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“Racismo é dupla morte”, diz Kabengele Munanga

por Sylvia Miguel - publicado 06/10/2016 00:00 - última modificação 07/10/2016 08:12

O olhar privilegiado do antropólogo que ajuda os brasileiros a conhecer “o verdadeiro Brasil” foi tema de debate no dia 28 de setembro
Protesto Congo

"Conflitos civis no Congo são fenômenos urbanos iniciados após independência", diz Kabengele.

País instável, com um cenário de conflitos entre diversos grupos civis e um governo central em crise. A escalada de protestos contra a permanência do atual presidente da República Democrática do Congo (RDC), Joseph Kabila, já tem um saldo de pelo menos 50 mortos desde fins de setembro, segundo grupos de oposição que exigem eleições. O clima de instabilidade política lembra os eventos pós-independência daquele país da África Central e os episódios vividos pelo antropólogo Kabengele Munanga, que se instalou no Brasil após fugir de um regime ditatorial em seu país, na década de 1970.

“A ideia de guerras étnicas não corresponde à realidade do que muita gente pensa sobre a África. O que existem são conflitos civis em centros urbanos. No Congo, foram os belgas que começaram a introduzir a consciência étnica desde a colonização, com a política de dividir para dominar. Os conflitos começaram a estourar a partir da independência, em 1960. Até aí, eu não sabia a qual etnia eu pertencia. A identidade e a consciência étnica eram uma forma de manipulação, para dizer que uns eram melhores que outros e mereciam o poder. Fora do contexto urbano, isso não existia”, disse o professor Munanga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, durante o diálogo Trajetória entre Culturas: Kabengele Munanga, um Intérprete Africano do Brasil, realizado no dia 28 de setembro no IEA.

Organizado pelo Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do IEA, o debate mostrou detalhes da trajetória do acadêmico e do militante, construída entre países e culturas até o estabelecimento no Brasil, há mais de 30 anos, onde Munanga se naturalizou. O encontro foi coordenado pelas professoras Ligia Fonseca Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Maura Véras, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

Com uma vida marcada por surpresas e muita sorte, como diz o próprio Munanga, a conclusão do doutorado com bolsa de estudos na Bélgica, afinal, não aconteceu. Seu destino se voltou para o Brasil. Conheceu em 1974 o professor Fernando Augusto Albuquerque Mourão, fundador do Centro de Estudos Africanos da USP, do qual Munanga se tornaria diretor e professor sênior.

“Ele viu minha dificuldade, falou de um convênio da USP com países africanos e me convidou para o doutorado. Fui o primeiro africano a receber o formulário para bolsa na USP. Também fui o primeiro morador do Crusp, quando reaberto após os eventos de 1968”, conta.

Kabengele Munanga - 1

A partir da esq.: Ligia Fronseca Ferreira, Kabengele Munanga e Maura Véras

A antropologia no Brasil estava mais desenvolvida que na própria Bélgica, afirma o antropólogo graduado em 1969 pela Université Officielle Du Congo à Lubumbashi. O doutorado no Brasil o levou a caminhos diversos da linha funcionalista que conheceu na África. Teve acesso a muitos autores, ao estruturalismo e a outras correntes da antropologia. Assim criou outra desenvoltura intelectual, conta. Autores brasileiros como Florestan Fernandes e Octávio Ianni o levaram a “descobrir o verdadeiro Brasil”, disse.

“Aqui me tornei antropólogo, até como formação. Todo o meu amadurecimento foi nesse contexto, nos contados e encontros que tive aqui, sem a postura paternalista do colonizador. Isso me ajudou a crescer como ser humano. Encontrei um ambiente intelectual propício à liberdade, em que pude dizer o que pensava e acreditava, onde me tornei independente sem ficar repetindo os mestres e os clássicos”, disse o autor de “Origens Africanas do Brasil Contemporâneo”.

A vida na USP é comparada a uma “espécie de valsa”. Como antropólogo e pesquisador, manteve um pé na academia, onde aprendeu teorias e conceitos, e outro pé na militância negra, em que aprendeu a verdadeira condição do negro na sociedade brasileira, diz. “Sem um e outro, eu não seria o que sou e foi o ambiente brasileiro que me deu a possibilidade de crescer como intelectual”, disse.

 

Escola colonial

Congo já foi latifúndio de rei

A República Democrática do Congo (RDC) foi explorada pelo rei Leopoldo II da Bélgica após a Conferência de Berlim, de 1885. Nessa conferência, as potências europeias decidiram a partilha da África segundo suas próprias regras. O nome dado então ao país, de Estado Livre do Congo, apenas tinha de livre o fato de corresponder a uma propriedade particular, no caso, com 2 milhões de quilômetros quadrados.

Na prática, Leopoldo II já havia lançado as bases para seu latifúndio particular em 1876, quando Bruxelas sediou uma conferência geográfica internacional e propôs o que, no papel, seria uma expedição multinacional, humanitária e científica na África Central. Mas o governo belga não quis assumir a empreitada e o rei, então, numa decisão insólita, transformou o território numa espécie de “fazenda”, controlando não apenas suas riquezas, como também a vida de seus milhões de habitantes.

Além de confiscar terras e aldeias, promover a escravidão e o aumento de impostos, a temida Força Pública a serviço do rei tinha carta branca para assassinatos, amputações, estupros e saques quando as cotas extrativistas de borracha e marfim não eram cumpridas. As denúncias sobre as insanidades lá cometidas tornavam-se cada vez mais conhecidas. A atuação de escritores como Mark Twain, Arthur Conan Doyle e Joseph Conrad (de “O Coração das Trevas”) contribuiu para a criação de uma das primeiras organizações de defesa dos direitos humanos do século 20, a Associação pela Reforma do Congo.

Diante da crescente pressão internacional, o parlamento belga decidiu intervir e tomou do rei o Estado Livre do Congo em 1908, quando passou a ser chamado Congo Belga. Considerado um dos mais ricos países em recursos naturais, recebeu di ditador Mobutu Sese Seko o nome de Zaire, entre os anos de 1971 e 1997. Atualmente, a RDC possui 70 milhões de habitantes.

“Com toda aquela disciplina religiosa, eram poucos os que iam para o colégio. Os melhores alunos eram os que memorizavam textos da Bíblia. Virei até coroinha, pois decorava os textos em latim, mesmo sem entender nada. A história que sabíamos era a do colonizador. Da África, não conhecíamos nada. Não sabia até o fim do colégio que o continente africano teve impérios, estados e monarquias”, disse.A educação na RDC foi marcada por 20 anos colonização, uma verdadeira “lavagem cerebral”, como coloca . Aos 10 anos de idade, ele saiu de sua aldeia natal, Bakwa Kalonji, para realizar os estudos primários e, em seguida, o colégio jesuíta.

Mas nos primeiros anos do primário, enfrentou dificuldades. A alfabetização básica se deu na sua língua materna, o kiluba, uma das mais faladas na RDC, originária do tronco Bantu. Depois da alfabetização, os conteúdos do primário e secundário começaram a ser passados em francês. “Eu ficava sem entender nada e esse bloqueio com a língua me causou muitos complexos. Eu era um aluno solto na escola, com dificuldades de comunicação”, diz o professor, que dirigiu o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP por sete anos, entre 1983 e 1989.

“Ao final do processo, tivemos contato com alguma literatura e o pan-africanismo, que abriu nossos horizontes para saber que sistema era aquele. Mas, daí, já havíamos criado o complexo de inferioridade e de ser negro, num processo lento que não temos nenhum controle”, disse.

A quebra daquele sistema acontecia nas férias, quando os estudantes retornavam às suas aldeias. “O que nos salvava eram as férias. As famílias continuavam a viver suas culturas e o colonizador não tinha controle sobre o cotidiano das aldeias, exceto pelas prisões e trabalhos forçados. Havia casamentos na igreja para que os filhos pudessem frequentar os colégios, mas na aldeia os homens continuavam com suas mulheres. O processo de alienação acontecia através dos jovens. E assim conseguíamos viver entre a cultura da colonização e as nossas tradições e valores”, conta.

 

Pioneiros de uma nação

A primeira universidade no Congo foi criada em 1956, conta Munanga, que entrou em 1964 no curso de ciências sociais, o único disponível naquela ocasião. “Pertenço à segunda turma de jovens congoleses a frequentar o ensino superior. No ano da independência do Congo, em junho de 1960, havia apenas oito jovens com diploma universitário. O que esperar de um país, à época com 24 milhões de habitantes e apenas oito jovens com diploma universitário?”, questiona Munanga.

“Não havia interesse em formar elite, de educar o povo. Após a independência, 60% da população era alfabetizada, mas não havia advogados, engenheiros. Ao finalizar ciências sociais, complementei com uma licenciatura em antropologia cultural. Fui um aluno muito mimado, pois fui o único a me matricular. Ninguém queria fazer porque diziam que era uma ciência colonial. Terminei em 1969 e fui diretamente convidado a dar aulas na universidade do Congo, começando como auxiliar de ensino e depois, professor assistente”, conta.

Obteve uma bolsa para o doutorado na Université Catholique de Louvain, da Bélgica. Chegou a realizar o levantamento de campo para seu projeto que se chamaria “Memória”, sobre as mudanças socioculturais de um grupo étnico do Congo que vivia numa região de extração de cobre. Voltou ao Congo para terminar sua tese, mas não pode concluí-la porque a ditadura instalada na então recém-criada República do Zaire o impediu. A bolsa foi cortada porque sua família fazia oposição política ao governo congolês, disse. Na sequência, nova surpresa. Outra bolsa, esta obtida pela Fundação Rockefeller, terminou confiscada, contou.

Foi por acaso que afinal encontrou o professor Mourão, da FFLCH-USP, conta Munanga. A sequência foi o doutorado em antropologia social na FFLCH-USP, iniciado em 1975 com o mesmo tema do levantamento de campo realizado na África. A tese de doutorado, intitulada “Os Basanga de Shaba (Zaire) - Aspectos socioeconômicos e político-religiosos”, com a orientação do professor João Baptista Borges Pereira, foi concluída em 1977.

“Tive sorte de encontrar aqui o (antropólogo e especialista em África) George Balandier (1920-2016), que esteve em 1976 realizando palestras no Centro de Estudos Africanos da FFLCH. Tomei seus conselhos ao pé da letra e comecei a escrever meu trabalho. Obtive nota 10 com distinção e louvor”, conta.

Munanga ministrou aulas na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em 1977, e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1979. Tornou-se pesquisador e professor do MAE-USP em 1980. Após três anos, aceitou a administração e direção do MAE, ao lado do professor Mourão e do professor Borges Pereira.

 

Militância negra

Kabengele Munanga 2

"Aqui encontrei um ambiente intelectual propício à liberdade, em que pude dizer o que pensava e acreditava".

Para Munanga, o racismo no Brasil é o crime perfeito porque é uma dupla morte. “Não vemos o carrasco do racismo porque ele não se assume como tal. Então é uma morte física e também da consciência do negro. A segunda se dá pelo silêncio, pelo não dito que impede que a vítima e a população tomem consciência de que o racismo existe”, afirma.

Ao chegar ao Brasil, Munanga acreditava que aqui havia uma democracia racial de fato, algo diferente do que ocorria Estados Unidos. Mas a partir das aulas, leituras e encontros, começou a “conhecer o verdadeiro Brasil”.

“Se na maior universidade do país precisou vir um negro fugido de uma ditadura para ser o primeiro professor negro aqui, então alguma coisa estava errada. Vivi circunstâncias que ajudaram a me posicionar como intelectual. Eu não iria continuar a estudar os clássicos gregos e sim as pessoas que tinham a ver com minha própria história”, conta.

A leitura selecionada, o olhar distanciado, as ideias e, sobretudo o contato com o outro, o ajudaram a perceber o que os colegas brancos da academia e o negro brasileiro não percebem. “Conheci o Clóvis Moura e o Eduardo Oliveira, dois intelectuais mestiços que fizeram mestrado aqui na época e que afirmavam ser negro por uma questão de afirmação política. Isso me impressionou muito e ajudou na minha compreensão do Brasil. O Clóvis Moura fez um trabalho pioneiro com o seu livro (“Rebeliões da Senzala, quilombos, insurreições, guerrilhas”) e nos tornamos grande amigos. Tudo isso me ajudou a perceber a importância de ser um professor negro na USP”.

Ao confrontar estereótipos, desconstruía o mito da democracia racial. “As pessoas viam que meu comportamento era diferente, que eu não era do Brasil. Daí é possível perceber como os preconceitos podem construir comportamentos. Perguntavam se eu tocava algum instrumento, se já tinha caçado algum leão, se na África existia carro e televisão. Havia um desconhecimento total sobre a África, até entre os alunos da USP”, disse.

Munanga lamenta o desconhecimento dos brasileiros sobre a África. “Parece que a história do negro no Brasil parou na abolição. Depois disso, não se produziram estudos. Mas se os negros estão estudando história da Europa, porque o branco também não pode estudar o negro? Com isso, a USP começou a contratar professores para ensinar história da África, tanto que o tema virou disciplina. Isso é um progresso muito grande”, observa.

Munanga citou a polêmica sobre cota raciais em que foi alvo de críticas do jornalista Demétrio Magnoli, em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 14 de maio de 2009. “Ele me acusou de ser o ícone da racialização oficial do Brasil. Mas como posso ser isso? Disse ainda que eu estava aproveitando o cargo na universidade para pregar o racismo científico, há muito superado”. O artigo de Magnoli, intitulado “Monstros tristonhos”, incitou uma enxurrada de protestos na internet. Munanga, por sua vez, coloca sua posição no artigo “Kabengele Munanga responde a Demétrio Magnoli”.

Imagens: EuroNews/ Jean Kabese@KBC / Leonor Calazans