou nenhuma de suas poesias em vida, por isso seus manuscritos são muito importantes, mas estão guardados na Universidade de Harvard e o acesso a eles é quase impossível. A alternativa é o acesso ao material digitalizado.”

Um projeto diferenciado pelo seu alcance público é o Voyages – Trans-Atlantic Slave Trade Databse. "Foi concebido para acadêmicos que estudam a escravidão, mas assim que foi publicado constatou-se que também havia interesse de outros públicos, como genealogistas e negros dos EUA, Caribe e Brasil que queriam rastrear suas origens. Para atendê-los, os responsáveis pelo site mudaram a forma de apresentação das informações."

Publicado na internet recentemente pela Editora da Universidade de Stanford, o projeto é o Enchanting the Desert foi destacado por Elliott como uma modalidade multimídia de monografia. Produzido pelo geógrafo Nicholas Bauch, o projeto trata da história do registro fotográfico do Grand Canyon. Ele contém um texto de cerca de 80 mil palavras, fotografias, informações geográficas, clips de áudio e pode ser navegado por diversos caminhos. “Pode-se imaginar um livro impresso do projeto com textos e fotografias, mas faltaria muitos dos dados e não haveria a possibilidade de navegação.”

Voyages - The Trans-Atlantic Slave Trade Database
Voayages, projeto sobre tráfico de escravos

Debate

No debate que se seguiu à conferência, Martin Grossmann, ex-diretor do IEA e coordenador do Grupo de Pesquisa Fórum Permanente: Sistema entre o Público e o Privado, disse que é importante analisar a situação das ciências humanas pelo lado político e que na USP também há dificuldades para o que é público seja de uso da sociedade: “Temos museus com coleções muito importantes e cuja missão vai além do ensino e da pesquisa, pois temos o dever de manter essas coleções e torná-las acessíveis ao público externo”.

Grossmann também comentou que o modelo para as universidade públicas implantado no Brasil geral uma situação estranha, com o dinheiro público financiando universidades públicas sofisticadas e caras para pessoas privilegiadas, restando às universidades privadas a função de absorver grande partes dos egressos do ensino médio.

Elliott respondeu que é cada vez mais difícil distinguir entre universidades públicas e privadas nos EUA, pois “as públicas estão cada vez menos baseadas em recursos governamentais e mais em anuidades e no patrocínio privado e de agências de fomento”. Segundo ele, um dos motivos para isso é a ansiedade existente diante da dificuldades dos estudantes em terem acesso ao ensino superior em razão do aumento do valor das anuidades.

Jeffrey Lesser, professor visitante do IEA,  disse que no seu trabalho como historiador e antropólogo cada vez mais trabalha com cientistas da computação e que a ampliação do púbico para as ciências humanas também inclui a ampliação do público com que os pesquisadores têm de trabalhar. Ele quis saber como Elliott via o futuro dessa articulação de diferentes públicos internos à universidade na produção de conhecimento.

Para Elliott, algo peculiar dos projetos digitais é que eles tendem a ser mais colaborativos, pois requerem mais pessoas e habilidades. Dois resultados são desejáveis nesse diálogo, a seu ver: o incremento do pensamento crítico, “que não deve ser abrandado pelos humanistas”, e a multiplicação do número de projetos a partir do diálogo entre pesquisadores de várias áreas.

Utilitarismo

Grossmann perguntou a Elliott se a restrição dos recursos destinados às humanidades por serem mais questionadoras deve-se a um movimento conservador internacional ou a reflexos de momentos históricos específicos.

Enchanting the Desert
"Enchanting the Desert", monografia digital do geógrafo Nicholas Bauch

Elliott discordou. Para ele a contração das humanidades nos EUA não é fruto de políticas conservadoras: “Essas políticas existem há muito tempo. O que mudou no ensino superior é que as coisas com utilidades práticas são consideradas mais importantes e as humanidades são vistas como menos úteis”.

“O que vejo não é um ataque específico às humanidades, mas falta de financiamento a elas, que se organizam em departamentos menores, mais vulnerais quando há cortes gerais de recursos.”

Segundo ele, são os liberais [à esquerda, no sentido americano do termo] e não os conservadores que gostam de ridicularizar as universidades, criticando as preocupações com o politicamente correto e as políticas de identidade.

Claudia Bauzer Medeiros, da Unicamp e da Coordenação do Programa Fapesp de Pesquisa em eScience, comentou que os pesquisadores de engenharia costumam dizer que os humanistas demoram muito para produzir conhecimento e que isso aumenta a barreira entre as áreas. Quis saber de Elliott como isso pode ser reduzido e também como lidar com a diversidade de políticas de financiamento de cada área.

Elliott disse que a interpretação cautelosa dos dados é uma das coisas que define as humanidades, mas que a publicação digital reduz significativamente o tempo entre a produção do conhecimento e o acesso a ele por todos. Quanto à questão da burocracia no financiamento, afirmou ser um problema mais difícil de equacionar e que a dificuldade também existe nos EUA, com protocolos e análises diferentes, ainda que realizados pelo mesmo órgão.

Questionado por Abel Packer, coordenador do Programa SciELO-Fapesp,  sobre a aparente dificuldade de os humanistas estabelecerem networks para a produção de conhecimentos, diferentemente do cientistas naturais, cujos artigos costumam ter poucas páginas e vários autores, Elliott disse que a questão do networking nos EUA tem a ver com a forma como os acadêmicos das ciências humanas são treinados e que a publicação digital não vai resolver isso. “A expectativa é que o pós-graduando defina um tópico de pesquisa independente desde o começo. Essa independência é um valor cultural da área de humanas. O pesquisador é avaliado em função de seu preparo para atuar com independência em sua área. Ao passo que os cientistas naturais desde o começo estão trabalhando em equipe num laboratório.”

Michael Elliott, Jeffrey Lesser e Martin Grossmann
A partir da esquerda, Michael Elliott, Jeffrey Lesser e Martin Grossmann durante o debate depois da conferência

Profissionais e amadores

Luis Ferla, da Unfesp, perguntou a Elliot sobre a revisão por pares na edição digital e comentou a questão da aura citada por ele: "Um paradoxo irônico, pois num momento em que nosso papel social está sendo questionado a solução para ser perdermos nossa aura. No mundo digital, a barreira entre produtores e consumidores está desaparecendo e estamos nos tornando similares a amadores".

Para Elliott, nem toda experiência editorial vai funcionar nos meios digitais. “Haverá falhas e temos de aceitar isso. Também tenho algumas preocupações com a perda de conhecimento quando entramos no mundo digital, onde um trabalho acadêmico poder ficar lado a lado de algo feito sem o profissionalismo desejável.”  Além disso, ele considera que continuará a haver trabalhos de interesse apenas de acadêmicos da área.

“Estamos entrando num período em que os acadêmicos atuarão em várias coisas diferentes. Isso vai mudar a forma como fazemos nossos trabalhos e treinamos nossos alunos e vai gerar tanto riscos quanto recompensas.”

Sobre a revisão por pares, disse que as editoras universitárias vão continuar exigindo essa avaliação para projetos digitais. “E deve-se tomar cuidado com o que colocaremos em circulação digital, pois não existe mais o ambiente privado do mundo acadêmico. Qualquer estudante pode enviar imediatamente por celular para o mundo algo que acabamos de publicar.”

Fotos: Leonor Calazans/IEA-USP