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Seminário discute a reorganização das grandes áreas do conhecimento

por Victor Matioli - publicado 19/04/2018 15:55 - última modificação 19/04/2018 18:14

A fim de discutir esta divisão e debater possíveis mudanças na maneira como se segmenta o conhecimento no Brasil, o IEA realizou, no dia 13 de abril, o seminário (Re)discussão Sobre as Grandes Áreas do Conhecimento. O evento contou com a participação de cerca de 20 professores universitários, de diversas áreas e instituições.

Visão geral - 13042018
Cerca de 20 professores, de diversas instituições, participaram do encontro.

“A educação superior brasileira é muito conteudista, os alunos recebem conteúdo demais e incentivo para reflexão de menos”, acredita Fritz Huguenin, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFLCRP) da USP. Para ele, dar “receitas de bolo” aos alunos os prejudica mais do que ajuda. “É preferível motivá-los com problemas que os instiguem a encontrar soluções em outras áreas do conhecimento.”

Em sua apresentação, Huguenin defende a função primária da universidade: formar cidadãos completos, alicerçados em saberes diversos e conhecedores de todas as competências humanas. Para ele, no entanto, atual divisão do conhecimento em três grandes áreas (ciências humanas, exatas e biológicas), parece confrontar este ideal. O professor argumenta que muitos estudantes acabam se isolando em suas áreas, dificultando a produção do saber multidisciplinar pretendido.

A fim de discutir esta divisão e debater possíveis mudanças na maneira como se segmenta o conhecimento no Brasil, o IEA realizou, no dia 13 de abril, o seminário (Re)discussão Sobre as Grandes Áreas do Conhecimento. O evento contou com a participação de cerca de 20 professores universitários, de diversas áreas e instituições. O encontro foi organizado pelo IEA em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance em Música (NAP-CIPEM), da FFLCRP-USP.

Segundo Rubens Russomano Ricciardi, coordenador do seminário e professor do curso de Música da FFLCRP-USP, “a divisão cristalizada do conhecimento em ciências exatas, biológicas e humanas tem levado, não raramente, a resultados acadêmicos menos fecundos que os desejados, prejudicando o planejamento e a realização das atividades de ensino, pesquisa e extensão”. Ricciardi acredita que vivemos um momento fecundo para discutir novas maneiras de organizar o conhecimento.

Diego Antonio Falceta Gonçalves
Diego A. Falceta Gonçalves: "Não queria atuar em nenhuma área específica, mas descobrir todas elas”

Divisão que limita

Mostrou-se clara, entre os participantes do evento, a convicção de que a divisão do conhecimento criou bolhas que não se comunicam. Ignacio Maria Poveda Velasco, professor de história do direito da Faculdade de Direito (FD) da USP, argumentou que a realidade das coisas é uma só, mas multifacetada. “Seja por motivos didáticos ou metodológicos, tendemos a fragmentá-la”. Ele acredita que, para atingir um nível de excelência, é preciso focar esforços de pesquisa em aspectos particulares de uma temática. Esse conhecimento específico, entretanto, não pode se desconectar de um contexto humano mais abrangente: “Por isso a comunicação entre as diversas áreas se faz necessária”.

“Foi decepcionante chegar à universidade”, comentou Diego Antonio Falceta Gonçalves, vice-diretor executivo da Fuvest e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Ele contou que não se identificava com nenhuma área específica do conhecimento, mas queria descobrir todas elas. Para Falceta, o vestibular no Brasil por vezes serve como um cabresto que direciona os estudantes para uma área específica e os impede de acessar a universidade como um todo. Ele também defendeu a superioridade dos estudantes egressos de universidades que incentivam a construção interdisciplinar do conhecimento. “São profissionalmente equivalentes, mas humanamente superiores, pois têm suas experiências humanas ampliadas”, afirmou.

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A professora Ana Cristina Zimmermann, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, apontou que a educação física, matéria recém-chegada à academia, está no “turbilhão” dessa discussão. Em sua opinião, apesar da raíz biológica da área, existem diversas questões subjetivas e reflexivas inerentes à prática esportiva. O esporte (assim como o próprio movimento do corpo humano) é um importante fenômeno cultural, histórico e antropológico, por isso a educação física se aproxima do campo das ciências humanas em diversos pontos, ressaltou. No entanto, ela admitiu que, por vezes, pesquisadores da área preferem aconchegar seus estudos na área da saúde. “Ali encontramos uma utilidade, uma função social”, afirmou em crítica à maneira como as humanidades são desvalorizadas em relação às ciências biológicas.

A visão da professora Ana Cristina foi reiterada por Oscar João Abdounur, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. Abdounur afirmou que as áreas “insubordinadas” às áreas clássicas do conhecimento precisam se provar muito mais. “A pertinência das pesquisas de ciência pura precisa ser exaustivamente comprovada.” Para ele, a desvalorização de algumas áreas do conhecimento nasce na educação básica, pois as escolas “treinam disciplina, rotina e adequação à cultura” e falham em disseminar a civilidade e a retenção de conhecimento.

Alexandre da Silva Costa
Alexandre da Silva Costa: “É muito estranho que um paper tenha mais valor [para os órgãos de incentivo] do que um livro”.

A falta de incentivo para as pesquisas “marginalizadas” foi reafirmada por outros professores, como Fritz Huguenin, que apontou a necessidade de apresentar, aos órgãos de incentivo à pesquisa, um horizonte de aplicação prática para receber aporte financeiro. “É raro conseguí-lo somente com pesquisa básica.”

Lugar das Humanidades

A posição de desvalorização atribuída historicamente às ciências humanas também foi vastamente explorada pelos participantes do seminário. Alexandre da Silva Costa,  professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), questionou os correligionários “Não parece estranho que as ciências humanas sejam uma subdivisão das ciências? As outras não são humanas? São desumanizadas? São desumanizantes?”. Costa continuou sua indagação abordando uma derivação econômica da problemática: “Tendo em vista que todas as ciências são necessariamente humanas, porque exatamente as que assim são taxadas recebem os menores investimentos?”.

Icleia Thiesen, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), ecoou as preocupações do professor Costa. Lembrou que foi registrada recentemente, no Senado Federal, uma proposta de extinção dos cursos (tanto presenciais quanto à distância) de filosofia, história, geografia, sociologia, artes e artes cênicas das universidades públicas. Os cursos passariam a ser uma atribuição das universidades e faculdades privadas. Para ela, isso “deveria acender um sinal vermelho” para a desvalorização das humanidades no Brasil.

“Quantas vezes, da maneira mais injusta possível, meus alunos não foram enxotados, segregados e diminuídos por serem músicos”, desabafou André Luiz Giovanini Micheletti, professor de violoncelo e música de câmara do Departamento de Música da FFCLRP-USP. Ele defendeu que a produção de um músico é sua arte, sendo descabido exigir, como instrumento de avaliação, a publicação de papers ou livros. “Infelizmente, no Brasil, a performance [expressão da ciência musical, para ele] é vista com muito preconceito”, completou.

Icléia Thiesen
Icleia Thiesen: "Talvez uma espécie de virada conceitual e hermenêutica", sobre o caráter do evento.

Acompanhando o professor Micheletti, Ricciardi criticou a maneira como a divisão das áreas do conhecimento posiciona a arte como subjetiva e irracional, contrapondo-a às ciências exatas, taxadas de objetivas e racionais. “Não há coerência na afirmação de que a arte só tem significância se estiver atrelada a um processo de pesquisa”, concluiu.

No mesmo sentido, Ricardo Bologna, professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, questionou a maneira como se dá a avaliação científica nas pesquisas de arte. Para ele, o resultado dos estudos artísticos se apresentam no palco através da criatividade e da praxis artística. “Mas não existem avaliações científicas nesses espaços”, frisou. Segundo Bologna, essa equivalência entre ciências tão diferentes obriga os pesquisadores a produzir dissertações que não refletem exatamente seu processo criativo.

Alexandre da Silva Costa salientou ainda a relação desproporcional entre a produção de ciência nas diferentes áreas do conhecimento. Ele criticou o valor dado pelos órgãos de incentivo à pesquisa, por exemplo, a trabalhos do setor médico-biológico. “É muito estranho que um paper tenha mais valor [para os órgãos de incentivo] do que um livro.” Para ele, este tipo de prática cria um regime de servidão para os pesquisadores de humanidades, “que precisam produzir tanto quanto um médico que escreve um paper com mais oito pessoas”.

Interdisciplinaridade

As soluções para as questões apresentadas no seminário ainda parecem um pouco distantes e obscuras, mas uma noção parece urgente e consensual entre os participantes do encontro: a necessidade de explorar mais profundamente a interdisciplinaridade nas universidades. Tito José Bonagamba, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, defendeu a importância dos saberes múltiplos para compor a experiência universitária dos estudantes. “Enquanto o indivíduo da universidade não entender o caráter multidisciplinar da instituição, ele não alcançará o entendimento pleno dela e não vivenciará integralmente suas possibilidades”, justificou.

Fritz Cavalcante Huguenin
Fritz Huguenin: "A educação superior brasileira é muito conteudista".

Costa ponderou que a segmentação do saber em áreas isoladas acabou traindo o sentido mais basal da universidade: o de reconhecer e acolher a diversidade de conhecimento. O resultado deste processo foi, segundo ele, uma profunda desunião da comunidade acadêmica. “Não há diálogo [entre as áreas]. Fala-se muito em interdisciplinaridade, mas realiza-se pouco.” O professor condenou ainda o fato de grande parte das políticas públicas atuarem para segmentar ainda mais o conhecimento em vez de universalizá-lo.

“Em relação à interdisciplinaridade, o Brasil está na frente do mundo todo”, contrapôs Adelaide Alario, professora de bioquímica e biofísica da Universidade Federal do ABC (UFABC). Ela integrou o Comitê Multidisciplinar de Pós-Graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 2000 a 2008. Relatou que, durante seu tempo de atuação no órgão, muitos projetos de pós graduação que permeavam mais de uma área foram aprovados sob a categorização de “multidisciplinares”. Afirmou que o Brasil foi o primeiro país a promover este tipo de incentivo.

Rubens Russomanno Ricciardi
Rubens Ricciardi: “Não há coerência na afirmação de que a arte só tem significância se estiver atrelada a um processo de pesquisa”

Poveda destacou a necessidade de instigar os docentes a aplicar com maior afinco a interdisciplinaridade no cotidiano da universidade. “Como docentes, até que ponto introduzimos a interdisciplinaridade na rotina de nossos alunos?”, questionou. Ele reconheceu, porém, a dificuldade que os professores têm de abandonar o “ninho” de suas próprias áreas: “somos reféns da educação que recebemos”.

“Este seminário constitui uma oportunidade para indicar a necessidade de mudança de mentalidade no campo da pesquisa científica, tecnológica e de inovação. Talvez uma espécie de virada conceitual e hermenêutica”, concluiu a professora Icleia Thiesen. Para ela, o encontro tem potencial para ser um ponto de partida para a rediscussão do que seria de fato uma ciência comprometida com a sociedade.